Como um oficial nazista jogou o Brasil na Segunda Guerra Mundial
Em agosto de 1942, um capitão de corveta alemão entediado e vaidoso afundou seis navios brasileiros, matou 607 pessoas - e obrigou o País a reagir
Às 17h48 de 15 de agosto de 1942, o capitão de corveta alemão Harro Schacht, comandante do submarino U-507, anotou no seu diário de guerra: “No início do crepúsculo, um (navio a) vapor é avistado a nove milhas náuticas (16,7 km) no rumo 288°. Manobrei adiante. Na escuridão, o vapor acendeu suas luzes de navegação, entretanto, não há marcas de neutralidade”. No visual do U-507, no litoral de Sergipe, estava o Baependy, navio de carga e passageiros que levava a Olinda um grupo da artilharia do Exército com suas famílias.
Faltava pouco para escurecer, o que impediria o reconhecimento do navio brasileiro. A embarcação estava com as luzes acesas, mas não tinha bandeira e nome do País pintados no casco e iluminados – as tais “marcas de neutralidade visíveis”. Schacht ainda anotaria que se tratava de um “passageiro-cargueiro”, o que a rigor não o enquadrava no universo dos navios que poderiam ser torpedeados.
“Mas Schacht mostra-se ansioso por alcançar a sua primeira vitória após mais de 40 dias de missão. Voltar para casa com todos os 22 torpedos intactos seria constrangedor para um comandante laureado como ele – um motivo para a chacota dos demais submarinistas”, escreve o historiador militar Durval Lourenço Pereira, no livro Operação Brasil: O Ataque Alemão que Mudou o Curso da Segunda Guerra, lançado em 2015.
Quando chegou a 1.500 metros do alvo, às 18h53, Schacht disparou dois torpedos. O rastro espumante dos bólidos rasgou o mar, mas não acertou o alvo. O capitão não desistiu: aproximou-se mais do navio e acionou mais dois torpedos às 19h12 a apenas mil metros de distância.
“Dois disparos para prevenir qualquer possibilidade de transmissão de rádio pelo vapor”, anotou no diário. Dentro do navio, tripulação e passageiros, a maioria cariocas, haviam acabado de jantar. A noite estava animada. Era a comemoração do aniversário do imediato do navio, Antônio Diogo Queiroz, e uma pequena banda animara a refeição.
O choque do torpedo com o compartimento de carga sacodiu a embarcação. As vidraças quebraram, a madeira do casco rangeu, e o navio começou a adernar. As pessoas, muitas delas sangrando, caminhavam desnorteadas quando o segundo torpedo acertou os motores e provocou imensas labaredas que atingiram a altura do mastro principal, segundo a descrição do capitão Lauro Moutinho dos Reis, um dos 36 sobreviventes da tragédia. As luzes se apagaram, e a escuridão e os gritos de socorro tomaram conta.
A tripulação não conseguiu nem sequer enviar um S.O.S para pedir socorro e desvencilhar os botes salva-vidas. Vários foram tragados pela água. Moutinho também foi arrastado ao fundo do mar, imprensado por dois fardos que se soltaram da carga do navio. Mas, por conterem material flutuante, os volumes voltaram à superfície e, como um milagre, trouxeram o capitão de volta. Outros não tiveram a mesma sorte: 286 pessoas morreram.
Schacht não perdeu tempo. Saiu de novo à caça de outra embarcação. Às 21h03, quase duas horas depois de afundar o Baependy, o U-507 explodiu o Araraquara, um barco de carga e passageiros. Em cinco minutos, o navio partiu-se ao meio e levou 131 pessoas para o fundo do mar.
O capitão nazista seguiu sua sanha destruidora. Às 2h10, já no litoral norte da Bahia, avistou o terceiro navio, o Aníbal Benévolo, e lançou mais um torpedo. A embarcação foi atingida no centro e afundou em 45 segundos. Das 154 pessoas a bordo, apenas quatro sobreviveram. Numa época em que as telecomunicações e os sistemas de defesa da costa ainda eram precários, a notícia dos ataques demorou para chegar ao continente – em forma de náufragos e de cadáveres na praia. Enquanto isso, o submarino alemão seguiu à caça.
Em 17 de agosto, dois dias depois do primeiro disparo, Schacht avistou uma embarcação mercante cinza, sem bandeira. Era o Itagiba, um navio de cargas e passageiros. O alemão disparou mais um torpedo que atingiu o barco no centro. Passageiros e tripulantes abandonaram o navio e pularam em botes salva-vidas – mas um deles foi atingido pela queda do mastro durante o naufrágio.
O iate Aragipe, que estava nas proximidades, percebeu a explosão e partiu para acudir os sobreviventes – cerca de 150. Outro navio, o Arará, um velho mercante de 1907, se juntou ao resgate do Itagiba, a essa hora envolto em fumaça. Schacht acompanhou a movimentação. Ele havia avaliado não ser apropriado gastar artilharia tão perto do continente. Mas, quando o Arará se aproximou e recolheu 18 náufragos, Schacht mudou de ideia e disparou outro torpedo a apenas 200 metros de distância. Dos 35 tripulantes do Arará, apenas 15 sobreviveram a mais um ataque do capitão de corveta do Terceiro Reich.
Corpos na praia
Schacht deu por concluída a operação e se afastou para o alto-mar para fazer reparos no submarino – ele ainda afundaria mais um barco brasileiro, o Jacyra. Depois dos ataques, dezenas de corpos de mulheres, homens e crianças chegaram ao litoral de Sergipe.
