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Cuidado com a caligrafia

Apesar de condenada por psicólogos, a grafologia, uma técnica que avalia o candidato pela caligrafia, tira o emprego de muita gente

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h21 - Publicado em 30 jun 2000, 22h00

Renata de Deos, Fábio Peixoto e Denis Russo Burgierman

Apesar de condenada por psicólogos, a grafologia, uma técnica que avalia o candidato pela caligrafia, tira o emprego de muita gente. Se tivessem sido submetidos a um teste, o ex-ministro Maílson da Nóbrega e o apresentador Ratinho jamais teriam tido uma chance.

Em 1995, Sérgio Lírio tinha 23 anos e era tido como um repórter promissor. Estava prestes a ser contratado pelo diário A Tribuna, de Vitória. Um diretor do jornal gostara dele e do seu currículo e a vaga parecia certa. Faltava apenas uma etapa: escrever um texto de trinta e poucas linhas com tema livre. Tarefa simples.

Pois Lírio acabou reprovado. A folha foi enviada a uma empresa no Recife, a 2 000 quilômetros da sede de A Tribuna, e um psicólogo que nem o conhecia decretou: o candidato não tinha a agilidade, a criatividade e a intuição que o cargo exigia. Como ele soube? Simples. As linhas de Lírio não chegavam ao fim da folha, suas letras não se curvavam impetuosamente, a pressão da caneta no papel não era suficiente para um repórter audacioso. Pronto. Com essas inferências duvidosas, Lírio foi descartado. Seu caso está longe de ser isolado – segundo pesquisa da empresa de consultoria Deloitte Touche Tohmatsu, cerca de 30% das empresas grandes e médias usam grafologia para filtrar o preenchimento de cargos executivos, técnicos e administrativos.

Lírio hoje trabalha em um dos maiores jornais do país. Este ano, ganhou menção honrosa no Prêmio Icatu de Jornalismo por denunciar o escândalo do Banco Marka, aquele que culminou com a queda do presidente do Banco Central, Francisco Lopes. A grafologia pode até acertar algumas vezes. Mas errou com Sérgio Lírio.

Grafologia não é ciência. E erra

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A empresa quer alguém confiável? Basta procurar por uma assinatura que combine com os traços do resto do texto e evitar sinais ligados à desonestidade, como o “a” aberto na curva de baixo. Se preferir um funcionário inteligente, impetuoso ou criativo, não tem problema. Está tudo na forma das letras, no desenho das linhas e na posição das margens.

Os estudiosos garantem que encontram nos garranchos indícios de uso de drogas e até sinais de doenças – afinal, que chefe quer um funcionário prestes a sofrer uma crise renal? “A maioria das firmas faz testes para eliminar candidatos desanimados, instáveis ou insinceros”, revela Cristianne Cestaro Dominguez, grafóloga da Enfoque, de São Paulo. As empresas geralmente ficam satisfeitas com os resultados. “As análises batem em cima”, admira-se Angela Soares, chefe de recursos humanos do jornal que recusou Sérgio Lírio.

A SUPER constatou que não é bem assim. Pediu a dois grafólogos que analisassem textos escritos a mão por oito profissionais consagrados (veja acima e nas páginas seguintes). Embora tenha havido vários acertos, quatro dos “candidatos” provavelmente seriam reprovados se tivessem que concorrer ao próprio emprego – 50% de erro! E a análise dos demais também teve falhas.

Rápido e prático

Mesmo assim, a técnica está se tornando popular. Entre as companhias que a adotam incluem-se a Unimed, a Telemar, o Banco Real, a PriceWaterhouse e a Polenghi. O motivo é simples: trata-se de um jeito rápido de traçar perfis psicológicos. “O teste é simples e prático”, gaba-se a grafóloga Angela Leal, da Estilo, empresa do Recife que fez o teste com Lírio. Mas será que é científico? Segundo Ana Bock, presidente do Conselho Federal de Psicologia, a resposta é não. “Não há pesquisas suficientes para reconhecer a grafologia como técnica da psicologia.”

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Para Cecília Vilhena, especialista em seleção de pessoal da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), nenhum teste psicológico sozinho pode eliminar candidatos. “Um instrumento pouco estudado como a grafologia dá menos segurança ainda.” Até alguns grafólogos concordam. É o caso de Maria Lucia Mandruzato, de São Paulo: “As análises não podem ser eliminatórias. Sempre devem ser acompanhadas de outros mecanismos”, afirma. Enquanto isso, muitos brasileiros estão perdendo a chance de concorrer a um emprego só por causa da letra.

