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Corleones do Brasil

Como a Polícia Federal mostrou em abril, durante a Operação Hurricane, eles têm poder suficiente para serem chamados de

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h28 - Publicado em 31 Maio 2007, 22h00

Eles não vestem capotes escuros, mas ternos brancos, camisas floridas abertas e correntes de ouro no peito. Aprenderam a se organizar tendo contato com mafiosos do Sul da Itália. Dos Corleones, um dos mais temidos clãs da máfia siciliana, conseguiram as primeiras máquinas caça-níqueis que vieram ao Brasil. Antes bicheiros da periferia, se tornaram mafiosos donos de bingos que dão lucros milionários. Compram juízes, o apoio de políticos e a amizade de celebridades. Como a Polícia Federal mostrou em abril, durante a Operação Hurricane, eles têm poder suficiente para serem chamados de

Famílias católicas e criminosas. Redes de extorsão, contrabando, jogo ilegal e tráfico de drogas. Amizade com juízes, policiais e artistas. Líderes admirados e temidos pela comunidade, com códigos de conduta rígidos e execuções brutais de inimigos e traidores. Você já viu esse filme. O cenário pode ser Nova York, Chicago, a Sicília ou… o Rio de Janeiro. Isso mesmo. A máfia também existe no Brasil e não fica devendo nada para as outras do mundo.

Nossos chefões nasceram com o jogo do bicho e, nos últimos anos, viram seus lucros irem às alturas com as máquinas caça-níqueis instaladas em cada padaria da maioria das cidades brasileiras. No último dia 13 de abril, uma sexta-feira, eles passaram por uma cena comum na história de qualquer máfia: uma grande blitz policial. Uma megaação desmontou um grupo organizado de bicheiros, delegados, juízes e desembargadores. Batizada de Hurricane, a operação da Polícia Federal indiciou 29 pessoas e levou 25 para a cadeia. Segundo a polícia, o esquema envolvia o pagamento mensal de até R$ 30 000 para juízes e desembargadores a fim de garantir que as casas de bingo, com suas máquinas caça-níqueis, continuassem a funcionar. A exploração de jogos pela iniciativa privada tinha sido autorizada pela Lei Zico, de 1993, mas, desde 2001, os bingos são considerados uma atividade não regulamentada. Para funcionar, precisam ter liminares concedidas por juízes.

Com a operação da PF, ficou claro que o grupo que operava as máquinas caça-níqueis era muito mais sofisticado que um grupo de crime organizado. “Trata-se de um grupo que tem conexões com outras máfias, principalmente da Itália”, afirma a juíza Denise Frossard, que em 1993 levou 14 integrantes da cúpula da máfia carioca para a cadeia (leia entrevista ao lado). Além do apoio de magistrados e políticos, os bingueiros participavam da vida social da elite carioca, dando festas em coberturas de 3 andares em Copacabana, patrocinando escolas de samba e posando ao lado de celebridades globais.

Não é por acaso que nossos mafiosos são tão parecidos com os originais. É que eles só existem por causa da interferência direta de algumas das maiores famiglias italianas, vindas diretamente da Sicília. O jogo do bicho não seria um império nem teria se modernizado com as máquinas caça-níqueis sem a influên­cia e o dinheiro de dois dos maiores chefes da história, Antonino Salamone e Totò Riina. Para entender como essas conexões são fortes, vamos até onde tudo começou: a Itália do século 19.

Guia da máfia

As máfias são organizações criminosas muito especiais. São diferentes de criminosos comuns ou mesmo grupos de crime organizado. Têm pelo menos 4 grandes características:

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• Mafiosos têm uma estrutura familiar e uma hierarquia rígida. “A máfia se baseia na obediência apaixonada aos superiores”, diz o criminologista americano Peter Reuter, professor da Universidade de Maryland. O chefe máximo, ou capo, é como um pai rigoroso e carismático, que sabe a hora de punir e a de agradar. Os seguidores fiéis são muito bem recompensados. “Essas organizações financiam até o pagamento de faculdade para seus integrantes, para que eles tenham acesso aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário”, diz o advogado Fernando José da Costa, professor da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), em São Paulo.

