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Fascismo americano

A sociedade secreta que já foi chamada de “império invisível” não morreu. Trocou o capuz branco pelo uniforme militar. E continua perseguindo negros, judeus, imigrantes, feministas e homossexuais.

Por Valmir Júnior
Atualizado em 31 out 2016, 19h06 - Publicado em 2 jun 2016, 21h00

Julho de 2006. Jordan Gruver, um menino de apenas 16 anos, filho de imigrantes panamenhos, passeia pela feira agropecuária de Brandenburg, no estado de Kentucky, sudoeste dos EUA. Outros 5 jovens estão no evento também. Eles distribuem cartões e panfletos de uma organização chamada Clãs Imperiais da América (IKA, sigla em inglês para Imperial Klans of America). Aparentemente, estão recrutando novos integrantes para o grupo. Dois deles, ao notar os traços indígenas na fisionomia do adolescente, começam a xingá-lo. Em seguida, partem para a agressão física. O garoto é tão surrado que acaba com algumas costelas quebradas e um antebraço fraturado, além de um traumatismo grave na mandíbula, múltiplos cortes e hematomas espalhados por todo o corpo.

O caso do menino Jordan Gruver é uma prova de que a temida Ku Klux Klan – uma sociedade secreta nascida para matar negros, no final do século 19 – continua viva, perfeitamente adaptada ao mundo de hoje. Dê uma olhada na foto acima, à direita. Os jovens retratados ali pertencem a grupo parceiro da KKK. Essa é a nova cara da Klan e de seus aliados. Os fascistas americanos já não usam capuz e túnica branca, salvo raras exceções. Mas ainda queimam cruzes, muitas vezes acompanhadas de uma suástica. E continuam fazendo vítimas.

A IKA é apenas uma de aproximadamente 180 organizações que se dizem herdeiras da Ku Klux Klan original. “Esses grupos se tornaram uma das maiores ameaças às liberdades civis nos EUA”, afirma a jornalista americana Shelley Klein, autora do livro As Sociedades Secretas Mais Perversas da História. O alvo da atual KKK é muito mais amplo que o de seus antepassados. Hoje, os klansmen – como são chamados os integrantes da Ku Klux Klan – perseguem imigrantes, feministas, homossexuais, comunistas, até católicos. Além de negros, é claro. Nesse ponto, e em muitos outros, assemelham-se a dezenas de grupos neonazistas e ultranacionalistas disseminados pelo país.

Inimigos comuns

De acordo com a Liga Antidifamação (ADL, sigla em inglês para Anti-Defamation League), que monitora grupos extremistas nos EUA, o ódio racial é a característica comum mais forte entre todas essas organizações. Há poucas diferenças fundamentais entre elas. Uma exceção diz respeito aos judeus: a moderna KKK quase sempre prefere não persegui-los, diferentemente do que aconteceu no passado, enquanto neonazistas continuam dispostos a exterminá-los. Ainda segundo a ADL, a maioria dos membros da Klan é cristã (sobretudo protestante), enquanto os neonazis se declaram pagãos ou ateus.

Seja como for, os inimigos quase sempre são comuns, o que aproxima um grupo do outro. A boa vizinhança das últimas décadas parece ter levado a uma espécie de “nazificação” desenfreada da Klan. O fenômeno não chega a surpreender, afinal, a organização flerta com o nazismo desde os anos 30. O que surpreende é o resultado prático desse fenômeno. Os klansmen de hoje parecem punks. Basta olhar para um integrante típico da atual KKK. Ele já não quer mais saber de capuz branco. Prefere um uniforme militar, qualquer que seja sua cor.

Entre os 180 “herdeiros” da KKK original nos EUA, a IKA é um dos maiores e mais organizados. Só perde em número de filiados para a Cavaleiros da Ku Klux Klan (Knights of the Ku Klux Klan).

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A cooperação entre neonazistas e a KKK não é de hoje. As duas vertentes extremistas já andavam bem próximas na década de 1970, quando a Klan entrou num processo de franco desmoronamento. “Os neonazistas também eram poucos e altamente fragmentados”, escreve a americana Sara Bullard em The Ku Klux Klan: A History of Racism and Violence (“A Ku Klux Klan: Uma História de Racismo e Violência”, inédito no Brasil). “No fim dos anos 70, começo dos 80, eles perceberam que só teriam a ganhar se trabalhassem juntos.” Essa explosiva colaboração deixaria marcas profundas em Greensboro, na Carolina do Norte.

No dia 3 de novembro de 1979, trabalhadores e militantes comunistas foram às ruas da cidade para protestar contra a KKK – forte e influente naquela região, apesar da crise que o grupo enfrentava no resto do país. De repente, 9 carros cheios de integrantes da Klan e do Partido Nazista Americano apareceram. No melhor estilo gângster, os ocupantes desceram e simplesmente abriram fogo contra os manifestantes. O episódio entrou para a história como o Massacre de Greensboro. Cinco pessoas morreram e dezenas ficaram feridas, incluindo crianças. Dos 40 klansmen e neonazistas envolvidos no atentado, 16 foram presos. Desses, apenas 6 enfrentaram um tribunal. E só 4 acabaram condenados.

Foi assim, na base do terrorismo, que a Ku Klux Klan escreveu – e continua escrevendo – sua história. Antes de Greensboro, entre 1956 e 1963, a organização praticou nada menos do que 118 atentados à bomba no sul dos EUA. A média é impressionante, quase 15 por ano, ou mais de um por mês. Com um detalhe: a KKK nem estava no seu auge – ao contrário, encontrava-se em franca decadência. A estratégia sempre foi espalhar o medo, disseminar o ódio racial e a intolerância religiosa. Violência, ao que tudo indica, é um traço genético do grupo. Acompanha a história da Klan desde o seu nascimento, na 2ª metade do século 19.

