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Apartheid: o racismo legalizado

Em pleno século 20, num dos países mais ricos do continente, negros foram tratados como párias por política de Estado – mesmo sendo a maioria da população. Bem-vindo ao Apartheid na África do Sul.

Por Alexandre Carvalho
Atualizado em 23 out 2019, 17h27 - Publicado em 23 out 2019, 16h46

“Qual é a utilidade de ensinar matemática a uma criança Bantu [negra sul-africana] se ela não tem como usá-la na prática? A educação deve treinar as pessoas de acordo com as oportunidades que elas têm na vida.” A declaração foi feita, em meados dos anos 1950, pelo homem responsável por estabelecer os direitos e deveres da população negra na África do Sul da época.

Seu nome era Hendrik Verwoerd (1901 – 1966), o político que viria a ser conhecido mundialmente como o arquiteto do Apartheid – primeiro como “ministro de Assuntos Nativos”, depois como primeiro-ministro. Na educação, Verwoerd criou um estatuto que impunha às crianças negras um ensino extremamente inferior ao oferecido aos filhos dos brancos (e 20 vezes mais barato). Os negros estudavam em escolas precárias, superlotadas, com professores mal preparados. Até aí, nada muito diferente do que acontece com a população negra, pobre, no Brasil – agora em pleno século 21. Mas a política segregacionista dos sul-africanos conseguia ser ainda mais cruel: enquanto crianças brancas aprendiam línguas, ciências, história e aritmética, o foco da educação para negros era o trabalho braçal. Plantio, conservação do solo, tarefas domésticas… Crianças treinadas para a servidão por política de Estado. “Os negros nunca devem ser apresentados aos pastos mais verdes da educação”, afirmaria o ministro. “Eles precisam saber desde cedo que sua situação na vida é a de cortadores de lenha e carregadores de água.”

A educação desigual é só um entre os muitos exemplos da política criminosa que foi o Apartheid na África do Sul. O regime impedia os negros de ascender socialmente, de votar, de escolher onde morar, no que trabalhar e de circular livremente. Uma história de preconceito, ódio e autoritarismo que revoltaria o mundo, mas que também teve heróis.

Boa vizinhança

Apesar de o primeiro contato europeu na região ter acontecido em 1487, com a chegada do explorador português Bartolomeu Dias, foi só no começo do século 19 que a Cidade do Cabo, que viria a ser a capital do futuro país, se tornou colônia britânica. Enquanto ingleses se assentaram no norte e no leste do território, outras regiões eram ocupadas pelos colonos bôeres (gente de origem holandesa, francesa e alemã). Essa colonização foi expulsando, cada hora para um lado, os negros nativos da África do Sul, um movimento que se intensificou com a descoberta de diamantes, em 1867, e de ouro, em 1884. Quando os ingleses se saíram vitoriosos de guerras contra os bôeres, criaram a União Sul-Africana, em 1910, um domínio predominantemente britânico. E uma das primeiras medidas do novo país foi lançar a Lei das Terras dos Nativos, em 1913, restringindo a propriedade de terras por negros. A independência completa do Reino Unido viria em 1931: uma África do Sul livre – menos para negros, mestiços e indianos, que viviam com crescentes dificuldades impostas pelo governo. Dificuldades que se institucionalizaram em 1948, quando o Partido Nacional, de extrema-direita, chegou ao poder e estabeleceu uma política que aterrorizaria o planeta.

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“A nossa política é chamada de ‘Apartheid’, que infelizmente tem sido mal compreendida, e poderia talvez ser melhor descrita como uma política de boa vizinhança, aceitando-se que existem diferenças entre as pessoas.” Conceito curioso de “boa vizinhança”, esse do Hendrik Verwoerd. Em 1950, seu Ato das Áreas de Grupo delimitou setores específicos para a moradia dos negros – quase sempre nas zonas rurais, com infraestrutura e saneamento precários. Eram os chamados “bantustões”, cidades-pátrias supostamente autônomas dentro do próprio país, mas que sofriam intervenções constantes do governo quando não andavam na linha. Na prática, era um “aprimoramento” daquela lei de 1913, que já havia estabelecido que a minoria branca podia ficar com 90% da África do Sul, enquanto a maioria negra devia se espremer nos 10% restantes – as terras menos férteis. De um lado, 3 milhões de brancos; do outro, 11 milhões de negros, mais 2 milhões de indianos e mestiços.

Mas ninguém podia reclamar de inflexibilidade do governo quanto a esses locais. Quando brancos achavam que uma área pertencente aos negros tinha algum valor imobiliário, as moradias eram logo derrubadas, e os habitantes remanejados sem que pudessem opinar. Se um negro quisesse residir perto do trabalho, tinha de ser em grandes favelas, as townships, sem proteção do governo. Esse cidadão de segunda classe vivia num vaivém de lares.