• A máfia se relaciona bem com a comunidade ao redor. Com os pobres, o mafioso é populista e leal. Compra respeito com pequenos favores, sejam eles bicicletas ou atos de vingança. Mas é implacável com quem não se submete. Com os ricos e poderosos, faz parcerias e participa de festas.

• Gângsteres têm uma profunda intimidade com o poder. Toda máfia que se preze tem policiais e juízes na folha de pagamento. Geralmente, ela atua entre o crime e a legalidade, em atividades não regulamentadas, mas toleradas pela população, como o jogo. Assim, é mais fácil levar juízes para a corrupção.

• Outra característica é a que garante a longevidade desse tipo de organização: ao contrário de outros grupos criminosos, ela opera vários ne­gócios ao mesmo tempo. “As máfias fazem um pouco de tudo. Geralmente começam fazendo a extorsão de pequenos comerciantes e depois vão se aproveitando das brechas da lei em cada região”, diz Peter Reuter. “Onde a bebida alcoólica e os jogos são proibidos, os mafiosos vendem uísque e erguem cassinos clandestinos. Nos locais onde o transporte de cargas não conta com um bom esquema de segurança, eles assaltam caminhões e portos. Em último caso, recorrem ao tráfico de drogas mais pesadas.”

Tudo isso começou no século 19, na Sicília. A ilha tinha passado por duas tentativas de golpe, em 1848 e 1860, vivendo um estado de caos. Foi quando surgiram os primeiros grupos organizados, que protegiam seus membros da confusão reinante. Em 1870, com a Itália já unificada, o Vaticano se declarou independente, e o papa Pio 9º chamou os católicos a reagir contra a autoridade do Estado italiano recém-unificado. Os bandos sicilianos aceitaram o chamado papal e começaram a reagir contra a polícia. “Quando a situa­ção se acalmou, os integrantes desses grupos estavam muito ligados. Eles cha­mavam a própria organização de Cosa Nostra, ‘coisa nossa’ ”, diz o historiador e sociólogo italiano Diego Gambetta, professor da Universidade de Oxford e autor do livro The Sicilian Máfia (“A Máfia Siciliana”, sem edição brasileira). Aqueles que não pertenciam à Cosa Nostra diziam que os fora-da-lei eram um grupo de mafiosi. “Essa palavra tinha um sentido ambíguo”, afirma o sociólogo Gambetta. “Servia para caracterizar a pessoa como arrogante e também como destemida.” Nos anos seguintes, outras duas regiões do sul da Itália também se tornariam berço de grupos fortes – a Calábria e Nápoles, onde surgiu a Camorra. Com o tempo, algumas cidades sicilianas, como Corleone, Cinisi e Croceverde, ganhariam as próprias organizações mafiosas.

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Ainda no final do século 19, centenas de famílias de sicilianos emigraram para os EUA. Com elas, a máfia também atravessou o Atlântico. As famílias mais poderosas começaram a agir em Nova York e Chicago. Em Nova York, 5 grandes famílias se consolidaram no poder: Bonanno, Genovese, Gambino, Luchese e Profaci. Começou então uma série de ciclos, que se estendeu pelo século 20, de famílias fazendo acordos de paz entre si e, quando eles eram rompidos, desencadeavam anos de carnificina. Na década de 1950, um capo italiano foragido da polícia resolveu se esconder nas praias do Rio. Foi assim que a máfia chegou ao Brasil.

