Cerveja sem fronteiras: conheça as características das geladas de cada país
Entenda de onde vêm as grandes tradições cervejeiras do mundo. E saiba por que, a cada dia, elas ficam menos importantes.
Nunca a geografia importou tão pouco para os apreciadores da bebida alcoólica mais popular do mundo. Há cerveja japonesa feita no Brasil, cerveja britânica produzida na Alemanha, cerveja irlandesa fabricada na Nigéria e cerveja cuja nacionalidade é impossível de precisar – feita por gente que não tem fábrica própria e executa suas receitas em qualquer lugar do planeta.
Ao contrário do vinho, que tem vínculos indissociáveis com sua terra – já que solo e clima alteram a qualidade da frágil uva -, cerveja é pura propriedade intelectual, abstrata e portátil. Dos seus quatro ingredientes básicos, três (malte, lúpulo e levedura) são armazenáveis e transportáveis. O quarto é água, que pode ser tratada ao gosto do freguês. O que define a cerveja, portanto, é a receita e sua execução. Uma receita de cerveja, quando seguida à risca, atinge sempre o mesmo resultado, em qualquer lugar.
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Isso é novidade. Antes de existir tecnologia que facilitasse a padronização e o transporte, cerveja era tão regional quanto vinho. Bélgica, Inglaterra e Alemanha, países frios demais para plantar uvas, tradicionalmente dividem a safra de cereais entre pão e cerveja. Os Estados Unidos, membros tardios desse seleto clube, foram os responsáveis pela quebra de paradigmas que apagou fronteiras no atlas da cerveja. Até hoje, quase tudo o que se produz em qualquer parte do mundo segue os ditames de uma das quatro grandes escolas cervejeiras: a alemã, a belga, a inglesa e a americana. Conheça essas quatro tradições e entenda o mapa-múndi da cerveja, hoje acessível a qualquer um, em qualquer país.
Alemanha
O que conhecemos como cerveja
Embora os antigos sumérios, babilônios e egípcios fabricassem um tipo de cerveja – um líquido alcoólico de grãos fermentados -, só no final da Idade Média a bebida virou algo que você teria coragem de pedir. Foi quando se começou a usar a flor do lúpulo como ingrediente, para conservar a cerveja. O efeito colateral foi uma melhora drástica no sabor.
Nessa época os alemães viraram referência no assunto. Quando se fala em “escola alemã”, isso inclui outros países de cultura germânica, como Áustria e República Tcheca. Até hoje, os três países dominam o pódio do consumo per capita no mundo: ouro para os tchecos (148,6 litros/ano); prata aos austríacos (107,8 litros), bronze aos alemães (106,1 litros). Em comparação, cada brasileiro bebe meros 68,3 litros por ano.
A indústria cervejeira alemã foi moldada pela hegemonia da Baviera, ao sul do país, sobre os outros estilos regionais – e, consequentemente, pela Reinheitsgebot, a Lei da Pureza da Baviera, de 1516. A regra, de início, estabelecia que lúpulo, água e malte de cevada (o grão submetido a calor e umidade, para ficar pronto para fermentar) eram os únicos ingredientes permitidos. Sua finalidade era impedir que os moinhos vendessem trigo aos cervejeiros, encarecendo o pão.
Ocorre que a lei, depois adotada em toda a Alemanha, engessou os horizontes criativos cervejeiros. Dentro dessas limitações, os alemães criaram a escola de cerveja mais influente do mundo. Se as cervejas alemãs parecem monótonas ao lado das americanas ou belgas, é porque elas são o que temos como referência.
Outra peculiaridade alemã é a predominância das lager. Segundo a história mais difundida, a lager surgiu porque os bávaros têm o costume de fermentar cerveja em frias cavernas subterrâneas. Isso teria selecionado as cepas de levedura, os fungos responsáveis pela fermentação, eliminando as que gostam de um calorzinho.