Letra dá pistas, mas não certezas

De um fato, porém, não dá para escapar: os exames grafológicos também acertam. Não é sempre, claro, mas basta uma olhada rápida no quadro acima para perceber que as análises estão longe de ser aleatórias. Nem os mais céticos negam. “Tudo o que fazemos revela um pouco da personalidade, inclusive a escrita”, concede Denise Ramos, especialista em psicologia clínica da PUC-SP e crítica da grafologia em testes de seleção de pessoal.

Outro cético, o psicanalista e psiquiatra Jorge Forbes, tem uma boa explicação para os acertos. “Se você olhar para a cara de alguém, acaba descobrindo alguma coisa sobre a personalidade dele.” Forbes admite que haja sinais como esses também na grafia. “E é claro que um grafólogo treinado vai conseguir encontrá-los”, raciocina o psicanalista. O problema é tirar daí conclusões definitivas e partir delas para tomar decisões importantes. Seria mais ou menos como decidir quem é o melhor funcionário apenas olhando para a cara dos candidatos.

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Ninguém nega que o estudo da grafologia seja interessante e que a lógica por trás dela muitas vezes faça sentido. Por exemplo, é aceitável que a letra demonstre inventividade. “Muita gente adota a caligrafia que aprende na escola por toda a vida, enquanto os mais criativos inventam uma outra”, afirma o grafólogo Alberto Swartzman, dono da Grafia, empresa do Rio de Janeiro especializada nessas análises. Da mesma forma, faz sentido a idéia de que a falta de cortes nos “t”s ou de pingos nos “i”s sinaliza desleixo, ou a de que a assinatura muito grande denota vaidade.

Só pista

Mas nenhum desses traços pode ser considerado mais do que uma pista – nunca um fato capaz de eliminar de um processo de seleção. “Personalidades são construções complexas. Toda simplificação tem erros”, alerta Denise. Um exemplo disso: “Não temos como saber se as pessoas adotam um estilo de escrita porque são de um determinado jeito ou porque gostariam de sê-lo”, diz Forbes. Ou seja, uma letra bem trabalhada pode tanto ser indício de criatividade quanto de que o cidadão gostaria de ser mais criativo.

Denise aponta mais um problema. “Os grafólogos usam descrições tão vastas que podem servir para a maioria das pessoas. É como horóscopo”, compara. “Você pode interpretar aquilo de qualquer jeito.”

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Pelo menos as empresas sérias ainda não eliminam candidatos a empregos com base no mapa astral.

fpeixoto@abril.com.br

drusso@abril.com.br

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Algo mais

O interesse pela relação entre a caligrafia e a personalidade surgiu em 1625, quando o italiano Camillo Baldi escreveu o primeiro tratado sobre o assunto. Diz a lenda que o imperador romano Nero (37-68) já investigava a letra de seus funcionários para descobrir suas habilidades.

Reprovado pela letra

Veja por que Sérgio Lírio foi eliminado do processo de seleção para um emprego.

As letras verticalizadas denotam “falta de ousadia e de impetuosidade”. Bons repórteres dobrariam as letras para a direita.

A caligrafia não tem pontas nem ângulos retos, supostos indícios de “agressividade”, uma qualidade recomendada para jornalistas.

Pode voltar para casa

Estes profissionais não conseguiriam seus próprios empregos se passassem antes por um teste grafológico.

Maílson da Nóbrega, economista, 58 anos

O ex-ministro da Economia hoje comanda a empresa de consultoria Tendências, que faz previsões da conjuntura econômica. Segundo o grafólogo que analisou sua letra a pedido da SUPER, ele é ruim para antever o futuro.

Certo

Os laços refinados na letra “f” indicam “inteligência” e “afinidade com as artes”. Maílson realmente aprecia muito a cultura.

Errado

As frases não chegam ao final da margem direita, o que denotaria “dificuldade de lidar com prazos” – algo fatal para um economista.

Mayana Zatz, geneticista, 52 anos

Nada é mais importante para um geneticista do que minuciosidade. Foi o que faltou na análise da renomada professora da Universidade de São Paulo (USP), que pesquisa a cura para a distrofia muscular.

Certo

As letras finais das palavras estão acima do alinhamento das outras: indício de “impulsividade”. Mayana admite que o grafólogo acertou.

Errado

A perna do “p” virada para cima é uma pista de que a pesquisadora “tem pressa para terminar o trabalho” e “não se atém às minúcias”. Isso não é verdade.