Nosso maior capo

Antonino Salamone foi um dos diretores da Cosa Nostra durante as décadas de 1960 e 1970. Em 1963, depois do Massacre de Ciaculli, quando sua organização matou 7 policiais italianos em um atentado à bomba, Salamone veio se refugiar no Brasil. No Rio de Janeiro, ele se aliou a Castor de Andrade, então com 37 anos. Da aliança entre os dois, surgiria a máfia brasileira. Castor deu a Salamone abrigo e um emprego de fachada em uma das empresas da família, a Tecelagem Bangu. “Salamone, condenado nos EUA e na Itália, recebeu a cobertura da ditadura brasileira”, afirma o juiz Walter Maierovitch, ex-Secretário Nacional de Justiça e um dos maiores especialistas em crime organizado no Brasil. “O ministro da Justiça da época, Ar­mando Falcão, permitiu que Salamone virasse brasileiro naturalizado por in­fluência de Castor de Andrade”.

Nascido em 1926, no Rio de Janeiro, Castor teve uma infância confortável. Seu pai, Eusébio, ficou rico explorando o jogo do bicho – uma invenção dos tempos de dom Pedro 2º, criada por um barão amante dos animais. Castor aprendeu as lições de Salamone, que chegou a dirigir a máfia italiana daqui mesmo do Brasil. Com ele, o jogo do bicho se profissionalizou e ganhou todas as características de organização mafiosa.

Castor parece ter seguido um manual com todos os passos para se tornar um poderoso chefão. Primeiro, ele montou uma estrutura familiar marcada pela obediência. Depois, se aproveitou do dinheiro e da capilaridade das bancas de jogo do bicho para enquadrar os comerciantes do bairro de Bangu, na zona oeste do Rio. Para não sofrer assaltos e quebradeiras, era preciso pagar uma taxa de seguro. Para compensar essa extorsão, Castor começou a investir no futebol, o que lhe rendia o carinho da comunidade. Na década de 1960, tornou-se presidente de honra e financiador do time de futebol do Bangu. Como um grande mafioso, Castor é rodeado por histórias que mostram sua autoridade. Em 1966, em um jogo contra o América, no Maracanã, o time do bicheiro vencia por 2 a 1 quando o juiz marcou um pênalti a favor do adversário. Castor invadiu o campo com um revólver na mão. Minutos depois das ameaças do bicheiro, o árbitro marcou um outro pênalti, desta vez a favor do Bangu. O jogo acabou 3 a 2, e no final da temporada o time do coração de Castor ganhou o título de campeão carioca.

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Nos anos seguintes, o bicheiro inovou ao se tornar patrono da Mocidade Independente de Padre Miguel. Em uma época em que os donos de bancas de jogo não se exibiam em público, ele foi para a avenida com sua escola de samba, que venceu o Carnaval carioca 5 vezes entre 1979 e 1996. Já admirado pelos moradores de Bangu, ele se tornou protetor dos pobres. Pais de família de todo o Rio de Janeiro procuravam Castor para pedir a benção e requisitar que ele batizasse os filhos.

O passo seguinte era criar vínculos com o poder. Durante a década de 1970, os secretários de Segurança do Rio recebiam ordens de Brasília para não incomodar o capo. Em 1980, durante um evento no Rio, o presidente João Figueiredo quebrou o cerimonial ao se afastar de todas as autoridades que o cercavam para abraçar o bicheiro. Quando o regime militar acabou, os negócios de Castor de Andrade não foram abalados. “Tenho amigos de direita, de esquerda e de centro. Eu sempre estou com o governo; não tenho culpa se o governo muda de lado”, ele declarou, em 1985, para o repórter Tim Lopes, da Globo, o mesmo que que seria assassinado em 2002 por traficantes cariocas.