Para quem bebe, significa cervejas sem os aromas exuberantes produzidos pela fermentação com levedura ale, que preferem clima mais morno. A principal exceção é a weizenbier (“cerveja de trigo”, também conhecida como weissbier, “cerveja branca”), uma ale das mais aromáticas.
A grande façanha alemã, porém, foi a criação do estilo pilsen – queacabou transmutado na cervejinha leve do dia a dia. Não estranhe a mudança abrupta de rota: para falar da cerveja mais popular do mundo precisaremos viajar ao Reino Unido.
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Inglaterra
Velhos rituais com apelo hipster
Apesar de desdenharem as cervejas claras, os britânicos tiveram papel fundamental na criação do líquido amarelo. Foi na Inglaterra do século 17 que se desenvolveu a secagem indireta do malte, com o uso de coque – um derivado do carvão mineral com combustão estável que não produz fumaça -, possibilitando a criação de cervejas claras. Antes disso, os grãos eram secos com carvão, de chamas incontroláveis: a tosta era inevitável e todas as cervejas eram escuras.
Logo criou-se um mercado sedento pela nova pale ale. A tradução literal, “ale pálida”, pode enganar. Muitas exibem tons avermelhados, acobreados, até marrons. Mas é preciso colocar em perspectiva: pale ale era pálida em comparação com as outras cervejas na época de sua invenção.
O sucesso da pale ale inglesa atraiu o interesse dos alemães. E a resposta germânica à desbotada britânica usava maltes ainda mais claros, além de ser filtrada até ficar transparente, algo inédito em 1842. A nova cerveja surgiu na Boêmia, atual República Tcheca, na cidade de Pilsen. A região era famosa também pela sua indústria de cristal. Assim, a cerveja transparente ganhou o mundo em copos transparentes, um belo marketing.
Mas voltemos à Inglaterra. Tradicionalmente, existem duas vertentes nas Ilhas Britânicas, chamadas de bitter e porter. Por bitter, entende-se a pale ale e suas variantes, como ordinary bitter e extra special bitter. Há também aquela que viria a ser a queridinha dos bebedores de cerveja artesanal no século 21: a india pale ale, IPA para os íntimos. A IPA nasceu da expansão da Inglaterra vitoriana e da necessidade de abastecer compatriotas que moravam nos confins do império. Para aguentar a viagem de navio à Índia, ela é formulada com quantidades enormes de lúpulo e álcool, dois conservantes naturais, o que explica o sabor marcante e o alto teor alcoólico. As porters, por sua vez, envolvem maltes tostados que resultam em cervejas que vão do marrom (brown porter) ao negro (algumas stouts). Aí o amargor vem menos do lúpulo e mais da cevada.
O ritual britânico de beber cerveja envolve o pub – diminutivo de public house, “casa pública” -, misto de boteco, estalagem e centro comunitário. Na versão tradicional, o pub serve cask ale: chope tirado de um barril mantido sem refrigeração e bombeado manualmente, sem cilindro de gás carbônico. Obviamente sem gás e morno, como nos tempos de Charles Dickens.
Bélgica
Sem limites para a criatividade
Enquanto alemães seguem leis do século 16 e ingleses ignoram a invenção da geladeira, os belgas não impõem limites à criatividade. Às receitas incorporam especiarias, frutas e cereais variados, não têm preconceito contra açúcar e corante, brincam com a fermentação espontânea e até imitam os espumantes de Champagne, com rolha que estoura e tudo.
A falta de freios dos belgas tem relação com a história do país. Do século 15 até 1945, o território foi governado por franceses, italianos, espanhóis, austríacos, holandeses e alemães. Com uma área pouco maior que a de Alagoas, a nação tem três idiomas, além de vários dialetos. Tamanho rebuliço cultural não poderia deixar de se refletir na produção cervejeira da “escola belga”, que abarca a Holanda e um naco da França.
