Guerra no Mercosul
Documentos e imagens coletados nos últimos anos revelam o cotidiano da Guerra do Paraguai (1864-1870). O conflito, que deixou mais de 100 000 mortos, consolidou as fronteiras dos então jovens Estados independentes que hoje formam o Mercosul.
André Toral
O dia 24 de maio de 1866 amanheceu lindo. Céu azul com uma fina faixa de nuvens cortando o sol que se levantava sobre as palmeiras do extremo sul do Paraguai. O acampamento do exército unido de 35 000 brasileiros, uruguaios e argentinos iniciava mais um dia. Soldados buscavam lenha, cornetas davam ordens. Mas havia algo no ar. Cinco minutos antes do meio-dia, um foguete subiu aos ares. Em seguida, ouviu-se um disparo de canhão: era o sinal. Cerca de 24 000 paraguaios saíram das matas como um furacão. Tuiuti, a maior batalha campal da história da América do Sul, estava começando. Quatro horas depois seu saldo era aterrador. Os aliados perderam 1 000 homens e 3 000 ficaram feridos. O desastre paraguaio foi ainda maior: 6 000 mortes e 7 000 feridos. Mas a mortandade estava longe de acabar. A guerra, que se prolongaria por mais quatro anos, no final vitmaria 100 000.
Horror revisto
Por muito tempo, a explicação para o conflito em que se trucidaram os países hoje pacificamente integrados no bloco econômico Mercosul foi um erro de cálculo de Francisco Solano López, presidente do Paraguai. Imprudentemente, ele teria ousado desafiar Argentina e Brasil, cuja população e recursos eram bem maiores, ao tentar a conquista de territórios. Depois, entre 1960 e 1980, surgiram historiadores que interpretaram o confronto como uma manobra do imperialismo inglês, que teria manipulado Brasil e Argentina para destroçarem seu vizinho, dono de um projeto de industrialização autônomo, independente da Inglaterra.
Hoje, a análise de documentos inéditos, como informações comerciais, dados demográficos, cartas e fotografias, dá nova cara ao episódio. A influência da Inglaterra foi diminuída e os interesses de Brasil, Argentina e Uruguai, ressaltados. O Paraguai não foi apenas uma vítima. Quando López assumiu a Presidência, em 1862, já deixou claro que pretendia resolver na marra as questões de fronteira com os vizinhos. Imediatamente formou exércitos, armou-os e partiu para a ofensiva.
Ninguém gosta de relembrar esse pedaço feio da história sul-americana. Mais de um século depois, vista de longe pelos especialistas, a responsabilidade pelo massacre deve ser dividida entre os envolvidos. Mas isso não muda nada para os milhares de jovens que lá deixaram seu futuro.*André Toral é antropólogo e doutor em História pela Universidade de São Paulo, autor do livro
Adeus, Chamigo Brasileiro – Uma História da Guerra do Paraguai, Companhia das Letras, São Paulo, 1999.
Algo mais
Orgulhosos de sua missão guerreira, os jovens soldados e oficiais brasileiros tiravam retratos no Paraguai e os mandavam para a família. Foi o que fez o tenente Pio Corrêa da Rocha, ao lado. Ele morreu baleado pouco depois de enviar a foto para os parentes, no interior de São Paulo.
O enredo da tragédia
Acompanhe na cronologia ao lado e no mapa abaixo os movimentos do conflito.
1864 – O Brasil invade o Uruguai. Solano López, presidente paraguaio, rompe com o Império brasileiro e invade o Mato Grosso.
1865 – O Uruguai capitula ante o Brasil e as tropas do general rebelde uruguaio Venancio Flores, que forma novo governo. O Paraguai, na ofensiva, ocupa Corumbá, Miranda e Campo Grande, no Mato Grosso, e entra no Rio Grande do Sul. López toma Corrientes e declara guerra à Argentina. Mas, na batalha naval de Riachuelo, a Marinha paraguaia é aniquilada.
1866 – Os aliados desembarcam no sul do Paraguai. Travam-se os combates de Estero Bellaco, Tuiuti, Boqueirão, Sauce, Curuzú e Curupaiti. O Paraguai paralisa a contra-ofensiva aliada.
1867 – Bartolomé Mitre, presidente da Argentina de 1862 a 1868, passa o comando dos aliados – que morrem aos milhares atacados pela cólera – ao então marquês e depois Duque de Caxias. Combates de Arroio Hondo, Pare-cue e Tataíba.
1868 – A esquadra brasileira bombardeia Assunção. No mesmo ano, López foge da fortaleza de Humaitá, que é ocupada. Começa a série de vitórias brasileiras conhecida como Dezembrada: Itororó, Avaí e Lomas Valentinas.
1869 – Assunção é ocupada, mas López resiste no interior. Caxias é substituído no comando pelo conde D’Eu, genro de D. Pedro II. Novo governo toma posse no Paraguai. Declarado traidor, López é condenado à morte à revelia. Os aliados vencem a última batalha, Campo Grande.
1870 – López é morto em Cerro Corá. Civis e militares lopistas são presos e enviados ao Rio de Janeiro. O Paraguai perde todos os territórios reivindicados.
