Arquétipos: o nosso programa básico
Se você se considera um livre pensador, com uma mente independente o suficiente para ter ideias únicas, absolutamente inovadoras, que jamais ocorreram a outros seres humanos, é melhor pensar de novo. Ao analisarmos os princípios da psicologia analítica, fundada pelo psiquiatra suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), concluiremos que a maior parte daquilo que pensamos, conjecturamos e acreditamos ter sido descoberto por nós mesmos já foi pensada, já está escrita, já está descrita e, de certa maneira, já era predeterminada.
Leonardo Mourão
Isso não acontece porque antes de nós outros bilhões de homens e mulheres já pensaram, imaginaram e sonharam todas as possibilidades existentes sobre a mesa. Como se fosse possível já terem se esgotado todas as ideias e sacadas. Não, o que faz com que as linhas gerais do nosso comportamento corram pelos mesmos trilhos – tenhamos nascido em São Paulo, nas Ilhas Salomão ou há 20 mil anos nas savanas africanas – é a existência de esquemas mentais que habitam, de forma indefinida e etérea, os mais profundos recônditos da nossa mente. São os chamados arquétipos ou, como a psicologia junguiana também os classifica, o inconsciente coletivo.
Acreditar nisso costuma ser um desafio para a nossa autoestima, mas as exaustivas pesquisas realizadas por Jung, e confirmadas metodicamente por ele na análise de centenas de pacientes, mostram que todos nós compartilhamos essa série de impressões mentais inconscientes – independentemente da nossa origem, cultura e raça, que são determinantes para sermos o que somos. Assim, ao nascermos, já trazemos em nossa mente imagens genéricas e poderosas da figura da mãe, do pai, de futuros parceiros, filhos, nascimento e morte. Isso mesmo antes de falarmos ou de termos pensamentos conceituais, lógicos. Essas imagens serão o norte de nossa jornada; o ponto de referência, a estrutura sobre a qual construiremos nossas vivências afetivas e em sociedade. Não importa que tenhamos passado toda a nossa vida em um orfanato, sejamos solteirões convictos ou que a mais leve sugestão de termos filhos nos provoque arrepios. Os arquétipos, conforme Jung explicou em um artigo escrito em 1928, são, de certa forma, depósitos de toda nossa experiência ancestral, mas não necessariamente a experiência em si. Nós os herdamos e os trazemos conosco, gostemos ou não.
Freud não gostou
Rejeitar, nos primórdios do século passado, o solidificado conceito de que a nossa mente, ao nascermos, era uma folha totalmente em branco que só viria a ser preenchida quando nossas experiências deixassem suas marcas sobre ela não conquistou os corações e cérebros da então nascente psicanálise. Entre outros, o próprio Sigmund Freud (1856-1939), o ícone incontestável da psicanálise, após um período de encantamento com os trabalhos de Jung, acabaria por afastar-se por diferenças irreconciliáveis de opinião. Além das críticas de seus pares, Jung amargaria ainda as acusações de que era simpático aos nazistas, ataques esses que o tempo, e os próprios nazistas que queimariam seus livros em praça pública, viriam a negar.
No conceito junguiano, os mitos são expressões dos arquétipos – assim como o são os contos de fadas e o folclore. Pode-se dizer que os mitos são a expressão desses no chamado inconsciente coletivo, outra criação polêmica de Jung. “O mito é uma imagem, uma história, não é o arquétipo em si”, afirma Maria Zélia de Alvarenga, psiquiatra e analista junguiana pela International Association for Analytical Psycology. “Poderíamos fazer a seguinte comparação: o arquétipo é como um software, o Word, por exemplo; quando você usa esse programa para digitar uma história, essa história será um mito, mas que só pôde vir à luz graças a esse software-arquétipo.”
Grande parte dos leitores já deve ter ouvido a explicação simbólica da criação do homem, que teria sido feito com barro, água e sal. No livro do Gênesis, comum às religiões judaica, cristã e muçulmana, é dito: “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em seu nariz o fôlego da vida, e o homem se tornou ser vivo”. Esse mesmo mito é encontrado nas culturas grega, asiáticas, ioruba e de vários índios americanos. Aliás, um estudo antropológico sobre uma antiga tribo de índios americanos, os winnebagos – que ocuparam a região dos Grandes Lagos, no nordeste dos EUA, é uma das mais impressionantes constatações de como os mitos são partilhados pelas mais diversas culturas.
