Berços esplêndidos
Ao longo do tempo, a cama já serviu aos mais variados usos: nela se fazia política e serviam-se banquetes. Também se escrevia música e literatura.
Já houve tempo em que lugar de discutir assuntos de Estado era a cama — e ninguém estranhava. Na França, por exemplo, o rei Carlos VIII (1470-1498) organizou em seu leito a reconciliação política com seu inimigo, o duque de Orleans. Entre lençóis e almofadas de seda eles resolveram seus problemas, certamente embalados pelo aconchegante clima do quarto de dormir. Como prova de confiança mútua, ao fim da conversa dormiram na mesma cama.
O célebre escritor alemão Thomas Mann dizia que a cama é um “móvel metafísico”, onde ocorrem os mistérios do nascimento, do amor e da morte, e que à noite se transforma em “navio mágico no qual embarcamos para o mar dos sonhos”. Fonte de inspiração de muitos artistas, para nossos antepassados a cama tinha mil outras utilidades além de lugar de repouso — ao menos para os que dela podiam desfrutar.
Os antigos gregos dormiam, comiam e celebravam suas festas em leitos ricamente decorados; os romanos faziam tudo isso em seus relaxantes divãs. Na Idade Média, a cama era um luxo reservado aos poderosos. Para um nobre medieval, receber visitantes placidamente deitado em sua cama era sinal de prestígio e prova de superioridade diante do recém-chegado. Mas nem as famílias aristocráticas dispunham de leitos individuais para cada um de seus membros.
O normal era ter em casa uma grande cama que era compartilhada por pais, filhos e até convidados, se houvesse. Também os animais domésticos eram tranqüilamente admitidos a se aninhar nesse leito coletivo — mesmo porque eles ajudavam a manter seus donos aquecidos nas longas noites do inverno europeu. Isso não era coisa só de pobre. “O que me mantém realmente quente são os seis cachorrinhos que tenho e que se metem comigo na cama”, contava Liselotte von der Pfalz, nora de Luís XIV, rei da Franca (1638-1715).
Para a maioria dos mortais, o lugar de dormir não era exatamente um primor de conforto, para não falar em higiene. Dormia-se em enxergas de palha, que, além de absorverem a umidade, eram a moradia ideal para toda a espécie de insetos. O leito do imperador Carlos Magno (742-814), que ele dividia com convidados, conforme o costume da época, consistia em um manto de palha estendido sobre uma base de madeira. Era coberto com um colchão forrado de plumas, em cima do qual se estendiam lençóis. Uma almofada ficava na altura da cabeça. Como soberano que era, certamente Carlos Magno contava com a criadagem para lhe renovar a palha de vez em quando.
O hábito de repartir a cama com outras pessoas estendeu-se no tempo. Só na segunda metade do século XVIII, apareceria um médico inglês, o doutor Graham, para advertir que essa prática era abominável e anti-higiênica. Mas os contemporâneos do bom doutor não se impressionaram muito e ele acabou entrando para a história por outro motivo — como inventor da cama “celestial”, como a chamou. Exibida em 1778, ela era equipada — segundo Graham — com “uns seiscentos imãs artificiais, que renovavam o vigor sexual das pessoas que nela deitavam, e proporcionavam um movimento doce, ondulante e vibratório”. Uma intriga de alcova da época dizia que uma das mais famosas apreciadoras desse sugestivo leito era Lady Hamilton, amante de Lord Nelson, o almirante que venceu os franceses na batalha de Trafalgar em 1805. Talvez a cama “celestial” tenha sido a precursora das camas vibratórias de hoje.
Quando Carlos VIII chamou o duque de Orleans para acertarem suas diferenças a bordo do leito real, não estava inovando. Desde a Antigüidade, fazia-se política na cama. Alexandre Magno, da Macedônia (356-323 a.C.), decidia os destinos de seu império do alto de sua cama de ouro. Os imperadores romanos davam audiências reclinados em luxuosos divãs. Francisco I, da França (1494-1547), tinha por hábito premiar o almirante Bonnivent, chefe de sua esquadra, após cada batalha vitoriosa, com o honroso convite para partilhar de sua cama por alguns momentos.