“Os camponeses dançantes do quadro de Bruegel [Pieter Bruegel, o Jovem, pintor renascentista] estão provavelmente bebendo lambic, a cerveja ácida da região de Bruxelas”, escreve o especialista em cervejas americano Randy Mosher no livro Tasting Beer (“Degustando Cerveja”). Elas até hoje são feitas com técnicas medievais que deixam os tanques de fermentação abertos para dar passagem a fungos e bactérias.
Muitos dos estilos belgas mais populares, porém, são mais jovens. Segundo Mosher, “dubbel e tripel são invenções do século 20, então o que você pode ter ouvido nem sempre é a história verdadeira”. A dubbel é escura (resultado da adição de corante caramelo) e a tripel é clara, mas ambas exalam aroma de especiarias, resultante das leveduras ale selecionadas para produzir muitos ésteres e fenóis (substâncias aromáticas). Algumas fórmulas levam açúcar para superalimentar as leveduras. Como consequência, são bombas alcoólicas com uma doçura que mascara a potência. Bem antes dos americanos, os belgas já faziam cervejas extremas.
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Estados Unidos
Da padronização à diversidade
A cerveja que o Brasil conhece como pilsen e o resto do mundo chama de lager se chama, nos manuais de estilo cervejeiro, american standard lager. Ela é uma descendente da pilsner original, aquela cerveja cristalina criada na Boêmia, adaptada aos padrões de consumo do mundo moderno pelos imigrantes germânicos nos EUA.
Na década de 1870, alguns desses forasteiros – entre eles Adolphus Busch, criador da marca Budweiser – já haviam espalhado redes de distribuição no gigantesco território americano, valendo-se das maravilhas tecnológicas do século 19, como a ferrovia, a pasteurização e o telégrafo. Longe da Baviera, os imigrantes deram uma banana para a Reinheitsgebot e começaram a usar cereais não maltados para produzir cerveja leve e barata: Anton Schwartz, um cientista cervejeiro da Boêmia, é creditado como o homem que aperfeiçoou o método de cozimento do milho e do arroz para esse fim.
Com a mecanização das linhas de produção e o barateamento do transporte refrigerado, as loiras geladas conquistaram os EUA e logo alastraram-se pelo mundo. A american standard lager se tornou sinônimo de cerveja no Brasil, na China, no Japão, no México, na Europa, na África. Até na Bélgica dos mil estilos, a marca mais vendida é uma lager, a Jupiler.
Foi essa a primeira revolução cervejeira americana: a padronização. Mas foi também nos Estados Unidos que a reação a essa padronização explodiu, mais recentemente. No início da década de 1980, só havia no país cerca de 50 fabricantes de cerveja. Hoje, há quase 2 mil produtores independentes americanos, que inventaram o fenômeno contemporâneo da craft beer, ou cerveja artesanal.
Por não ser ancorada em tradições medievais, a nova escola americana escapa de anacronismos e dá total liberdade à criatividade. O jeito ianque se manifesta também no exagero, tanto de álcool (que vem em dose cavalar nos estilos cujos nomes levam os adendos double ou imperial) quanto de lúpulo.
Mas nem só de imperial IPAs vive a cena americana. Muitos produtores passaram a reproduzir os estilos de outros lugares, a fundir dois ou mais estilos e a criar receitas que não se encaixam em estilo algum. Cervejeiros de outros países também perceberam que não precisavam de amarras e imitaram a audácia americana. E aí as fronteiras do atlas cervejeiro acabaram de evaporar.
Cerveja global
O fim de todas as fronteiras
O Brasil não possui uma tradição cervejeira que possa ser chamada de “escola”. Há quase 20 anos, a paulista Colorado – hoje sob controle do conglomerado Ambev – acrescenta ingredientes nativos como mandioca e rapadura a suas receitas. O mesmo faz a Amazon Beer, de Belém, cujas fórmulas contemplam a flora amazônica: priprioca, taperebá, cumaru. Mas, sem demérito algum aos rótulos da Colorado e da Amazon, eles são apenas estilos consagrados de outras escolas – IPA, weizenbier, stout – com um tempero de brasilidade.
