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Empilhadores de conchas

Milênios antes da construção das pirâmides do Egito, um povo misterioso já erguia enormes monumentos no litoral brasileiro.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h13 - Publicado em 31 mar 1999, 22h00

Fábio Peixoto

Você já viu algum morro parecido com o da foto aí ao lado? É bem possível que sim. Essas elevações são comuns em boa parte da costa brasileira, quase sempre ao lado de praias e lagoas. Parecem dunas, não é? Só que, por baixo da rala camada de areia e vegetação, existem conchas, milhões delas. Esse morro não é uma duna, mas sim um sambaqui – um tesouro arqueológico de uma época muito anterior ao desembarque dos portugueses.

Os sambaquis são amontoados de conchas feitos por tribos que viviam na beira d’água e se alimentavam de moluscos e peixes. Com as conchas que sobravam, faziam essas montanhas, sobre as quais construíam cabanas. Lá também sepultavam os mortos. Em todos os continentes existem construções pré-históricas semelhantes, mas em nenhum outro lugar elas são tão grandes, tão numerosas e associadas a uma cultura tão duradoura. O maior sambaqui, na Praia de Garopaba, Santa Catarina, tem 35 metros de altura e 500 de comprimento. E o mais antigo, em Paranaguá, no Paraná, foi erguido há 7 000 anos, milênios antes que os egípcios construíssem a primeira pirâmide, em 2 500 a.C. Já os mais recentes têm apenas 1 000 anos, menos que muitas igrejas européias.

Só na década de 60 os sambaquis passaram a ser protegidos por lei, depois de séculos de depredação. Hoje, ainda restam 958, a maioria no litoral. Mas há também sambaquis fluviais. Esses estranhos monumentos estão sendo estudados pelos arqueólogos, que tentam desvendar os costumes dos seus moradores. “Eles tinham uma cultura mais complexa que a da maioria dos outros povos pescadores e caçadores-coletores conhecidos”, acredita o arqueólogo Levy Figuti, do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP). Mas, como você vai ver nas próximas páginas, de confortável os sambaquis não tinham nada.

Um rocambole com muitas camadas

Tudo o que existe dentro de um sambaqui.

1. Cobertura vegetal: A superfície é formada por uma camada de solo.

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2. Terra diferente: Conchas, misturadas à terra.

3. Berbigões: As conchas agora formam uma camada compacta. Predominam os berbigões, o tipo de molusco mais comum no Brasil.

4. Lixo pré-histórico: As partes pretas compõem-se de carvão, produzido por fogueiras, e de restos de alimentos.

5. Mais berbigões: Nova camada de conchas mostra que os últimos moradores se instalaram num sambaqui usado.

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6. Mais carvão: Os resquícios de ocupação humana voltam a aparecer, sempre na forma de carvão.

7. Base de ostras: Ostras constituem um piso firme.

8. Cemitério: Os ossos humanos mostram que os sepultamentos eram feitos no próprio local de moradia.

Cotidiano de doenças, mosquitos e mau cheiro

Os sambaquieiros – como são chamados os habitantes dos sambaquis – eram baixinhos, porém robustos. Os homens mediam 1,60 metro, em média, e as mulheres, 1,50 metro. Pela análise de seus esqueletos, sabe-se que as más condições de higiene os tornavam muito vulneráveis a doenças. A mortalidade infantil era alta e os sobreviventes raramente ultrapassavam os 35 anos de idade. Os grupos reuniam até 100 indivíduos, instalados em um ou mais sambaquis ao mesmo tempo. Enfrentavam os enxames de mosquitos e o cheiro onipresente de marisco podre. Você agüentaria?

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A pesca era o principal meio de sobrevivência dessas comunidades. “Os sambaquieiros pescavam com redes, que lançavam a partir de canoas, tanto no mar quanto nos rios”, explica o arqueólogo Paulo de Blasis, da Universidade de São Paulo. “Os moluscos eram apenas um complemento da alimentação.” As frutas e raízes também faziam parte do cardápio, mas eles não sabiam cultivar alimentos. Os pesquisadores chegaram a essa conclusão porque nos sambaquis não foram encontradas peças de cerâmica cozida, necessárias para o preparo de gêneros como o milho e a mandioca. Em alguns sambaquis havia vestígios de caça; em outros, não.