Uma breve exceção foi Sophiatown, que ficava a oeste de Joanesburgo, onde havia um grau razoável de liberdade nos anos 1940 e 1950. Os habitantes podiam, por exemplo, ter a propriedade de suas casas. Apesar da pobreza e da superlotação, a cidade foi adotada por artistas, o que lhe rendeu fama de boêmia – lembrava uma Nova Orleans africana. Negros de outras regiões iam até Sophiatown para ouvir os músicos, como a enfermeira Miriam Makeba, que viraria cantora de sucesso internacional – e ativista contra o Apartheid. Havia clubes de jazz e muitas festas. Mas tanta alegria acabou incomodando os brancos que moravam nos subúrbios próximos, e iniciou-se um movimento para que a população – 65 mil negros – fosse mandada para longe. Então, o governo estabeleceu que os moradores iriam se mudar para um lugar distante: Soweto, cidade que ficaria famosa pela resistência antirracista. Para garantir a evacuação, 2 mil policiais chegaram três dias antes da data combinada, no meio da madrugada, pegando o povo despreparado. Arrombaram as casas e colocaram todo mundo em caminhões.

(Ejor/Getty Images)

Os “vizinhos” negros também tinham sua circulação restringida. Pela Lei do Passe, os negros precisavam carregar uma identificação que apontava seu grupo racial – como os judeus na Alemanha nazista. Para circular e trabalhar como empregados de brancos, só com esse salvo-conduto em dia. E a Lei de Reservas de Amenidades Separadas, de 1953, estabeleceu os locais públicos que podiam ou não ser usados por negros. Na prática, separava de vez o cotidiano de brancos e “seus vizinhos”.

Direitos trabalhistas? Os mineiros negros ganhavam cerca de 15 vezes menos do que seus pares brancos, trabalhando 15 horas a mais por semana atrás de pedras preciosas. Eram confinados em alojamentos distantes de suas áreas de moradia e não podiam receber visita da família. Em sua grande maioria, os negros eram mineiros, operários ou empregados domésticos. Faziam apenas o trabalho sujo que nenhum branco queria.

Pela igualdade – e pela cerveja

A minoria branca tinha o poder econômico e as armas da polícia. Isso explica a longevidade da submissão da maioria do povo sul-africano a um governo que só queria saber de arrasá-lo. Mas nem sempre foi de cabeça baixa. A resistência ao regime segregacionista existiu desde o começo. E nem era exclusividade dos negros: brancos progressistas e veteranos da 2ª Guerra também se opuseram ao Apartheid. Entre eles, muitas mulheres.

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A professora inglesa Helen Joseph foi uma delas. Chocada com a situação das negras na África do Sul, ela criou a Federação das Mulheres Sul-Africanas, um grupo de lobby, e liderou em 1956 uma marcha de 20 mil mulheres em Pretória, contra a Lei do Passe. As manifestantes permaneceram 30 minutos em frente ao palácio do governo, cantando “When you strike a woman, you strike a rock. And you’ll be crushed” (“Quando você ataca uma mulher, você ataca uma rocha. E será esmagado”). Nesse mesmo ano, Helen foi presa, acusada de alta traição ao governo. Absolvida em 1961, acabou recebendo ordem de prisão domiciliar em 1962, agora pelo Ato de Sabotagem, uma forma que o Estado encontrou de impedir que ativistas se reunissem para organizar a oposição. Mas a marcha que ela organizou seria lembrada todos os anos, como o Dia da Mulher Sul-Africana.

As mulheres também estiveram à frente de outro momento emblemático da resistência ao regime, em 1959, lutando pelo direito, veja só, à produção de cerveja artesanal. Naquele ano, o governo lançou uma lei que regulamentava o consumo de álcool. Foram abertos bares só para negros onde era servida uma cerveja diferente da qual a população estava acostumada, agora com baixo teor de álcool e supostamente mais nutritiva. Com isso, a cerveja produzida em casa – majoritariamente pelas mulheres – foi proibida. As “mestres-cervejeiras” entenderam a decisão das autoridades como uma ofensa à cultura e à tradição dos negros sul-africanos. Houve revolta e destruição de um dos novos bares do governo. Resultado? Repressão, claro. Duas mulheres foram mortas pela polícia e mil foram presas.

