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Fantasmas da Antártida: os vestígios das primeiras expedições ao continente gelado

O gelo preserva há mais de cem anos vestígios das primeiras expedições à Antártida: cabanas repletas de roupas e comida do século 19 intacta, na embalagem.

Por Bruno Vaiano, editado por Tiago Jokura
Atualizado em 28 jul 2020, 16h14 - Publicado em 19 dez 2017, 14h09
Cabana erguida pela equipe de Edmund Hillary em 1956. Hoje ela faz parte de uma base de pesquisa científica operada pela Nova Zelândia. (ANTARCTIC HERITAGE TRUST/CORTESIA/Reprodução)

Há poucos lugares no mundo em que, no início do inverno, o Sol se põe e só volta com a chegada da primavera. Um deles é a Noruega – onde, em 1864, nasceu Carsten Borchgrevink. Outro é a Antártida, onde ele e nove companheiros tornaram-se os primeiros seres humanos a experimentar o inverno nos arredores do Polo Sul.

Sua embarcação, o SS Southern Cross, partiu de Londres e chegou ao Cabo Adare em 17 de fevereiro de 1898, com 75 cães, trenós e duas cabanas pré-fabricadas de 35 m². Essas quitinetes polares estão lá até hoje – o que torna a Antártida o único continente em que os primeiros prédios construídos ainda estão de pé. A expedição, um suicídio pelas condições tecnológicas da época, foi financiada pelo magnata da imprensa George Newnes. Ele forneceu 40 mil libras – R$ 20 milhões em dinheiro de hoje.

Na latitude 71º20’ S, a célebre noite polar não é bem noite. O Sol se mantém algo entre 0º e 6º abaixo da linha do horizonte – o que oculta a circunferência do astro, mas não toda sua luz. O resultado é um crepúsculo de vários meses, em que parte do céu fica laranja, e o chão, mergulhado na penumbra. Em 1898, ano em que Borchgrevink passou o inverno no Cabo Adare, esse período de lusco-fusco foi de 15 de maio a 27 de julho.

Esta cabana no Cabo Adare é a construção mais antiga da Antártida, construída por Carsten Borchgrevink e nove colegas da missão Southern Cross em 1898. (ANTARCTIC HERITAGE TRUST/CORTESIA/Reprodução)

“Filé de foca e carne de pinguim assada se tornam um repasto frequente conforme ficamos terrivelmente enjoados de comida enlatada”, lamenta o explorador em suas lembranças. “As refeições (…) não duravam mais de cinco minutos em dias normais.” Biscoitos, queijo, presunto, geleia, sardinha e bacon eram os itens mais comuns. A convivência era difícil: Borchgrevink era um líder recluso e de pavio curto; sua única diversão era uma partida de xadrez diária com o médico da expedição. Como uma das cabanas era usada só para guardar suprimentos, restavam 3,5 m² para cada homem na outra. O teto tinha 2,1 m de altura e o isolamento térmico era feito com papel machê.

Apesar da temperatura, que variava entre -15 ºC e -40 ºC, eles fizeram observações meteorológicas, estudaram o campo magnético, encontraram insetos e vegetais esparsos e traçaram mapas da região que seriam valiosos para as incursões posteriores. Não chegaram ao Polo Sul, mas alcançaram a latitude 78°50’ S – a mais extrema até então, a 1.240 km do Polo Sul – e inauguraram a idade heróica da exploração antártica; um empreendimento que, à época, teve um impacto equivalente ao da chegada do homem à Lua.

Freezer natural

Cinco toneladas de pão, uma tonelada de manteiga, 28 toneladas de óleo de fígado de bacalhau, 53 fogões de acampamento e biscoitos de aveia com 58% de gordura para os cães – que também ganharam botas e casacos. Essa é só uma amostra da lista de suprimentos levados por Borchgrevink e seu time.

E boa parte desse estoque continua intacto até hoje, sob responsabilidade da Antarctic Heritage Trust (AHT), organização neozelandesa sem fins lucrativos que faz viagens periódicas à Antártida oriental para preservar os objetos que os primeiros exploradores deixaram para trás. Nada pode ser retirado. Cada lata de comida é patrimônio da humanidade e, após passar por um delicado processo de preservação, é devolvida à prateleira ou caixa originais.