Mario Amato, empresário, 81 anos

O ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo foi avaliado como “desatento”. Se fosse verdade, difícilmente comandaria as treze empresas do Grupo Amato, do qual é presidente.

Certo

De cara, o grafólogo afirmou que se tratava de alguém idoso. O que denunciou a idade foi a falta de firmeza em algumas letras.

Errado

“T”s sem cortes e “i”s sem pingos seriam provas de “falta de atenção”. O empresário não sofre desse mal.

Carlos “Ratinho” Massa, apresentador de TV, 44 anos

O análise acertou muita coisa. Mas afirmou que o apresentador do Programa do Ratinho é “incapaz de trabalhar em um ambiente tenso”. Quem já o viu na TV sabe que não é verdade.

Certo

As letras tombadas para a frente são características de “bons comunicadores” e a velocidade com que escreve denota “capacidade de improviso”. Na mosca.

Errado

A falta de pressão da caneta no papel quer dizer que o apresentador “não gosta de trabalhar em ambientes tensos” e tem “delicadeza de sentimentos”. Você diria que o Ratinho é “delicado”?

A SUPER submeteu estas oito amostras, sem identificação, a dois grafólogos conhecidos. Destacamos os maiores erros e os maiores acertos, já que, por limitações de espaço, é impossível publicar as análises na íntegra. Os dois advertem que os traços que indicaram não significam a mesma coisa para todos os indivíduos.

Erros e acertos

A grafologia detecta alguns traços da personalidade. Mas falha muito.

Celso Portiolli, apresentador de TV, 32 anos

O exame do apresentador do programa Passa ou Repassa, do SBT, acertou ao classificá-lo como didático e comunicativo. Mas errou por chamá-lo de pouco ousado.

Certo

A letra é muito clara e fácil de decifrar. Isso demonstra didatismo. O grafólogo afirmou que Portiolli poderia ser professor. Quem já viu seu programa concorda.

Certo

Letras grandes e curvadas à direita identificam os “bons comunicadores”. Esse traço se verificou também em Ratinho.

Errado

A caligrafia se parece com a aprendida na escola, indicando “pouca ousadia”. Portiolli largou uma carreira política promissora no Mato Grosso do Sul para tentar a sorte em testes para a TV. Prova de coragem.

Aurélio Miguel, judoca, 36 anos

A análise grafológica acertou muitos pontos. Detectou até indícios da preocupação com a contusão que perturba o medalhista de ouro e ameaça tirá-lo das Olimpíadas de Sydney.

Certo

O “i” comprimido indica que algo “oprime” Aurélio. Uma possível interpretação é que o motivo seja a interminável briga entre ele e a Confederação Brasileira de Judô.

Certo

As linhas são retas, sinalizando “autocontrole”. Essa qualidade é provavelmente a mais importante para um bom judoca.

Celso Loducca, publicitário, 41 anos

O presidente da Loducca Publicidade foi descrito como um sujeito criativo e afável. Combina. Em compensação, o grafólogo afirma que administra mal os prazos, o que não é verdade, e diagnosticou até um problema renal que não existe.

Certo

A margem direita irregular significa “temor quanto ao futuro próximo”. Pode ser por causa da contusão no joelho da qual ele está se recuperando.

Certo

As letras arredondadas demonstram “afabilidade” – muitas pontas e muitos ângulos seriam sinais de “agressividade”. As letras são bem-feitas e fogem do padrão escolar, marca dos criativos.

Errado

Segundo o grafólogo, esta falha na voltinha da letra “j” é sintoma de “doença renal”. Loducca fez um check-up recentemente. Não deu nada.

Errado

A margem direita desalinhada denota “má administração do tempo”. Um publicitário jamais pode descuidar dos prazos. O grafólogo errou.

Walter Neves, antropólogo físico, 42 anos

O pesquisador da USP e autor da teoria revolucionária de que os homens vieram da Ásia para a América em pelo menos duas levas migratórias sucessivas é vaidoso, convincente e às vezes autoritário, mas dá a cara para bater.

Certo

As letras terminam em pontas finas. O grafólogo afirma que essa característica é típica de gente “persuasiva e sedutora”, mas “autoritária quando não consegue convencer”. Neves concorda com tudo isso.

Errado

A barra por cima da assinatura quer dizer que o sujeito “se protege” e “não se expõe”. Neves é autor de uma teoria polêmica e não teme aparecer nos jornais e nas revistas científicas criticando adversários com rispidez.

Certo

A assinatura grande é sinal de “vaidade”. Neves não faz segredo: “Sou vaidoso mesmo”.

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