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Alemanha: o país da tradição cervejeira

Este ano, os alemães comemoram 500 anos da Lei da Pureza, que estabeleceu as regras para a fabricação da bebida e contribuiu para moldar (e talvez engessar) o jeito germânico de fazer cerveja.

Por Mariana Weber
Atualizado em 11 mar 2024, 09h17 - Publicado em 25 fev 2016, 19h30

Ainda não é algo à vista da multidão que disputa os 3 mil lugares da Hofbräuhaus, em Munique, para matar a sede com canecos de um litro trazidos às pencas por garçonetes de mãos absurdamente fortes. Mas, enquanto a Alemanha se prepara para festejar os 500 anos da Reinheitsgebot, a Lei da Pureza que ajudou a manter a qualidade e a fama da cerveja local, uma revolução está em curso. Aqui e ali, produtores torcem o nariz para as amarras da legislação ou para a monotonia dos estilos de sempre. Consumidores se aventuram com cervejas de outros países – ou pelo menos do bairro vizinho. Isso até na tradicional Baviera, onde ocasiões festivas pedem lederhosen (calça de couro) e dirndl (vestido típico) e as crianças antes de andar já são levadas à vida comunitária do salão da cervejaria.

A Lei da Pureza é uma peça-chave da cultura cervejeira alemã. Em 1516, os duques Wilheim 4º e Ludwig 10º estabeleceram que a cerveja bávara só poderia conter cevada, água e lúpulo (outros cereais, frutas, ervas e temperos, como os belgas gostam, de jeito nenhum). Quem desobedecesse teria a produção apreendida. Não era a primeira legislação sobre o tema nem a mais criativa. Normas semelhantes pipocavam em cidades como Nuremberg e Munique, enquanto em Danzig um decreto alertava: “Aquele que fabricar cerveja ruim será jogado no depósito de esterco da cidade”. Mas foi o texto dos duques que se perpetuou, embora com mudanças, como a possibilidade do uso de trigo. Desde 1993 está em vigor uma lei provisória menos restritiva para o mercado interno, que permite, por exemplo, a adição de açúcar em cervejas do tipo ale.

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Não é certo que a Reinheitsgebot tivesse o intuito de garantir bebida boa. O texto original não falava de “pureza”, termo adotado mais tarde, e uma das hipóteses é que seu objetivo fosse proteger a produção de pão ao evitar o uso do trigo na cerveja. Independente da motivação, para muitos a restrição se tornou um emblema de alta qualidade, ou de cerveja livre de ingredientes baratos, como milho e arroz. 

Alguns encaram a limitação mais como um propulsor do que como um inibidor da criatividade. Esses gostam de lembrar que as 1.300 cervejarias alemãs fazem mais de 5 mil cervejas a partir dos quatro ingredientes básicos – malte, lúpulo, água e fermento. O site da VAB, associação com foco em exportações ligada à Federação das Cervejarias Alemãs, lembra que alguém poderia “passar mais de 13,5 anos na Alemanha provando e apreciando uma nova cerveja por dia”. Nem 13 nem 14: treze e meio. 

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A maior parte da população, no entanto, toma pilsen. E cada vez menos. O consumo cai ano a ano desde 2006, com exceção de um respiro de crescimento em 2014, provavelmente embalado pelos jogos da Copa do Mundo. Não que o país tenha deixado de ser bom de copo: os campeões atuais são os tchecos, mas a Alemanha ainda vira 110 litros per capita por ano (6 milhões desses litros, ou mais de duas piscinas olímpicas, só na Oktoberfest de Munique). 

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O encolhimento do setor é um fenômeno mais amplo que afeta também o resto da Europa. Mas, no caso de países como a Bélgica, a queda do consumo interno é compensada por um aumento nas exportações para a Ásia, a América Latina e a África. As cervejas alemãs não despertam o mesmo interesse nos novos mercados. Ou mesmo nas novas gerações do mercado interno. 

“Desde que os alemães começaram a se voltar para além do mercado local, a Lei da Pureza se tornou uma limitação para as cervejarias criativas competirem com as belgas e as americanas”, diz Christian Hans Müller, que fabrica e exporta estilos estrangeiros como IPA e imperial stout em sua Hanscraft & Co, na cidade bávara de Aschaffenburg. “Claro que somos capazes de fabricar a maior parte dos estilos seguindo as regras, mas não todos. É um desafio que equivale a pintar um arco-íris só com as cores fundamentais, e não com uma caixa de tintas. Mas é possível e é arte.”

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Dentista que mudou de ramo e estudou cerveja no Instituto Siebel, de Chicago, Müller faz parte de um grupo que questiona os rumos tomados pela legislação. Por que, ele pergunta, proibir frutas e especiarias mas permitir, no processo, o uso de agentes como o clarificante polivinilpolipirrolidona (PVPP)? “Desde que não sejam mais detectados antes do engarrafamento, químicos parecem ser OK”, diz o cervejeiro. “Na minha opinião, isso vai contra a ideia básica de algo chamado Lei da Pureza.”