Faltava entrar nos ciclos de guerra e paz entre as famílias. Depois de uma série de assassinatos no final da década de 1970, provocados pela disputa de territórios em outros estados, Castor usou o samba para unir os principais líderes do bicho em torno de uma única entidade. Em julho de 1984, 10 representantes de escolas, todos ligados ao jogo, romperam com a Associação das Escolas de Samba da Cidade do Rio de Janeiro e fundaram a Liga das Escolas de Samba (Liesa). Castor foi eleito o primeiro presidente. Além de assumir o controle sobre o Carnaval, a Liesa se tornou o órgão de cúpula do jogo na cidade. A essa altura, Castor já tinha 5 fortalezas instaladas em lugares estratégicos de Bangu e controlava o jogo do bicho em boa parte do Brasil. Mais uma vez, os brasileiros estavam apoiados na história das máfias. Nos EUA, em 1931, os mafiosos Lucky Luciano e Meyer Lansky fundaram em Atlantic City uma comissão nacional que uniu as 5 principais famílias criminosas do país. Em 1958, foi fundada, em um lugar até hoje desconhecido, uma comissão da máfia siciliana. Assim como no Brasil, a instalação desses dois organismos antecedeu uma guerra entre os grupos.

Hoje, o exemplo de populismo de Castor de Andrade está disseminado. Em Nilópolis, outro chefão, Aniz Abrahão David, o Anísio, mantém uma creche para 300 crianças e distribui cestas básicas todo mês e presentes no Natal. Chegou a dar 2 000 bicicletas em uma festa. Anísio e sua família acumulam 40 anos de controle político sobre Nilópolis, onde ele é chamado de “pai”. Um de seus irmãos, Farid Abrahão David, está no 2º mandato de prefeito, e seu primo Jorge David já foi prefeito e deputado estadual. De quebra, outro primo, Simão Sessim, está no 8º mandato de deputado federal.

Conexão Itália

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A criação da Liesa valeu ao Rio um perío­do de calmaria que durou 10 anos. Em meados da década de 1990, os italianos voltariam a intervir na máfia brasileira. Desta vez, para modernizar o negócio. Na década de 1980, a máfia italiana era dominada por Salvatore Riina, conhecido como “o capo dos capos”. Herdeiro de Michele Navarra, assassinado em 1958 por adversários, Totò assumiu o controle sobre o clã dos Corleone. A cidade de Corleone, com 17000 habitantes, é a terra de origem de capos famosos, como Michele Navarra, Luciano Leggio, o próprio Salvatore Riina e Bernardo Provenzano – preso pela polícia no ano passado, depois de viver escondido ali por 40 anos. Na década de 1970, os Corleones consolidaram seu poder na cidade de Palermo matando um sem-número de funcionários públicos, juízes e integrantes de máfias adversárias. Em 1980, um dos inimigos de Totò preferiu fugir da Itália para não morrer. Tommaso Buscetta, membro da família Porta Nuova, de Palermo, veio morar no Rio de Janeiro – onde já tinha estado em 1971, quando conheceu a carioca Cristina Guimarães, que viria a ser sua mulher. Daqui ele negociou a rendição com a Justiça italiana e se transformou no delator mais famoso da história das máfias.

Os depoimentos de Buscetta ao juiz italiano Giovanni Falcone deram início à Operação Mãos Limpas, que acabou asfixiando a máfia siciliana e levando à prisão de Totò, em 1993. Acusado de matar 40 pessoas e ordenar o assassinato de outras 100, o capo continua preso. Já Falcone foi vítima de um atentado em 1992, e Buscetta morreu em 2000, de câncer.

Pouco antes de ser detido, Totò enviou um emissário especial para o Brasil. Lillo Lauricella chegou ao país para armar, na América do Sul, um esquema de lavagem de dinheiro. A idéia era fazer com que o dinheiro recebido na venda de cocaína colombiana fosse investido em negócios de fachada no Brasil. O lucro proveniente daqui seria enviado para a Itália com aspecto de legalidade.

Se Salamone e Tommaso Buscetta faziam parte do esquema romântico e tradicional da máfia dos anos 60, Lauricella representou a segunda leva de mafiosos. Sua maior intenção era fugir da sofisticação da polícia, arranjando jeitos mais modernos de lavagem de dinheiro.

