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Gênios relativos

Um passeio pela história das descobertas científicas mostra que os avanços são resultado de criações coletivas. E que as mentes mais brilhantes nem sempre são as que aparecem na foto

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h26 - Publicado em 31 ago 2005, 22h00

Texto Reinaldo José Lopes

Quase todos os relatos sobre grandes descobertas da ciência parecem insinuar que esse papo de genialidade é uma grande moleza. Gastar neurônio sobre uma folha com contas chatíssimas é para os fracos: os verdadeiros avanços vêm quando o sujeito tem um sonho revelador, quando uma maçã atinge sua testa ou quando ele deixa a imaginação solta para bolar cenários hipotéticos que ninguém tinha tido a coragem de imaginar. É lógico que, no começo, as pessoas não dão a menor bola para o que o pensador revolucionário diz. Mas, cedo ou tarde, ele triunfa. Assim nascem os heróis da ciência.

Peço perdão desde já pela chatice de estragar esse quadro comovente, mas ele não passa de balela. A genialidade, verdade seja dita, até existe. Mas, normalmente, restrita a umas poucas áreas bem específicas do conhecimento – como a arte. Em linhas bem gerais, é isso que argumenta o físico americano Tony Rothman no livro Tudo é Relativo. A obra é um passeio divertido (e não muito edificante) pela história das descobertas da ciência nos últimos 400 anos. Um período em que viramos do avesso tudo o que sabíamos sobre o Universo e adquirimos controle sem precedentes sobre a natureza. E no qual, segundo Rothman, também comprovamos uma das principais leis da ciência humana: em geral, as pessoas têm dificuldade de dar crédito aos outros. Os heróis da ciência, aqueles mesmos que encheram as páginas da Super nos últimos 18 anos, parecem ter uma má vontade danada de reconhecer que não seriam tão geniais se não fossem os carregadores de piano anônimos cujo trabalho faz a ciência andar.

Nem tão Einstein assim

Na galeria de histórias mal contadas, será que alguém escapa? Rothman reconhece que uma das únicas possíveis exceções é o físico Albert Einstein. Para o autor, Einstein tinha um talento natural fora do comum para a ciência, e seus trabalhos teriam, de fato, revolucionado a física. Mas essa é só parte da história. “À medida que toma forma, a nova imagem de Einstein ainda é a de um gigante, mas com consciência total da ciência que o cercava na época e que reconhecia com má vontade – se chegava a fazê-lo – seus predecessores”, escreve Rothman.

Tomemos os artigos de 1905, o mítico Annus Mirabilis, o ano miraculoso de Einstein, quando ele publicou 5 estudos revolucionários que envolviam o que seria a teoria da relatividade. As implicações dos trabalhos são de tirar o fôlego: Einstein acabou com a idéia de que o tempo e o espaço são referenciais fixos e decretou que a velocidade da luz – 300 mil km/s – é o único referencial absoluto. De quebra, como conseqüência desses princípios, derivou a fórmula E = mc2. (Só para constar, a letra que ele usou originalmente era L, e não E – embora ela também significasse energia.)

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Acontece que, poucos anos antes, o grupo de cientistas do qual Einstein fazia parte havia lido e discutido com o maior entusiasmo o livro Ciência e Hipótese, do matemático francês Henri Poincaré, um dos maiores pesquisadores da época. Nele, Poincaré declara claramente que espaço e tempo não podem ser absolutos e enuncia até um “princípio da relatividade”. Numa palestra de 1904, o francês vislumbrou uma teoria na qual “a velocidade da luz torna-se um limite intransponível”. E estava perto de formular o E = mc2. Isso não significa que Einstein fosse plagiador: ele foi o único a transformar essas idéias numa teoria elegante e consistente. Mas poderia, ao menos, ter citado Poincaré – coisa que jamais fez até sua morte, 50 anos depois.

