Castelo sinistro
Fundada pelos portugueses para guardar ouro na África, ela virou depósito de escravos - pasme - depois de ser tomada por índios tapuias brasileiros a serviço da Holanda! A fortaleza de Elmina, em Gana, conta um pedaço da História do Brasil que pouca gente conhece.
A pesada porta de ferro se abre com um baque. O brilho do sol ofusca os homens acorrentados que emergem, às dezenas, do calabouço escuro e fétido do castelo. São negros da tribo ashanti, capturados em guerra e vendidos aos donos da fortaleza. Atordoados pela luz, eles atravessam sem saber a chamada porta sem retorno. Dali serão embarcados nos porões do navio para uma torturante viagem de dois meses rumo a Salvador. Um quinto morrerá no caminho. Os que sobreviverem terão de trabalhar como escravos nas plantações de cana-de-açúcar da Bahia. Nunca mais verão sua África natal.
Essa cena se repetiu cotidianamente entre 1620 e 1850 na fortaleza Elmina, hoje em Gana. Erguida em 1482, foi a primeira grande construção européia na África tropical. Para várias tribos e numerosos reinos, como os ashantis e os akans, Elmina simboliza o holocausto provocado pelo tráfico negreiro. Para as nações européias que exploraram a costa africana, como Portugal, Holanda, Inglaterra, Dinamarca, Suécia e Alemanha, o lugar foi fonte de riquezas durante 400 anos. De lá saiu o ouro que financiou as navegações portuguesas no século XVI. E os escravos que fizeram prosperar as usinas de açúcar da colônia do Brasil. O nome sugestivo foi dado pelos lusos, que chegaram à costa de Gana em 1471, procurando ouro. Naquela época a riqueza de um país se media pela quantidade de metais preciosos que ele acumulasse. O ouro estava lá. E numa quantidade tão grande que o rei Afonso V (1432-1481), entusiasmado, batizou o lugar de A Mina. Como Portugal não queria concorrência, o sucessor de Afonso V, D. João II (1455-1495), construiu em 1482 o castelo de São Jorge da Mina, ou simplesmente Elmina, na foz do Rio Benya, para garantir militarmente o monopólio.
Realmente, foi uma mina. Por volta de 1550, calcula-se que os portugueses tirassem de lá 310 quilos de ouro por ano. Na época, o tráfico de escravos funcionava ao contrário: os lusos levavam quinquilharias e escravos negros de outras regiões, como a costa do Benin, para os reis locais em troca do metal. Em 1500, 10% das reservas mundiais de ouro provinham da região. Nenhum outro europeu pôs os pés ali até o começo do século XVII. O monopólio lusitano da Costa do Ouro só foi quebrado em 1637, quando uma frota holandesa tomou Elmina. A partir daí, o castelo mudou de função. De centro importador, virou pólo exportador de escravos. E, logo, a Europa inteira se engajou no comércio de gente.
Um negócio lucrativo e arriscado
Imagine o oeste da África no final do século XV: um grande ajuntamento de tribos primitivas numerosas, que agregavam nativos facilmente aprisionáveis por inimigos tecnologicamente muito superiores. O sonho de um escravagista europeu. Pois é. Só que os portugueses não encontraram nada disso na Costa do Ouro. O que havia ali eram reinos organizados, com grandes populações e agricultura desenvolvida, acostumados ao comércio, pois negociavam sal e ouro com árabes desde o século VII.
Esses povos, como os ashantis, os fantis e os akans, viviam em pé de guerra uns com os outros. É que, para eles, a riqueza se media principalmente pelo número de súditos do reino. A maneira mais prática de conseguir gente era atacar uma outra tribo e escravizar seus habitantes. Da noite para o dia, viajantes, nômades e populações inteiras de aldeias próximas às fronteiras de reinos e tribos viravam escravos. A pessoa era uma medida de valor.
Os lusos não tinham concorrentes europeus, mas, em compensação, dependiam de humores políticos instáveis para poder negociar o ouro com sossego – além de abastecer seus fortes. Diplomáticos, em 1480 conseguiram aliar-se a um desses reinos, o dos akans, da bacia do Rio Volta, que lhes cedeu o terrreno para a construção de Elmina.
Mas a população recebeu-os com um pé atrás. Era a primeira vez que estrangeiros se instalavam na terra. Os akans temiam que os forasteiros se intrometessem em seus assuntos internos. Por isso deixaram bem claro que a cabeça-de-praia era alugada, não vendida. Nos anos seguintes, muitas vezes os europeus foram ameaçados e tiveram que pagar tributos extras quando um reino do interior conquistava um da costa.
A perda da confiança dos reis poderia representar o fim de um forte e quilos de ouro a menos para a Coroa. A necessidade de preservar a política de boa vizinhança era tanta que fazia parte do regulamento de Elmina “manter a paz com os negros”. O que, é claro, incluía distribuir presentes. Em 1520, por exemplo, o monarca do reino de Wassa recebeu dos portugueses uma túnica árabe, um gorro vermelho e um… penico.
Apesar do esforço, motins e ataques aconteceram várias vezes. Em 1693, os dinamarqueses do castelo de Accra foram postos para correr pelos belicosos akwamus. Em 1727, a feitoria portuguesa da Ajuda, hoje no Benin (o antigo Daomé), foi tomada pela tribo dos daomeanos. No ataque, comerciantes europeus foram seqüestrados e roubados. O diretor da feitoria teve de fugir carregado em uma rede. Escapou por pouco de ser pisoteado.