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Enquanto alguns se organizam para mudar a lei, outros acham brechas ou jeitos de burlá-la, batalhando por autorizações especiais para ingredientes “proibidos”, chamando a cerveja fora dos conformes de nomes alternativos, como “bebida maltada”, ou contando com a sorte para que a fiscalização nunca bata naquela porta em um bairro descolado de Berlim. Há também aqueles que buscam sair da mesmice com um retorno às raízes. É o caso da Giesinger, de Munique, uma cervejaria relativamente nova (de 2008) que lança mão de práticas antigas para produzir estilos tradicionais, como a forte e lupulada märzen (da era pré-geladeira, quando março era o último mês com temperatura adequada para fazer cerveja antes do verão alemão). 

Fermentadas em tanques abertos como nos velhos tempos, nenhuma das 11 variedades da Giesinger é filtrada ou pasteurizada. “Fazemos cerveja de leveduras felizes”, diz o mestre-cervejeiro Stefan Bielmeier. Segundo ele, os tanques fechados podem ser até mais higiênicos, por minimizar o risco de contaminação, mas criam uma pressão que altera o resultado final. “Sem estresse, a levedura produz aromas melhores.” O sistema também facilita a remoção de restos de malte, lúpulo e levedura que se acumulam na superfície do líquido como uma espuma de cappuccino, e essa retirada, de acordo com Bielmeier, aumenta a suavidade da bebida. Ele não a submete ao tratamento térmico da pasteurização porque alteraria o gosto. Quanto à filtragem, que daria um visual cristalino e também aumentaria a durabilidade, ele não faz porque também haveria perda de sabor – embora menor que na pasteurização. “Na Idade Média não se usava filtro”, diz Bielmeier. (Por outro lado, estavam disponíveis para as receitas do cervejeiro medieval os mais de 30 tipos de malte que abarrotam uma salinha da Giesinger.)

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Na Hausbrauerei Altstadthof, a herança está em parte nas instalações. A cervejaria armazena sua produção em uma pequena área das galerias escavadas em arenito que ocupam o subsolo de Nuremberg. Criado entre os séculos 14 e 19, com quatro andares, o labirinto subterrâneo chegou a ter 25 mil metros quadrados e era usado para fermentar e armazenar cerveja antes do advento das máquinas de refrigeração (mais tarde, na 2ª Guerra Mundial, abrigou a população durante bombardeios). A cervejaria também mostra interesse pelo passado ao resgatar a rotbier, cerveja vermelha típica da cidade. Mira o presente ao oferecer, em sua loja, além da produção própria, rótulos internacionais, como a escocesa BrewDog. E olha lá e cá ao utilizar somente ingredientes orgânicos. “O que tem mudado na cerveja alemã é o fato de as pessoas pensarem mais sobre ela. É o mesmo que aconteceu com a comida”, diz o mestre-cervejeiro Maximilian Engel, copo de 300 mililitros na mão. Segundo ele, os copões de 500 mililitros e de 1 litro estão saindo de moda porque as novas gerações querem experimentar mais variedades em vez de entornar grandes volumes de um só tipo.

É a busca por experiências gustativas únicas que impulsiona as exportações da Schlenkerla, de Bamberg. Matthias Trum acha graça quando vê vídeos de brasileiros provando e comentando a cerveja defumada que sua família fabrica há seis gerações (e que seu filho de 4 anos já sabe tirar da chopeira). “Depois de tomar uma Schlenkerla, metade vai dizer ‘não quero mais’ e metade vai dizer: ‘É um sabor de que vou me lembrar. Quero mais’. Se 20% disser isso, está bom”, diz Trum. Uma curiosidade: o defumado geralmente fica mais evidente quando se bebe o produto longe de Bamberg, porque outros sabores da bebida vão esmaecendo.

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Apesar de se reconhecer beneficiado pelo movimento artesanal, que começou nos EUA e se espalhou pelo mundo, ele lembra que as pequenas cervejarias familiares sempre foram uma característica da Alemanha, e principalmente da Francônia, região onde está situada Bamberg. Hoje a Schlenkerla exporta um quarto da sua produção anual de 2 milhões de litros, mas o grosso ainda é tomado no bar da própria cervejaria ou “ao redor da chaminé” (na vizinhança – a expressão designa a área vista quando se sobe ao telhado do imóvel).

Até o gosto de bacon da Schlenkerla vem de um método antigo de produção, que expõe o malte à fumaça da queima de faia. Novos estilos, só se forem baseados no passado, como uma edição especial feita com a queima de carvalho. “O gosto único da Schlenkerla é valorizado com o desenvolvimento da cerveja artesanal no mundo”, diz Trum. “Mas cada gole é um gole de história. Somos dinossauros da produção de cerveja.”

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