Realizada pelo antropólogo e folclorista polonês naturalizado americano Paul Radin (1883-1959), uma pesquisa intitulada O Ciclo Heróico dos Winnebagos deu um profundo mergulho nos heróis um mito presente em todo o planeta daquela civilização. Radin batizou os ciclos de evolução dos heróis winnebagos, que identificou como sendo 4, com uma terminologia que seria adotada amplamente pelos seguidores de Jung: ciclo Trickster, ciclo Hare, ciclo Red Horn e ciclo Twin. Cada um desses ciclos, escreveu Paul Radin no seu trabalho publicado em 1948, correspondia aos esforços que nós, humanos, empreendemos para vencer cada uma das etapas do nosso crescimento biológico. De maneira bastante resumida, o ciclo Trickster (“travesso”, em uma tradução livre), corresponde ao primeiro período da vida, quando somos crianças e pestinhas. Nele somos egoístas, cruéis, interessados apenas nas nossas necessidades mais imediatas. A etapa seguinte, o Hare (a “lebre”), é um personagem mais civilizado, que supera os impulsos infantis e instintivos da fase anterior, como um jovem adulto. O Red Horn (“chifre vermelho”) é o herói arquetípico, que vence corridas e batalhas, com todos os requisitos para enfrentar as forças que surgem em seu caminho. Não parece com o que fazemos quando chegamos à idade adulta? Finalmente os Twins (“gêmeos”, em inglês), que foram unidos no ventre materno, mas separados ao nascer, representam dois lados da natureza humana: um, conciliador, reflexivo e sem iniciativas; o outro, dinâmico, rebelde, capaz de grandes feitos. Conquistar o equilíbrio entre eles é tarefa que alcançamos quando estamos completamente maduros.
Essa longa explicação está aqui para mostrar que esses heróis, mesmo moldados em uma cultura remota com a qual nada nos identificamos, a dos winnebagos nesse caso, estão presentes, com outros nomes e histórias, em todas as civilizações. O Trickster, por exemplo, é conhecido por povos tão distantes como bascos, maoris, celtas, árabes, estonianos e hindus. Nós, brasileiros, temos também nossos tricksters, como o saci-pererê e o curupira. Este último chegou a assustar até mesmo o venerável padre José de Anchieta, que, segundo conta Câmara Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, escreveu em 1560: “É coisa sabida, e pela boca de todos corre, que há certos demônios, a que os brasis chamam coropira, que acometem os índios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-nos e matam-nos”. Anchieta garantia que “muitos irmãos” já haviam visto índios mortos por esse terrível personagem, que se materializa como um anão de cabelos vermelhos e pés ao contrário, com os calcanhares para a frente. E Câmara Cascudo diz mais: o mesmo personagem fazia parte do folclore de todos os países da América do Sul. A única boa característica do curupira era amar e defender as árvores, “como Diana, a deusa dos bosques na mitologia romana”.
O psicanalista americano Joseph Henderson (1903-2007) identifica no capítulo Os Mitos Antigos e o Homem Moderno, da coletânea O Homem e Seus Símbolos (Editora Nova Fronteira), organizada pelo próprio Jung, alguns tricksters modernos. Um deles seria Charlie Chaplin, em especial nas confusões que apronta no filme de 1936 Tempos Modernos, no qual Chaplin é um operário enlouquecido pela torturante linha de montagem em uma fábrica. Os humanos comungam de todos esses símbolos que emanam dos arquétipos. Mas por que nós, seres comuns, precisamos conhecer os arquétipos e seus desdobramentos em expressões como os mitos, os contos de fadas e o folclore? A terapeuta junguiana Maria Zélia de Alvarenga explica que é importante identificarmos os arquétipos, em suas mais diferentes expressões, que estão mais em destaque em determinados momentos de nossa vida, para estarmos certos de que não estamos sendo “possuídos” por eles. Maria Zélia dá um exemplo tristemente comum. Algum anônimo jovem de 18 anos que tem o costume de dirigir em disparada, como se fosse um Ayrton Senna. Um dia, acaba batendo o carro e morrendo, como aconteceu com o piloto brasileiro em 1994, no Grande Prêmio de Ímola. “Se examinarmos o perfil desse jovem, ele provavelmente foi tomado pelo mito do herói, semelhante a uma possessão: por mais que ele saiba dos riscos para si e para os outros daquela ação, não consegue livrar-se dela.”
O famoso pensador romano Sêneca (4 a.C-65) dizia algo parecido, ao fazer referência à tragédia, um estilo teatral que floresceu na Grécia e usa à exaustão mitos e heróis: é importante conhecer a tragédia, para não ser a tragédia. Estruturas arquetípicas que compõem a psique, a estrutura mental do ser humano, como a da Mãe, do Pai, do Fraterno, da Conjunção, da Curiosidade, da Vaidade, da Vingança, da Raiva, são neutras em si, mas podem desencadear as desgraças a que Sêneca se referia. “A grandiosidade do ser humano é, mesmo estando sob a influência dos arquétipos, poder escolher um jeito próprio de ser”, diz a analista. “O que o sonho manda, o que o mito conta, o que o pai e a mãe alertam, o que o amigo denuncia, o que o amado ou a amada chamou a atenção, esses são os mil ouvidos que você tem.”
Arquétipos são os símbolos humanos
Segundo um estudo, cada ciclo mítico na jornada de um herói equivale a uma etapa de nosso crescimento biológico.