O castelo vira uma senzala
A tranqüilidade dos portugueses na Costa do Ouro acabou no final do século XVI. De olho nos lucros fabulosos com o ouro africano, holandeses, ingleses e dinamarqueses começaram a construir seus próprios fortes. Para piorar, a descoberta do metal precioso pelos espanhóis no México e no Peru fez seu preço despencar na Europa.
Além disso, por volta de 1620, a Mina portuguesa começou a secar. Sem ouro, os europeus mudaram o rumo do negócio. Em vez de levar escravos negros do Benin para trocar por metal com os chefes locais, passam a exportá-los para as cada vez mais lucrativas plantações de cana-de-açúcar, algodão e tabaco das colônias americanas, como o Brasil. Em poucos anos, todo o litoral africano pontilhou-se de feitorias européias.
Os lucros eram tantos que até a Holanda – cuja religião protestante condenava o comércio de gente – resolveu aderir. “Para o escravismo não há diferenças religiosas”, conta à SUPER o jornalista e historiador paulista Jorge Caldeira. Inimigos de longa data dos portugueses, os holandeses tomaram o castelo de Elmina em 1637. Suas tropas eram formadas por mercenários europeus e tapuias, índios brasileiros de língua jê que haviam se aliado ao conde Maurício de Nassau durante a invasão holandesa de Pernambuco.
Para garantir o controle do tráfico de escravos, Nassau também tomou o forte português de Shama, em 1638, e outros entrepostos portugueses na África, São Tomé, Benguela e Luanda, em 1641. Sempre ajudado pelos índios. Era o fim de 160 anos de dominação portuguesa. Para negociar escravos em Elmina, traficantes brasileiros e lusos passaram a pagar imposto aos holandeses. Entre os séculos XVII e XVIII, o comércio de gente atingiu o pico: a média anual de escravos embarcados na Costa do Ouro variava entre 10 000 e 35 000 indivíduos, segundo o historiador ganês Kwesi Anquandah. Só no século XVIII, a região exportou cerca de 677 000 negros para as Américas, boa parte por Elmina. Para quem era contrário à escravidão por motivos religiosos, os holandeses estavam se saindo muito bem.
O tráfico rendeu à Europa e suas colônias lucros gordos e mão-de-obra farta até 1850, quando a Inglaterra passou a adotar medidas duras para reprimi-lo – entre elas, capturar navios negreiros. Em 1872 o castelo de Elmina foi cedido pela Holanda aos britânicos. Em 1957, quando a República de Gana tornou-se independente, seu controle passou para os africanos. Em vez de escravos, o velho castelo hoje recebe estudantes barulhentos e meia dúzia de turistas. Bom descanso, Elmina.
Algo mais
Apesar de desconhecida pelos europeus até o século XV, a Costa do Ouro figura em textos árabes desde o século VII. A descrição mais detalhada do local foi feita em 1068, por um geógrafo cordobês chamado Abu Ubaid Abdala ibn Abd el-Aziz ibn Mohammed ibn Ayyub al-Bakri. Nome fácil de decorar. Os árabes negociavam com os africanos muito antes dos portugueses.
Ontem a Serra Leoa, a guerra, a caça ao leão, o sono dormido à toa sob as tendas d·amplidão! Hoje… o porão negro, fundo, infecto, apertado, imundo, tendo a peste por jaguar…
(Castro Alves, O Navio Negreiro)
Como na Idade Média
O castelo foi projetado para defender os portugueses de ataques por terra e por mar.
As muralhas fortificadas abrigavam até 100 canhões
A ilustração holandesa, de 1665, mostra fortaleza instalada entre o rio e o mar. Só um de seus lados podia ser atacado por terra
Ouro a preço de penico
Comprar barato e vender caro. Essa era a cartada dos europeus para obter ouro, a única mercadoria que lhes interessava na África até o século XVI. Em 1480, um mercador comprou uma mulher e sua filha em Serra Leoa por uma bacia de barbeiro e três braceletes de cobre. Na vila de Shama vendeu-as por 13 pesos de ouro. Como cada peso equivalia a 6,2 gramas do metal, a mulher e a menina renderam algo em torno de 1 380 reais em ouro, pela cotação brasileira atual.
Um negócio da China – quer dizer, da África. Cientes dos gostos dos nativos, os portugueses levavam ouro e davam escravos, roupas árabes e artigos de cobre e latão, como colares, panelas e “bacias de urinar”. Os penicos eram um sucesso absoluto no escambo. Só em Elmina mais de 270 000 foram trocados por ouro entre 1504 e 1582.
Guerreiros inconformados
Os escravos vindos da Costa do Ouro chegaram ao Brasil em maior número entre 1700 e 1775. Apesar de pertencerem a diversas etnias, receberam todos o nome genérico de “negros da mina” ou “minas” – como a mulher ao lado, retratada pelo pintor alemão Johann Moritz Rugendas (1802-1858) –, por terem sido embarcados no porto de Elmina. Eram prisioneiros de guerra, bem pouco dispostos a suportar calados a escravidão. Os minas participaram de todas as revoltas de escravos do século XVIII e da formação de inúmeros quilombos. Eram destemidos e pouco obedientes. Também tinham aversão a trabalhos pouco higiênicos. Um povo mina, os akans – em cujo território foi construído o castelo de Elmina –, protagonizou um caso raro de final feliz. Desembarcados no Suriname, fugiram para o interior da selva, onde reconstruíram sua antiga sociedade. Hoje são chamados de maroons e ainda vivem na Amazônia surinamesa.