A busca por uma identidade nacional cervejeira parece não fazer mais sentido num momento em que as escolas tradicionais estão abrindo mão de seus dogmas para deixar a criatividade fluir. Sediada em Munique, ponto de peregrinação de fiéis beberrões, a Crew Republic faz o que seria inimaginável na Baviera de anos atrás: tem três versões de IPA, rótulos com estética hipster e uma linha experimental.
Linha experimental é o playground dos mestres-cervejeiros. Nela se encaixam receitas que não se adequam a estilo algum, com produção minúscula e preço tendendo ao exorbitante. Algumas levam ingredientes inusitados (frutas, por exemplo), outras invertem conceitos consagrados (tipo uma pilsen negra). A cervejaria Brooklyn, de Nova York, tem sua linha experimental; a BrewDog, que ganhou o mundo a partir de um lugarejo no norte da Escócia, também.
Algumas cervejarias nem sede têm. Assim é a Mikkeller, do dinamarquês Mikkel Borg Bjergsø. Ele é o mais famoso dos cervejeiros ciganos, que, em vez de investir alto para montar uma fábrica, alugam o maquinário alheio. Mikkel já recorreu ao expediente em vários países, mas tem uma planta industrial favorita: a Prouef, na Bélgica, especializada em atender terceiros. A cerveja resultante é belga ou dinamarquesa? E a Transatlântica Brett, feita em Ribeirão Preto por um cervejeiro brasileiro, um alemão e um belga, é de onde?
O derretimento das linhas que separam as escolas cervejeiras é fruto de uma tomada de consciência: cerveja boa pode ser feita em qualquer lugar. O nome do país impresso no rótulo é um detalhe muito menor do que a data de validade.
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Todos os ingredientes
Cerveja é simples: uma combinação de quatro elementos
1. MALTE: Nem toda cevada é malte, nem todo malte é de cevada. O malte é resultado de um processo para elevar o teor de açúcar na cevada, no trigo e em outros cereais. Trata-se da germinação controlada e interrompida do grão. O calor e a umidade induzem a brotação: assim a semente transforma seu amido em açúcares para alimentar o embrião. Só que o germe é morto por secagem antes que comece a consumir o açúcar. O malte pode ser aquecido só até secar ou continuar no forno até tostar. A cor da cerveja depende do grau de tosta.
2. LEVEDURA: Os cervejeiros aprenderam logo a induzir a fermentação, mas demoraram séculos para identificar os agentes que transformavam o açúcar em álcool e gás carbônico. As leveduras, fungos microscópicos, só foram identificadas no século 19. O tipo de fermentação divide as cervejas em dois grandes grupos: lager (que fermenta entre 8 e 16°C) e ale (14 a 25°C).
3. LÚPULO: O lúpulo, uma florzinha da família da maconha, ganhou notoriedade nestes tempos em que a cerveja amarga é supervalorizada – há gente que escolhe o que vai beber pelo IBU (unidade internacional de amargos, na sigla inglesa). Mas o lúpulo não serve só para deixar a bebida mais amarga. Sua função, desde a Idade Média, é colaborar para a boa conservação do líquido, uma vez que ele libera substâncias antioxidantes. Também contribui para a estabilidade da espuma e, claro, empresta seus aromas à cerveja.Existem dezenas de variedades de lúpulo, cada uma com características aromáticas próprias e típica de uma região específica.
4. ÁGUA: Entre 90% e 95% da cerveja é água, portanto sua composição é muito importante para a bebida. Quando a tecnologia era precária, apenas algumas localidades privilegiadas possuíam fontes com o pH ideal e o mix de minerais adequado para a breja. Mas hoje qualquer água pode ser tratada para adquirir as características ideais para qualquer estilo de bebida. Com alguns cliques na internet, um cervejeiro de Cuiabá ou Caruaru aprende a “fabricar” água de Pilsen, Dublin ou Munique.