Como se constrói um sambaqui

Cada morro é uma obra que durou séculos.

Lar, doce lar

Para se isolar do solo úmido, o grupo revestia o chão com ostras. Sobre elas, erguiam-se as cabanas de sapé. Os moradores acendiam fogueiras para cozinhar e se aquecer durante a noite.

Sepultando os mortos

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Quando morria algum integrante do grupo, seu corpo era sepultado debaixo das conchas, junto com seus objetos pessoais e, em alguns casos, estatuetas de pedra – os zoólitos.

Reformando a casa

À medida que a população crescia, o sambaqui também aumentava. Novas camadas de conchas se acumulavam ao lado da elevação original. Lá eram erguidas mais cabanas.

Hora de partir

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Depois de várias gerações, os recursos naturais do lugar se esgotavam e o grupo abandonava o sambaqui. Séculos depois, outro grupo de pescadores se instalava sobre o mesmo morro.

Vândalos modernos

Muitos sambaquis foram destruídos nos últimos quatro séculos, antes que sua importância fosse reconhecida. No período colonial, eles forneciam material para erguer fortes e igrejas. Mais tarde, suas conchas, ricas em calcário, passaram a ser usadas na produção de cal. Também as estradas (foto) contribuíram para a sua destruição. Só em 1961 eles foram incluídos, por lei, entre os sítios arqueológicos a serem preservados. A depredação agora dá multa, mas não acabou. Na Praia de Garopaba, Santa Catarina, há até competições de motocross sobre um sambaqui. “É uma falta de respeito tão grande quanto andar de skate dentro do Museu do Ipiranga”, compara o arqueólogo Levy Figuti.

Uma estranha mistura de casa e cemitério

No mesmo chão em que construíam suas casas, faziam fogueiras e dormiam, os sambaquieiros sepultavam os mortos. Encaravam isso, aparentemente, com a maior naturalidade. “Os rituais fúnebres tinham um papel cultural importante”, assinala o arqueólogo Levy Figuti. Os corpos eram enterrados com comida e artefatos como machados, colares de dentes de tubarão e estatuetas de pedra (veja quadro à direita). Qual o objetivo? Talvez, especulam os arqueólogos, preparar o defunto para uma viagem espiritual.

Paulo de Blasis observa que, no mesmo sambaqui, às vezes é possível distinguir padrões diferentes de sepultamento: alguns mortos recebiam um tratamento mais elaborado. Para o arqueólogo, “isso parece indicar algum tipo de hierarquia ou diferenciação social”. Não se sabe ao certo o que levava essa gente a amontoar conchas. Talvez o fizessem para instalar suas cabanas em uma base seca que os protegesse do solo úmido do litoral. Os sambaquis também podiam servir como marcos territoriais, simbolizando a posse de uma área.

Os sambaquieiros desapareceram por volta do ano 1000. Foram eliminados pelos tupis, indígenas muito belicosos e que já dominavam a agricultura. “Deve ter ocorrido miscigenação entre os dois povos”, observa De Blasis. “Foram provavelmente os sambaquieiros que ensinaram aos tupis como se pesca no mar.” Em um país como o Brasil, com uma costa tão extensa, é uma herança das mais úteis.

Zoológico de pedra

Observe as estatuetas abaixo e diga se elas parecem ter sido feitas por homens pré-históricos. Com suas formas estilizadas, não causariam estranheza em uma exposição de arte moderna. Dentro de muitos sambaquis foram encontrados zoólitos, ou seja, representações de figuras de animais esculpidas em pedra. Abaixo, à esquerda, você pode identificar claramente um tatu e uma baleia. Os zoólitos provavelmente tinham funções rituais. Os arqueólogos acreditam que as concavidades que aparecem em alguns objetos (veja foto abaixo) serviam para preparar tinturas e drogas alucinógenas.

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