A cena é parecida com a que chocou o mundo em setembro de 2015, quando o corpo do menino sírio Alan Kurdi apareceu na praia de Bodrum, na Turquia, depois de um naufrágio. Uma das cenas mais devastadoras é a do tenente Castelo Branco desolado à beira da praia com a morte da mulher e do filho, que estavam no Baependy. Foi quando o Brasil se deu conta do ocorrido. A opinião pública entrou em choque, e os jornais cobraram uma decisão imediata de Vargas.
O Brasil havia cortado relações comerciais e diplomáticas com os países do Eixo em janeiro de 1942, mas mantinha sua independência do conflito. Também não era novidade o ataque a navios brasileiros. Vários barcos carregados de borracha haviam sido alvo dos alemães.
“Mas, em geral, os oficiais de Hitler davam um tiro de alerta, os marinheiros saltavam nos botes salva-vidas, e o navio era afundado”, relata o historiador René Gertz. Além disso, os naufrágios anteriores haviam ocorrido no Caribe, na costa americana – logo, zona de guerra. Desta vez, o ataque acertara navios de cabotagem e de passageiros, deixando mais de 600 cadáveres na costa brasileira. E um país indignado.
No dia 18, terça-feira, o Departamento de Imprensa e Propaganda divulgou uma nota sobre o ocorrido. No Rio, houve passeatas em diferentes pontos da cidade que rumaram até o Palácio da Guanabara. Vargas, ainda debilitado por um acidente de carro que sofrera em maio, saiu na sacada, amparado pela mulher e a filha, e fez um discurso de improviso. “A agressão não ficará impune”, disse. No sábado, 22 de agosto, atendendo ao clamor popular, Vargas reuniu os ministros e comunicou que o Brasil decretaria “estado de beligerância” contra a Alemanha e a Itália – na prática o País já estava entrando em guerra.
Enquanto isso, o U-507 seguia no Atlântico. Como precisou emergir à superfície, foi avistado por uma patrulha americana. Pilotado pelo tenente John M. Lacey, o Catalina 83P6 abriu fogo contra o U-507, mas errou o alvo. Lacey acreditava ter acertado o submarino, e o feito foi comemorado pela imprensa do Brasil e dos EUA.
Que nada. O U-507 ainda acertaria mais duas embarcações antes de deixar o litoral nordestino rumo à África Ocidental em 27 de agosto. O Catalina só conseguiria acertar o submarino no ano seguinte, causando a morte do capitão.
A verdade vem à tona
Até bem pouco tempo atrás, acreditava-se que a ordem para atacar os navios de brasileiros fazia parte dos planos da Marinha alemã, com aval direto do próprio Hitler. Mas uma investigação no diário de bordo de Harro Schacht e nos arquivos de guerra alemães feita pelo tenente-coronel Durval Pereira desmente essa versão.
Em pelo menos duas oportunidades, Hitler teria atuado para conter a Marinha alemã, conforme revelam os autos do Terceiro Reich. A Ordem de Operações nº 53, a famosa Operação Brasil, teve, sim, origem no Comando de Guerra Naval alemão e determinava que os submarinos atacassem o Brasil em bando – provavelmente para retaliar o País por ter rompido relações diplomáticas e estar mais próximo dos EUA. Mas a operação foi sustada.
“A Ordem de Operações nº 53 não será realizada”, diz o diário de guerra do Comando de Submarinos. Já a interrupção da operação está num relatório do Comando de Operações Navais sobre a ação do U-507, afirmando que ela fora abandonada por motivos políticos. Segundo Pereira, é provável que o ministro das Relações Exteriores nazista, Joachim Von Ribbentrop, tenha convencido o Führer que a entrada do Brasil na guerra poderia ter um efeito-cascata na América do Sul – Chile e Argentina poderiam se unir contra o Eixo.
A devassa feita pelo Tribunal de Nuremberg nos arquivos alemães não encontrou um único documento que pudesse incriminar as lideranças alemãs pelas mortes no litoral brasileiro. “A razão é evidente: tal ordem jamais foi dada”, sustenta Pereira. Os documentos mostram que o U-507 recebeu a autorização apenas para fazer manobras no litoral com um objetivo específico: interceptar comboios Aliados rumo à Cidade do Cabo.
Tédio mortal
A Alemanha havia alertado o Chile e a Argentina que era necessário sinalizar os seus navios para não se tornarem alvo dos ataques dos submarinos alemães. Mas o Brasil não fora avisado da medida, conforme consta nos documentos descobertos por Pereira – outra retaliação por ter rompido relações com o Eixo em 1942. Isso acabou servindo como justificativa para afundar os navios, segundo apontamentos no seu diário de bordo.
A pesquisa no Arquivo Federal alemão mostra que Harro Schacht recebera uma missão de atacar navios isolados em uma zona bem longe do Brasil, o que decepcionara o oficial. O tédio de não avistar nenhum inimigo ao longo de semanas, enclausurado dentro da cabine de um submarino, levou o comandante a invadir o litoral brasileiro atrás de serviço. O oficial parecia estar convencido de que o tráfego naval americano estava passando pela costa brasileira, como anotou em seu diário.
Na época, até a diplomacia alemã ficou intrigada com o disparo dos torpedos e suspeitava que os ataques haviam partido dos italianos. O próprio Schacht foi inquirido diversas vezes logo após os naufrágios para dar explicações, mas tergiversou. “Se Schacht não tivesse aprontado aquilo que aprontou, o Brasil não teria entrado na guerra”, diz René Gertz, professor aposentado da UFRGS.
Quase dois anos após o ataque alemão, em 30 de junho de 1944, o Brasil enviou o primeiro contingente de tropas rumo à Itália. Ao longo dos oito meses seguintes, 25 mil soldados brasileiros lutaram na 2ª Guerra, e 476 deles morreram.