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Membros da missão Terra Nova – que alcançou o Polo Sul sob comando de Robert Scott –, descansam nas beliches da cabana do Cabo Evans, em outubro de 1911. (ANTARCTIC HERITAGE TRUST/Creative Commons)

Além das cabanas pioneiras de 1898 – onde há mais de 1,5 mil itens inventariados –, há quatro acampamentos históricos preservados no litoral do Mar de Ross, a região da Antártida mais próxima da Austrália, que foi ponto de partida das primeiras incursões rumo ao Polo Sul.

Esses lugares são como cápsulas do tempo. Graças à temperatura e a embalagens reforçadas – decoradas com rótulos típicos da Era Vitoriana –, boa parte dos alimentos não só está preservada como mantém o aroma original. São potes de geleia, vidros de molho inglês e até bombons de limão, armazenados com xícaras e toalhas de chá, cachecóis e meias, carvão e pólvora.

(Maurício Pierro/Superinteressante)

Alguns itens rendem boas histórias: é o caso de uma lata com um pedaço de bolo de frutas secas de cerca de 1910, que passou incólume até hoje. “Tinha um cheiro de manteiga rançosa muito, muito leve; tirando isso, o bolo parecia comestível!”, comentou Lizzie Meek, especialista em preservação de itens históricos, ao abrir a embalagem um século depois.

A receita da vovó foi deixada na Antártida por outra missão famosa: a do britânico Robert Scott, que desembarcou por lá em 1912. Sua expedição de cinco homens foi a segunda da história a alcançar o Polo Sul geográfico – chegou lá só um mês depois de outro time, liderado por Roald Amundsen, fincar a bandeira da Noruega na latitude 90°00’ S, em dezembro de 1911.

”Açúcar britânico refinado absolutamente puro, 14 lb” (6,3 kg), estampam as caixas encontradas na cabana de Robert Scott. A missão levou 2,3 toneladas de açúcar para a Antártida. (ANTARCTIC HERITAGE TRUST/CORTESIA)

A cabana da missão de Scott era bem maior e mais confortável que as de 1898. “A palavra ‘cabana’ é enganosa”, escreveu o britânico em seu diário. “Nossa residência é uma casa de tamanho considerável, para todos os efeitos a melhor já erguida nos polos. Tem 15 m de comprimento, 7,5 m de largura e 2,7 m de pé direito.”

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Após a incursão, Scott e seus homens morreram tentando voltar para o litoral, e ele se tornou um herói nacional no Reino Unido. A próxima grande missão ao continente gelado só seria organizada 45 anos depois, em 1956, quando uma equipe liderada pelo britânico Vivian Fuchs desembarcou no litoral ocidental da Antártida – região mais próxima da América do Sul – e começou uma travessia de 3,4 mil km até a região do Mar de Ross, na ponta oposta. No caminho, eles passaram pelo Polo Sul.

Foram encontrados 362 kg de carne enlatada na cabana da missão Nimrod, comandada por Ernest Shackleton entre 1907 e 1909. (ANTARCTIC HERITAGE TRUST/CORTESIA/Reprodução)

O neozelandês Edmund Hillary deveria ficar nas redondezas de uma base no local de chegada, abrindo caminho para o grupo que se aproximava. Mas decidiu avançar até o Polo Sul também, e chegou lá antes de Fuchs – feito que, somado à sua escalada pioneira do Monte Everest, em 1953 (entre outros heroísmos), lhe rendeu o título de Sir.

Sua residência antártica, também preservada pelo AHT, é mais moderna – e atesta a evolução da tecnologia após a 2ª Guerra Mundial. A restauração, terminada em 2017, levou 237 dias – e devolveu às paredes externas a pintura original, laranja e amarela. Hoje ela não está mais isolada: virou o edíficio “A” da Base Scott, um complexo de pesquisa operado pela Nova Zelândia que tem dezenas de prédios e abriga 85 pesquisadores no verão. A vida na Antártida segue dura. Mas é quase tranquila à sombra do inverno pioneiro de Borchgrevink.

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Visão geral da cabana da missão Nimrod, no Cabo Royds. Shackleton e seus homens, por questões de segurança, desistiram de tentar chegar ao Polo Sul. (ANTARCTIC HERITAGE TRUST/CORTESIA/Reprodução)

 

Fontes: Antartic Heritage Trust (AHT); Exploring Polar Frontiers: A Historical Encyclopedia, Vol. 1, de William J. Mills; First on the Antarctic Continent, de Carsten E. Borchgrevink.

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