O monarca Filipe IV, o Belo (1268-1314), fez de seu dormitório a sala de reuniões mais concorrida de todo o reino da França. Ao redor de sua luxuosa cama — de veludo azul bordado com lírios dourados — se reuniam os conselheiros eclesiásticos, os ministros, os representantes das corporações e os embaixadores estrangeiros. Nos séculos XVII e XVIII era comum que as damas e rainhas recebessem amigos na cama e a eles era concedido o privilégio até de sentar-se ou deitar-se nela. Tal hábito chamava-se ruelle e era sinônimo de estima.
Mas o figurão mais chegado a uma cama foi sem dúvida o cardeal Richelieu, o astuto primeiro-ministro de Luís XIII, da França (1601-1643). Ele só se levantava para despachar com o rei. Quando precisava viajar, não fazia por menos — levava a cama consigo, indo e vindo por vilas e cidades e derrubando muros e paredes que obstruíssem o caminho de sua companheira inseparável. Não é de estranhar que ela o vitimasse: a falta de movimento mais o excesso de comida deixaram Richelieu sofrendo de dificuldades respiratórios, transtornos cardíacos e circulatórios. Morreu de apoplexia aos 57 anos. Na cama.
De acordo com registros disponíveis, Cleópatra, a bela rainha do Egito, também viajava acompanhada de sua cama, tão grande e pesada que quarenta escravos fortes precisavam carregá-la. Com tantos usos, não é de admirar que a cama tenha servido de refúgio e abrigo dos poderosos nos momentos mais sofridos. Carlos Xll, da Suécia (1682-1718) ficou dezessete meses na cama, não porque padecesse de alguma enfermidade do corpo, mas para curtir a profunda depressão que lhe causou a derrota na batalha de Poltawa para o czar da Rússia, Pedro, o Grande.
A cama tem sido fiel cúmplice das mais esdrúxulas manias, Ricardo III, que usurpou o poder na Inglaterra de 1483 a 1485, depois de ter mandado assassinar todos os aspirantes ao trono, entre os quais seus sobrinhos, com medo de ser assassinado transformou sua cama em uma fortaleza cercada por uma grade de metal. Acabou morrendo numa batalha.
O leito também foi o lugar de nascimento de sublimes criações do espírito humano. Escritores tão diferentes como o alemão Goethe, os franceses Voltaire e Rousseau e o norte-americano Mark Twain produziam suas obras na cama. Em tempos mais modernos, Winston Churchill, duas vezes primeiro-ministro britânico (1940-1945 e 1951-1955), escreveu na cama boa parte de sua História da Segunda Guerra Mundial. O italiano Gioacchino Rossini, famoso compositor de óperas do século passado, entre as quais O Barbeiro de Sevilha, costumava trabalhar no leito. Dizem que seu apego à cama era tanto que, se uma partitura caísse no chão, ele preferia reescrevê-la a ter de levantar para apanhá-la.
Depois da Revolução Industrial, que gerou a sociedade competitiva e apressada dos dias atuais, ficar muito na cama passou a ser visto como grave defeito de personalidade e sinônimo de improdutividade e vagabundagem.
Ao mesmo tempo, porém, a tecnologia cada vez mais avançada oferece aos apreciadores camas cinematográficas, de dar inveja aos potentados de antigamente: vibratórias, redondas, com cobertores elétricos e colchões de água, que ondulam suavemente a qualquer movimento, e até com bar e equipamentos de som e vídeo acoplados.
Para saber mais:
Chá de todas as horas
(SUPER número 3, ano 4)
O lado feminino do Brasil colonial
(SUPER número 4, ano 8)
(SUPER número 12, ano 10)