Apoiado por um profissional no assunto, Fausto Pellegrinetti, Lillo circulou com desenvoltura entre os líderes da Liga das Escolas de Samba. Em São Paulo, estabeleceu uma ótima relação com o bicheiro Ivo Noal, que passou a receber uma mesada de US$ 80 000 por mês. A conexão Brasil-Itália foi efetivada quando Lillo providenciou US$ 10 milhões para comprar, em Miami, do empresário espanhol Joaquín Franco Perez, as primeiras 35000 máquinas caça-níqueis que desembarcaram no Brasil. Elas foram entregues aos bicheiros, que se responsabilizaram pela gestão do negócio. O esquema era simples: os brasileiros pagavam um aluguel para os italianos, e, em troca, se comprometiam a não comprar novos equipamentos de outros fornecedores. Acontece que Lillo era o único contato dos bicheiros brasileiros, e ele também acabou se tornando colaborador da polícia italiana. Quando ele foi assassinado na Venezuela, em 1997, os capos cariocas herdaram toda uma estrutura pronta de máquinas caça-níqueis. Foram as denúncias de Lillo que permitiram que a polícia italiana montasse, em 1998, a Operação Malocchio (“Mau-Olhado”) e descobrisse o esquema de jogo e lavagem de dinheiro no Brasil.

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Os bicheiros se viram com uma herança e tanto nas mãos: eles passaram a ser donos das máquinas. Em pouco tempo, os anotadores de jogo do bicho foram substituídos por bares e bingos com caça-níqueis, e não só no Rio. Castor aumentou sua influência na Bahia. Antônio Petrus Kalil, o Turcão, expandiu seus negócios para Pernambuco, e Waldomiro Garcia, o Miro, se instalou em Foz do Iguaçu. Em 2006, o filho do bicheiro Luisinho Pacheco, Luiz Antônio Drummond, foi preso em Belém enquanto retirava máquinas caça-níqueis de um bingo.

Filhos em guerra

Antes mesmo de os grupos do bicho se modernizarem, a Justiça reagiu. Em 1993, a juíza Denise Frossard relacionou Castor e outros 13 bicheiros a 56 homicídios ocorridos no Rio e prendeu todos. Três meses antes de receber a pena, o mafioso parou o Carnaval e, ao vivo, com cobertura da Rede Globo, discursou durante 5 minutos contra a perseguição aos bicheiros. Castor ainda seria preso outras vezes, promovendo festas memoráveis na prisão, até converter sua pena para prisão domiciliar. Morreu em março de 1997 – de enfarto, exatamente como o personagem don Vito Corleone em O Poderoso Chefão.

Nos anos seguintes, morreram outros chefes tradicionais do bicho, como Raul Capitão e Waldomiro Garcia, o Miro. Dos 14 mafiosos apontados por Frossard como a cúpula do bicho em 1993, 6 já morreram, 2 deles assassinados. Apesar da morte do líder, os negócios continuaram de pai para filho. A mudança de geração, somada ao novo perfil do jogo, desencadeou uma guerra que se estende até hoje. O maior conflito é pelo espólio de Castor. O sobrinho Rogério Andrade, que herdou o jogo tradicional, é acusado pela polícia de mandar matar o herdeiro responsável pelos caça-níqueis. Paulinho Costa Andrade, o filho do capo, morreu quando um homem claro, alto e magro saiu de um Gol branco, andou em direção ao filho do mafioso, sacou uma pistola cromada e disparou.

Com a morte de Paulinho, o genro de Castor, Fernando Ignácio, começou uma batalha contra Rogério – que, em 2001, escapou por pouco de uma tentativa de atentado no meio da rua. Em dezembro, a Polícia Federal acusou o deputado estadual e ex-chefe da Polícia Civil do Rio, Álvaro Lins, de acobertar essa briga de mafiosos. No ano passado, Fernando e Rogério, mesmo foragidos, eram vistos nas praias do Rio. Apesar das brigas, o negócio dos bingos e caça-níqueis ia muito bem. Até que, na madrugada de 16 de abril, a Operação Hurricane mandou todos para a cadeia.