Em defesa de Einstein, é bom lembrar que, mesmo quando o antecessor é da família, muitos cientistas têm dificuldade em reconhecê-lo. É o caso de Charles Darwin, pai da teoria da evolução das espécies, publicada em 1859. Seu avô, Erasmus Darwin, já havia feito observações que apontavam na mesma direção, propondo que todos os animais descendiam de um ancestral comum. Acontece que vovô Erasmus também tinha fama (merecida) de mulherengo e ateu, o que pegava muito mal na Inglaterra vitoriana de Charles. Resultado: Darwin só citou o parente na segunda edição de seu famoso livro A Origem das Espécies – numa nota de rodapé e em tom crítico.

Mais espantosa é a história da comprovação da relatividade geral – uma formulação mais ampla da teoria einsteniana. A relatividade geral explica a gravidade como distorção do tecido do espaço e do tempo: corpos maciços curvam o espaço à sua volta, como uma bola de metal curvaria uma folha de papel na qual estivesse apoiada. Se isso fosse verdade, a própria luz que passa pelas cercanias de uma estrela deveria parecer curvada por causa dessa distorção – e para verificar o fenômeno o astrônomo britânico Arthur Eddington resolveu fotografar o Sol durante um eclipse. Escolheu o de maio de 1919 para observar a distorção a partir de fotografias. E em novembro do mesmo ano, anunciou que Einstein estava certo. Detalhe: o cientista alemão previra um desvio de 1,74 segundo de arco, mas as chapas de Eddington davam valores que variavam de 0,86 a 1,98 segundo de arco. Se fosse fiel ao que encontrou, teria de vir a público e dizer que seus testes não bastavam para confirmar a teoria de Einstein. Mas sem hesitar em relativizar aquilo que não era relativo – os números – Eddington assegurou ter comprovado que os cálculos de Einstein estavam certos. Medições posteriores até demonstraram que o alemão tinha acertado. Mas Eddington forçou a barra ao assegurar isso em 1919.

Patentes na malandragem

Até agora, só falamos de ciência “pura”, aquela que raramente rende novos aparelhos ou royalties, os direitos autorais que podem enriquecer pesquisadores. Se você acha que as coisas ficam ainda mais sujas quando o tema da disputa causa impacto na vida de todas as pessoas – e mais impacto ainda no bolso do autor da idéia – acertou em cheio.

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É o caso do telefone. Todo mundo aprende que o americano Alexander Graham Bell colocou a máquina para funcionar em 1876. Mas 90% das histórias contadas tendem a minimizar o trabalho de seus predecessores, como o alemão Johann Reis, que já conseguia transmitir a fala por meios elétricos (de forma imperfeita) no começo dos anos 1860. Bell dizia que o grande avanço de seu aparelho era a chamada corrente “ondulatória”, que oscilava de forma suave conforme o transmissor do telefone era estimulado pela voz e permitia reproduzir melhor suas nuances.

Acontece que Bell apresentou sua patente apenas algumas horas antes do maior concorrente, o americano Elisha Grey. Grey já havia feito até uma advertência ao escritório de patente de que iria depositar em breve sua criação. Verdade que a demora de Grey em pedir a patente “final” dava a prioridade a Bell. Mas agora vem a sacanagem: há evidências de que a patente original de Bell, se comparada com a de Grey, incluía uma descrição genérica da corrente ondulatória. Um funcionário do escritório de patentes, talvez subornado, teria aberto o bico sobre a advertência depositada por Grey e Bell modificou o seu pedido de modo a cobrir as idéias do rival.

Outro mestre do estelionato intelectual parece ter sido Samuel Morse, celebrado como inventor do telégrafo. Na verdade, até desenvolver o aparelho em 1844, o sujeito apanhou um bocado. Pudera: era pintor de formação e só tinha conhecimentos básicos de física. O que valeu como estímulo foi a amizade com Joseph Henry, mais renomado cientista americano da época. Morse usou descaradamente conselhos e pesquisas de Henry como base do sistema e os 2 acabaram brigando quando um sócio de Morse escreveu a história do telégrafo sem citar o nome de Henry. Em outro livro, Morse negou que Henry tivesse dado alguma contribuição ao seu trabalho.