Fantasmas da Guerra

Na véspera do Natal de 1865, 6 homens da cidade de Pulaski, no Tennessee, resolveram fundar uma sociedade secreta sem maiores pretensões. O objetivo era se divertir. Inventaram algumas regras, criaram alguns rituais e batizaram o grupo de kuklos (“círculo” em grego). Como a maioria era de origem escocesa, onde as famílias se organizam em clãs, acrescentou-se klan ao nome. E assim a confraria passou a ser chamada de Ku Klux Klan. Os amigos se divertiam à custa dos negros da região. Cobertos por lençóis e fazendo-se passar por fantasmas, eles cavalgavam à noite e apavoravam famílias inteiras nos arredores de Pulaski. Em pouco tempo, porém, as brincadeiras se transformaram em assassinatos.

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O sul dos EUA estava em ruínas, resultado da derrota na Guerra Civil Americana. Humilhados, os soldados do Exército Confederado voltavam para casa doidos para descarregar suas frustrações em alguém. Encontraram nos negros o bode expiatório ideal. Financiada por fazendeiros e comerciantes que sobreviveram ao cataclismo econômico do pós-guerra, a KKK começou a crescer rápida e assustadoramente. Em 1867, já eram cerca de 500 mil. O primeiro líder supremo – ou Grande Mago – foi Nathan Bedford Forrest, ex-general confederado.

Ressentimento duplo

Enquanto isso, por imposição dos abolicionistas vencedores da guerra, os negros deixavam de ser escravos e ganhavam direito a voto, escola e porte de armas. Para a Klan, o ressentimento agora era duplo, suficiente para acrescentar à lista de inimigos mortais da organização os políticos que estavam por trás daquela nova ordem. Em 1868, o congressista republicano James Hinds – um dos responsáveis pelas leis que igualavam negros e brancos – foi assassinado. No ano seguinte,   

o júri federal dos EUA qualificou a KKK como “grupo terrorista” pela primeira vez na  história, e acabou mandando centenas de klansmen para a cadeia. 

Em 1915, uma produção de cinema trouxe a organização de volta à tona, e com força total. O Nascimento de uma Nação, baseado no livro The Clansmen, de Thomas Dixon Jr., retratava os integrantes da Klan como verdadeiros heróis. 

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O filme fez enorme sucesso no país todo e marcou o início de um novo processo de expansão da KKK, liderado pelo representante comercial William Simmons. Foi aí que muito da simbologia contida nos rituais do grupo acabou sendo inventado, como o ritual de atear fogo a uma cruz de madeira. Era o início da 2ª geração da Ku Klux Klan, seguramente a mais poderosa de todas.

A organização cresceu rapidamente e, por volta de 1924, atingiu o maior número de integrantes de toda a sua história, com aproximadamente 5 milhões de associados espalhados pelo país inteiro. A maioria dos membros pertencia ao segmento social conhecido como wasp (sigla em inglês para as iniciais de branco, anglo-saxão e protestante). Com tanta gente vestindo a camisa da KKK, não demorou até que o grupo começasse a ganhar poder político também. Governadores de estados como Indiana, Alabama, Mississippi e Texas viviam às voltas com klansmen influentes e vários membros ou simpatizantes da organização foram eleitos para o Congresso. Pelas contas do historiador americano Wyn Craig Wade, autor de The Fiery Cross (“A Cruz Ardente”, inédito em português), a Klan fez 11 governadores e 16 senadores ao longo da década de 1920.

Àquela altura, os inimigos da Ku Klux Klan já não eram apenas os negros. A 1ª Guerra Mundial (1914-1918) tinha desencadeado um intenso processo de imigração da Europa para os EUA. Resultado: estrangeiros, especialmente judeus, passaram a ser perseguidos. Comunistas também eram considerados escória, assim como homossexuais, prostitutas, mães solteiras, católicos… Qualquer um que a KKK julgasse nocivo e eliminável. Os métodos do grupo continuavam os mesmos da geração anterior: espalhar o terror por meio de assassinatos, linchamentos, enforcamentos, estupros e incêndios criminosos.

Sujeitos racistas

Quando o chefe da Klan em Indiana, David Stephenson, foi preso por estuprar uma professora, em 1925, as investigações revelaram que a cúpula da organização estava metida em esquemas de corrupção que envolviam até o prefeito de Indianápolis e o governador do estado. A Ku Klux Klan caiu em desgraça perante a opinião pública e seus 5 milhões de adeptos despencaram para apenas 30 mil por volta de 1930. A sociedade secreta mais poderosa e sinistra dos EUA jamais seria a mesma daí em diante.

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Com o início da 2ª Guerra Mundial, em 1939, a situação ficou ainda pior. Os americanos alinharam-se com Reino Unido e França na luta contra o nazismo de Adolf Hitler. E mais: em 1944, lideraram o desembarque nas praias da Normandia ocupada, naquele que ficaria conhecido como o Dia D, e iniciaram a marcha que derrubaria o ditador alemão. Para os integrantes da KKK, tornou-se ainda mais difícil conquistar a simpatia da população nos EUA, já que sua doutrina era claramente nazista.

Hoje, a Ku Klux Klan não passa de 2,5 mil sujeitos racistas, distribuídos entre grupos como a IKA, a Irmandade dos Clãs (Brotherhood of Klans),  o Partido dos Cavaleiros (Knights Party) e a Igreja dos Cavaleiros Americanos da KKK (Church of the American Knights of the KKK), que você conheceu no início desta reportagem. A grana deles é curta, a influência localizada e o poder político praticamente nenhum. Mas continuam tão perigosos quanto no passado. Aparentemente, os klansmen nunca morrem. Eles apenas adormecem

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