Encalhados há 2 000 anos
Uma escavadeira trombou com madeira velha num canteiro de obras em Pisa, na Itália. Arqueólogos foram ver e fizeram a maior descoberta da arqueologia naval do século XX.
Assimina Vlahou, de Pisa, Itália
A viagem, da África até Pisa, com escalas na Espanha e na França, estava concluída. A carga, inclusive um leão inquieto destinado ao circo romano, estava sendo retirada dos porões quando o céu enegreceu, o vento tornou-se feroz e as ondas cresceram. A nau afundou em pleno porto, com quase tudo dentro.
A tempestade é a hipótese mais plausível dos arqueólogos para explicar o naufrágio de pelo menos um dos dezesseis barcos descobertos no ano passado no subsolo da cidade de Pisa, na Itália. Eles estão amontoados numa área de 400 metros quadrados, a 12 quilômetros do mar (veja mapa ao lado). Uma coleção fantástica de naves do século III a.C. até o V de nossa era.
“Para a arqueologia naval, é a grande descoberta do século XX”, disse à SUPER Stefano Bruni, da Superintendência Arqueológica da Região da Toscana. Desde que Roma destruiu Cartago, sua rival africana, no ano 146 a.C., o Mediterrâneo virou um lago latino, situação que se manteve até o século III. De portos como Pisa, Óstia e Nápoles partiam navios rumo ao Oriente Médio, à África e às ilhas britânicas. Para essa história marítima, a descoberta de Pisa é inestimável: nunca foram encontradas tantas naves antigas em tão bom estado.
Três mil caixotes foram abarrotados com peças de barro e vidro, objetos pessoais, sementes, ossos de gente e de bichos. As naus, que ainda permanecem parcialmente enterradas, abrem janelas para o conhecimento dos costumes, dos hábitos alimentares, da engenharia naval e do comércio da Antiguidade.
Por pouco tudo não se perdeu. O condutor da escavadeira que limpava o terreno da companhia ferroviária italiana, no bairro de San Rossore, parou ao trombar com um obstáculo. Ao examiná-lo, os arqueólogos pasmaram. Pode haver muito mais para se descobrir no museu enterrado em Pisa.
Ossos de homens e de fiéis amigos
Uma pancada na cabeça matou um marinheiro de cerca de 30 anos, 1,70 metro de altura, cujos ossos foram encontrados perto de um barco do século I a.C. O baque pode ter sido causado pela queda do mastro em meio à tempestade que afundou o navio.
Perto do homem estavam os restos de um cão, de raça não identificada. São os únicos esqueletos completos. Mas já apareceram pedaços de catorze cadáveres humanos e de um número ainda maior de cães no antigo fundo da lagoa de Pisa. É possível que os animais participassem das viagens. Também há ossos de bois, porcos, cavalos, aves e lebres, que serviam de alimento para a tripulação. Tudo está sendo recolhido e levado aos laboratórios para estudo.
Há, ainda, muito o que escavar. O que aflige os arqueólogos, agora, é a conservação dos barcos. Eles resistiram a 2 000 anos porque ficaram enterrados numa mistura de areia e lama que foi coberta por uma camada de argila. Esta funcionou como uma tampa impermeável, bloqueando a entrada de oxigênio no fundo e impedindo a deterioração da madeira.
Mantê-los assim é uma operação delicada. Conforme a escavação avança, é preciso escorar os cascos com tábuas, revestindo-os de materiais resistentes (veja quadro acima), além de molhá-los o tempo todo para que não ressequem e se desmanchem. “A sobrevivência dos bancos depende de nossa atenção”, disse à SUPER a arqueóloga Elena Rossi. “Chego a ter ciúme deles”, afirma. Não é à toa. A escavação pode alterar a história do Mediterrâneo, o que atrai arqueólogos e gente do mundo inteiro. Pisa pode deixar de ser a cidade da torre inclinada. Quem vai lá, hoje, também está interessado em ver o maior museu naval da Antiguidade.
Algo mais
Azeite, avelãs, castanhas, sementes de cereja, ameixas, azeitonas e o popular garum, um molho à base de peixe apreciado durante o Império Romano, foram encontrados em ânforas e potes de origem itálica, grega e africana. Tudo estava espalhado em volta e dentro dos barcos. O material revelará detalhes sobre o comércio da época e sobre a alimentação dos marinheiros.
Antigo porto
Mudanças geográficas explicam a presença de barcos no seco.
Pisa, que hoje está a 12 quilômetros do mar, durante o Império Romano ficava a apenas 4. Seu porto estava numa bacia lagunar, entre ramificações do rio Arno. Ninguém conhece a localização exata do antigo cais, mas os arqueólogos acreditam que agora vão encontrá-lo. Também poderão entender melhor a evolução geográfica da região.
Frota mercante
Veja como era um barco de carga romano do século I a.C. e o que as escavações já descobriram.
O tamanho das naus de carga variava entre 25 e 30 metros de comprimento e 8 e 10 metros de largura. O peso podia ir de 110 a 180 toneladas.
A popa, atrás, era enfeitada com a cabeça de um cisne.
A tripulação era composta de cinco ou seis homens. Cães muitas vezes acompanhavam o dono nas viagens.
Só os barcos maiores tinham cabine.
O mastro sustentava a vela principal, quadrada ou em forma de trapézio.
No porão da nau foi encontrada a mandíbula e a pata de um leão.
O bicho vinha da África para ser usado em espetáculos circenses como os do Coliseu, em Roma. Ursos, crocodilos e leopardos também eram capturados para serem lançados, nos circos, sobre homens desarmados.
A carga ia no porão: azeite, lã, vinho, além de bois, cabras, aves e até animais selvagens. Os líquidos eram acondicionados em ânforas . Também foram encontrados vasos refinados e decorados de vidro colorido . Até as cores e os motivos de algumas cerâmicas estão conservados.
Outra vela, pequena, era armada na proa, a parte da frente do barco.
As dezesseis naus remontam a um período de 700 anos, do século III a.C. até o século V. Chegaram a Pisa de diferentes portos do Mediterrâneo. Encaixes de madeira, pregos de vários tipos e peças como esta âncora poderão iluminar a história naval antiga.
Além dos tamancos de madeira com tira de couro, do pente e da agulha de costurar, foram encontrados broches, moedas, bolsas, candeeiros e peças que contam detalhes sobre os hábitos romanos.
Quebra-cabeça
Reconstrução exige paciência.
Setenta pesquisadores trabalham no sítio. Alguns coletam peças enquanto outros mapeiam o terreno ou cobrem os cascos com fibra de vidro. Mais tarde, será aplicado um revestimento de borracha. Só então, os barcos serão removidos. Enquanto isso, as informações são transmitidas a computadores que trabalham na reconstrução virtual dos barcos. Réplicas fiéis das naus serão montadas no futuro.
Para saber mais
Autorização para visita ao sítio: 39 055 321 5446