E quanto à penicilina, primeiro e mais importante dos antibióticos? O medicamento teria sido descoberto em 1928 quando o britânico Alexander Fleming viu um anel de bactérias mortas numa cultura contaminada pelo fungo Penicillium. Na verdade, outros pesquisadores já haviam notado a ação do fungo e até o testado. Mas os estudos não foram em frente – inclusive os de Fleming. Foi outra dupla de médicos, os desconhecidos Howard Florey e Ernst Chain, que criou a droga para valer. Os 2 dividiram o Nobel com Fleming – mas só o inglês entrou para a história, graças, em parte, à sua boa relação com a imprensa.

Resumo da ópera? Sempre desconfie quando sentir que os cientistas se colocam ou são colocados num pedestal. Esse negócio de ciência envolve colaboração, trabalho duro e conhecimento do que todo mundo fez antes de você. Mesmo que você seja genial.

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Teoria da relatividade

O que você aprendeu na escola: O físico alemão Albert Einstein bolou a teoria praticamente sozinho, numa série impressionante de artigos revolucionários publicados entre 1905 e 1915.

O que não contaram: Pesquisadores como Poincaré já previam boa parte dos conceitos da teoria, embora sem o mesmo rigor matemático.

Telégrafo

O que você aprendeu na escola: Samuel Morse transmitiu uma mensagem pela primeira vez a uma distância de 70 quilômetros, mostrando a viabilidade do aparelho.

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O que não contaram: Morse era pintor e pouco manjava de física. Mas era amigo do maior cientista da época nos EUA, Joseph Henry, que lhe deu uma “mãozinha”. Morse nunca deu o devido crédito aos conselhos de Henry.

Telefone

O que você aprendeu na escola: Graham Bell desenvolveu o sistema que transmitia a fala humana.

O que não contaram: Bell concorria com uma idéia de Elisha Gray, cujo sistema também reproduzia a voz. Tudo indica que um funcionário do escritório de patentes foi subornado para deixar vazar o conteúdo da invenção de Gray para Bell, que modificou seu texto para vencer o rival.

Penicilina

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O que você aprendeu na escola: O britânico Alexander Fleming viu que um fungo podia destruir bactérias em cultura, criando o primeiro antibiótico da história.

O que não contaram: 2 médicos, Howard Florey e Ernst Chain, foram os verdadeiros responsáveis pela descoberta. Mas Fleming tinha melhor relação com jornalistas e entrou para a história como autor da pesquisa.

É outra história…

Radioatividade

O que você aprendeu na escola: Henri Becquerel, pesquisador francês, descobriu em 1896 que cristais de urânio conseguiam “imprimir” imagens numa chapa fotográfica, com uma espécie de luz invisível – a radioatividade.

O que não contaram: O também francês Abel Niepce de Saint-Victor fez experiências muito parecidas em 1857. Becquerel demorou anos para citá-lo em seus trabalhos.

O planeta Netuno

O que você aprendeu na escola: Cálculos feitos simultaneamente pelo britânico John Couch Adams e pelo francês Urbain Le Verrier, aliados a observações feitas pelo alemão Johan Galle, chegaram ao novo planeta em 23 de setembro de 1846.

O que não contaram: Os cálculos feitos por Adams e Le Verrier estavam essencialmente errados. Mas variações na órbita do astro permitiram que, mesmo assim, ele pudesse ser achado.

Rádio

O que você aprendeu na escola: Guglielmo Marconi inaugurou esse revolucionário meio de comunicação ao fazer uma transmissão entre a Inglaterra e o Canadá em 1901.

O que não contaram: Desde o fim do século 19 vários pesquisadores já haviam demonstrado a viabilidade das transmissões. Marconi só foi o mais rápido e esperto na hora de conseguir patentes dos seus aparelhos.

Para saber mais

Tudo é relativo – Tony Rothman, Difel, 2005

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