O regime ganhou repercussão internacional no ano seguinte, quando a população negra organizou uma mobilização nacional contra a obrigatoriedade do porte de salvos-condutos. Na cidade de Sharpeville, perto de Joanesburgo, 15 mil manifestantes pacíficos cercaram uma delegacia e pediram para ser presos. A polícia recebeu os pacifistas a bala: 250 feridos, incluindo mulheres e crianças, e 70 mortos. A imagem das dezenas de caixões enfileirados revoltou o país, que foi tomado por uma onda de fúria e enfrentamentos. Salvos-condutos foram queimados, e o governo determinou toque de recolher e estado de emergência. Cerca de 20 mil pessoas foram presas. Finalmente surgiram manifestações contra o Apartheid nos Estados Unidos e na Europa. Como resposta, o Conselho de Segurança da ONU exigiu que a África do Sul parasse com a segregação. No ano seguinte, Hendrik Verwoerd declarou que seu país estava deixando a Commonwealth, a comunidade de nações que reúne 54 países – por conta da censura à sua política em relação aos negros.

(Hulton Deutsch/Getty Images)

Em 1961, a população negra fez uma greve nacional, e o governo achou por bem prender 10 mil africanos. Entre os organizadores, estava Nelson Mandela, já desiludido com o pacifismo da resistência. Questionado na época pela imprensa, ele disse: “É inútil e fútil ficarmos falando de paz e não violência a um governo cuja única resposta são ataques selvagens contra pessoas desarmadas”. Mandela passou a defender a criação de uma ala armada do seu partido, o Congresso Nacional Africano (CNA). Em agosto de 1962, após 15 meses sendo caçado pela polícia, Nelson Mandela foi preso. A pena: prisão perpétua. Foi até uma boa notícia para sua esposa, Winnie: havia grande chance de o ativista ser condenado à morte.

A repressão levou ao endurecimento das Nações Unidas contra o regime sul-africano. Em 1963, uma resolução criou um embargo internacional à venda de armas para o país. A ONU temia que os armamentos fossem usados contra a própria população – a parte negra, claro.

Em 1973, uma onda de greves sem lideranças consolidadas irrompeu na África do Sul. Essas greves fragilizaram a política segregacionista no país, assim como a ascensão do movimento Consciência Negra, que teve entre seus líderes Steve Biko, morto em 1972, e que virou um mártir antiapartheid (e que seria tema de música de Peter Gabriel). O Consciência Negra pregava a autoestima da população reprimida, adotando o lema “Black is Beautiful”, do movimento negro nos Estados Unidos. No entanto, enquanto nos EUA a ideia era reforçar as características físicas dos negros, com cabelos black power, na África do Sul o buraco era mais embaixo. O lema ali significava que o negro deveria olhar para si mesmo como um ser humano. Parece óbvio, mas não quando o governo lhe trata a pontapés. O fato é que, a partir dos anos 1970, o regime entrou em declínio irrecuperável, questionado inclusive pela minoria branca. Em 1973, outra resolução da ONU considerou o Apartheid “crime contra a humanidade” e, em 1974, a África do Sul foi excluída da Assembleia Geral.

Com a queda mundial do preço do ouro, um dos seus principais produtos de exportação, em 1985, veio um novo tipo de crise: inflação e desemprego. Os bairros negros se tornaram cada vez mais violentos. Etnias e grupos políticos diferentes brigavam inclusive entre os próprios negros. E agora havia uma novidade constrangedora para o governo: a mídia internacional passou a cobrir a violência da repressão. Empresários do país buscaram diálogo com líderes do CNA no exílio. Afinal, a África do Sul em colapso não era boa para os negócios. Esse estado de emergência durou até 1989, quando Frederik Willem de Klerk assumiu a presidência e acelerou as medidas antiapartheid. Foi o último branco no cargo.

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Isolados do mundo

A queda do regime contou com uma mobilização internacional nunca vista em relação a outros países africanos. Para se ter uma ideia do quanto a segregação repercutiu mundo afora, três ativistas sul-africanos negros ganharam o Nobel da Paz: o professor e líder religioso Albert Lutuli (1960), o bispo Desmond Tutu (1984) e Nelson Mandela (1993). Outras sanções viriam. Nos anos 1980, os EUA, o Reino Unido e mais 23 países proibiram que suas empresas fizessem comércio com fábricas e bancos sul-africanos. O boicote atingiu a cultura, o turismo e até o esporte.

No dia em que foi solto, em 1990, Mandela já era um septuagenário, após 27 longos anos de cadeia. O carro que o levava do presídio para fazer um discurso foi imobilizado, chacoalhado e golpeado por um mar de pessoas, ébrias de alegria. “Senti que a multidão estava prestes a nos matar com seu amor”, diria mais tarde. Não era para menos. A libertação de Madiba, como os negros chamavam seu líder, era um sinal inequívoco de que o regime segregacionista realmente estava com os dias contados.

O fim oficial veio quatro anos depois, quando Mandela foi eleito presidente numa eleição multirracial e ordenou que reescrevessem a Constituição da África do Sul. Foi quando o preso político mais famoso do mundo cumpriu sua promessa de libertar a maioria negra da repressão de uma sequência de governos racistas.

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