“A máfia não existe sem corrupção”

Há 14 anos, a juíza Denise Frossard mandou para a cadeia os homens acusados de formar a cúpula do jogo do bicho carioca. Ela diz que, mesmo enquanto ficaram presos, os bicheiros continuaram tocando seus negócios. E que a mesma coisa acontece agora.

Super – Os caça-níqueis são organizados como uma máfia?

Frossard – Sim, principalmente depois dos anos 80, quando surgiu uma organização realmente estruturada, com uma hierarquia. Trata-se de uma máfia que tem conexões com outras máfias, principalmente da Itália. Em 1993, com a minha sentença, pela primeira vez o Estado reconheceu que existe uma organização mafiosa no Brasil.

Você foi ameaçada?

Não, mas sofri um atentado. O Rogério Andrade, sobrinho do Castor, contratou um policial para matar Paulinho, filho do Castor, e me matar. A minha morte seria um presente para um dos 14 mafiosos que eu prendi. O policial teve meu rosto na mira, mas ainda não tinha matado o Paulinho. Como tinha sido contratado para matá-lo primeiro, não atirou. O Paulinho realmente morreu. O assassino só recebeu o dinheiro do adiantamento, e não a outra parte, por isso eu continuo viva, conversando com você.

O que mudou na organização do jogo?

Naquela época, havia mais políticos, promotores e magistrados envolvidos. Mas, tanto hoje como em 1993, a máfia não sobrevive sem corrupção. Os mafiosos pagam para manter seus negócios, e os membros corruptos do Estado tiram sua parte disso. E muitas pessoas dependem do jogo. É por isso que, em 1993, na época em que eles foram presos, os negócios não sofreram abalo. Como não estão sofrendo agora.

Tutti buona gente

Quem eles foram, quem eles são, quem eles mataram

Antonio Salamone – Morto

Procurado pelas polícias da Itália e dos EUA, fugiu para o Rio de Janeiro na década de 1960. Foi acolhido no Brasil por Castor de Andrade, que lhe deu um emprego de fachada na Tecelagem Bangu e conseguiu naturalizá-lo brasileiro.

Tommaso Buscetta – Morto

Na década de 1980, derrotado na guerra contra a família Corleone, liderada por Totò Riina, deixou a Sicília e passou a morar no Rio. Já tinha estado ali em 1971, quando conheceu a carioca Cristina Guimarães, com quem se casou e teve dois filhos.

Salvatore Riina, o Totò Riina – Preso

Nascido em Corleone, foi o maior líder da máfia siciliana até ser preso, em 1993, graças à Operação Mãos Limpas. Apelidado de “a besta” pelos seguidores, Totò é acusado de matar pessoalmente 40 pessoas.

Lillo Rosario Lauricella – Assassinado

Nos anos 90, foi enviado ao Brasil por Totò Riina para armar um esquema de lavagem de dinheiro. Em São Paulo, Lauricella entrou em contato com Ivo Noal. No Rio, com a cúpula formada por Castor de Andrade, Turcão, Anísio e Capitão Guimarães.

Ivo noal – Preso

É o homem que lidera a máfia das máquinas caça-níqueis em São Paulo. Foi preso no ano passado quando a polícia estourou um cassino no Itaim-Bibi.

Capitão Guimarães – Preso

Ex-agente do DOI-Codi, listado 7 vezes pelo projeto Tortura Nunca Mais como torturador, é presidente da Liga das Escolas de Samba do Rio. Quando não está preso, desfila na Sapucaí.

Aniz Abrahão David, o Anísio – Preso

Presidente de honra da Beija-Flor, foi preso durante a Operação Hurricane. Possui uma cobertura de 3 andares em Copacabana que foi de Roberto Marinho.

Antônio Petrus Kalil, o Turcão – Preso

Um dos últimos grandes líderes da geração antiga. Seu herdeiro é Antônio Petrus Kalil Filho, dono de um hotel de luxo na praia de Camboinhas, em Niterói.

José Ricardo Regueira – Livre

Desembargador federal do Tribunal Regional Federal, é um dos magistrados presos durante a Operação Hurricane acusados de receber propina das casas de bingo. Seu advogado de defesa é Nélio Machado, o mesmo de Capitão Guimarães. Saiu da prisão no começo de maio.

Fausto Pellegrinetti – Foragido

Um dos maiores lavadores de dinheiro do mundo, atuava no Brasil, na Rússia e na República Dominicana quando Lauricella começou a circular no eixo Rio-São Paulo. A parceria dos dois garantiu a compra das primeiras caça-níqueis do Brasil.

Joaquín Franco Perez – Livre

Espanhol, é dono da Recreativos Franco e mora em Miami, de onde forneceu o primeiro lote para Lauricella e Pellegrinetti. Há dois meses, foi preso pela polícia de Miami. Para sair, precisou pagar uma fiança de US$ 1 milhão.

Castor de Andrade – Morto

Durante os 50 anos em que liderou o jogo do bicho no Rio, criou o próprio império e ainda unificou todos os capos em torno de um órgão de cúpula, a Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Depois que ele morreu, em 1997, seus herdeiros começaram uma guerra pelo controle dos negócios na zona oeste do Rio.

Paulinho Costa Andrade – Assassinado

Filho adotivo de Castor de Andrade, herdou o negócio das máquinas caça-níqueis. Foi assassinado em 1998 pelo próprio primo.

Rogério Andrade – Preso

Sobrinho do chefe da máfia brasileira, herdou a princípio o jogo tradicional, mas lutou para dominar os caça-níqueis. Preso em setembro passado, foi condenado a 20 anos pela morte de Paulinho.

Fernando de Ignácio Miranda – Preso

Genro de Castor de Andrade, herdou de Paulinho as máquinas caça-níqueis e de videopôquer. Também está preso. Da cadeia, Fernando e Rogério travam uma guerra aberta.

As outras máfias

Quem manda agora são os mexicanos, chineses e russos

Em tempos de internet e Al Qaeda, a máfia italiana deixou de ser o tipo de organização criminal mais eficiente. “Esse modelo antigo, com hierarquias claras e chefões carismáticos, na verdade é contraproducente”, afirma o criminologista americano Peter Reuter, professor da Universidade de Maryland. “O novo padrão é a formação de grandes redes mundiais, com controle descentralizado e terceirização dos serviços criminosos menos importantes.” Foi assim, saltando do comunismo para a mais nova onda do capitalismo, que a máfia russa se tornou uma das mais poderosas do mundo. Estima-se que seus 8 000 grupos, somados, tenham 100 000 integrantes e interfiram em até 70% de todas as empresas do país. Para poder trabalhar em paz, empresas estrangeiras pagam taxas de proteção que atingem até 20% de seus lucros.

No mesmo caminho vão os mafiosos chineses. Pequenas gangues, das mais variadas especialidades, fazem de tudo: tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, roubo de carros e organização de serviços de prostituição. As principais bases ficam em Hong Kong, mas as operações se estendem por todo o Sudeste Asiático e alcançam a Austrália e a Europa.

Nas Américas, os grupos de máfia do México se tornaram emergentes no mundo do crime internacional porque aproveitaram a proximidade com os EUA e a Colômbia. “Os mafiosos mexicanos coordenam organizações pequenas, muito fluidas, que se ligam entre si”, diz Reuter. Existem principalmente dois grupos de ação: os especializados na compra e revenda de drogas e aqueles que se dedicam a levar imigrantes ilegais para dentro do território americano. “Chegando lá, eles ficam devendo favores e passam a facilitar a entrada de entorpecentes.”

Para saber mais

The Sicilian Mafia: The Business of Private Protection

Diego Gambetta, Harvard University Press, 1993.

Criminalidade Organizada

Paulo José da Costa Jr. e Angiolo Pellegrini, Jurídica Brasileira, 1999.

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