O doloroso parto das nações
Uma saída para o mar. Era isso que o Paraguai procurava. Mas os argentinos de Buenos Aires não estavam dispostos a dar. Mantinham o Rio da Prata fechado ao vizinho, cuja independência da Espanha nunca reconheceram. Irritado, o governo paraguaio utilizava o porto de Montevidéu para escoar as exportações e apoiavam as províncias argentinas dissidentes de Corrientes e Entre Rios, que não aceitavam o domínio de Buenos Aires.
O Uruguai, por sua vez, procurava apoio paraguaio contra o Império do Brasil e a Argentina, que incentivavam, ambos, a sublevação armada do general Venancio Flores. Este queria derrubar o governo nacionalista de seu país pouco disposto a ceder vantagens aos criadores de gado brasileiros que operavam no seu território.
No “bloco dos descontentes” contra a hegemonia portenha e brasileira, estavam, portanto, Corrientes e Entre Rios, o governo do Uruguai e o Paraguai. No Brasil, temia-se que essa aliança virasse o embrião de uma nova nação – e havia o risco de ela arrastar consigo o Rio Grande do Sul, que na Guerra dos Farrapos, de 1835 a 1845, já tentara se separar do Império.
Francisco Solano López herdara o governo paraguaio do pai, Carlos López, em 1862. Achou que poderia comandar o novo bloco. Era praticamente o dono de seu país, uma República só no nome, sem eleições. Após uma intervenção militar brasileira no Uruguai, em apoio a Flores, López invadiu o Mato Grosso e o Rio Grande do Sul. Planejava tomar posse de territórios disputados e negociar a partir de uma posição de força, aglutinando em torno dele argentinos e uruguaios descontentes. Mas não foi isso o que aconteceu. A guerra que começou foi trágica e cruel. O Paraguai perdeu os territórios disputados e boa parte de sua população. O Brasil passou a compartilhar a hegemonia regional com a Argentina. Surgiu a correlação de forças que perdura até hoje.
A maior derrota dos aliados
Curupaiti, em 22 de setembro de 1866, foi um massacre.
1. Ao meio-dia, 20 000 brasileiros e argentinos avançam, sobre pântanos, contra as trincheiras de Curupaiti que defendiam o lado sul da fortaleza paraguaia de Humaitá. As telas são do pintor argentino Cándido López (veja na página 40)
2. A fuzilaria paraguaia extermina os soldados brasileiros e argentinos que progridem, com dificuldade, pelo pântano. São alvos fáceis.
3. Quatro da tarde: 4 093 baixas entre os aliados, 54 entre os paraguaios. Muitos argentinos e brasileiros feridos são mortos após terem roupas e armamentos saqueados.
Mais um dia vivos
Em 1866, em Tuiuti, para alegria dos fotógrafos, a ordem de ataque não chega e os soldados continuam estacionados. Para passar o tempo, os oficiais argentinos (acima) tomam mate e dedilham o violão. Os brasileiros (à esquerda) também se descontraem no acampamento, enquanto seus superiores (à direita), mais bem instalados, aguardam orientações sobre o que fazer.
Alinhadas numa longa rua próxima aos acampamentos de Tuiti, barracas ofereciam armamentos, fotógrafos, mulheres, bebidas e iguarias de todas as partes do mundo. Os comerciantes eram geralmente europeus. No de Passo da Pátria, no Paraguai, havia até uma agência do banco Mauá, de um brasileiro
Desfile de fardas
Os combatentes brasileiros, vindos de todos os cantos do país, usavam os mais diferentes tipos de uniforme. Ao lado, uma amostra da enorme variedade.
Meu vizinho, meu grande inimigo
Nem só as batalhas eram duras e assustadoras. Depois de Curupaiti, aliados e paraguaios permaneceram entrincheirados na região de Tuiuti por mais de um ano. As trincheiras, próximas, induziam os inimigos a uma curiosa convivência. Sentinelas avançadas trocavam mate, fumo e exemplares do Cabichuí, jornal paraguaio feito por soldados que ridicularizava os chefes militares da Tríplice Aliança.
Mas a guerra estava longe de ser cordial. Atiradores especializavam-se em abater soldados que se expunham. Muitos morreram por desobedecer às ordens de não fumar à noite.
Rotina de lama
O terreno alagadiço também incomodava demais. Os soldados faziam piada dizendo que o sítio ideal para acampamento deveria ter “uma casa para o sr. Marquês de Caxias, um laranjal para o general Osório e um banhado para a Artilharia”.
A alimentação – carne de gado e farinha – enjoava a maioria. Era comida de gaúcho. Para empurrar, o chimarrão, ao qual rapidamente se habituaram soldados de todas as partes do país. Às vezes, faziam um pirão com farinha mofada, o chamado “engasga gato”. Raramente recebiam arroz e bolachas, tão duras que diziam poder servir como munição. Para piorar, cabia aos soldados o preparo das refeições. Dionísio Cerqueira, ex-combatente brasileiro, recolheu em seu diário uma quadra anônima que ironizava o problema: “Osório dava churrasco/ E Polidoro farinha/ O Marquês (de Caxias) deu-nos jabá/ E sua Alteza (o conde D’Eu), sardinha (em lata)”. A saída era comprar algo diferente no comércio que prosperava e ia atrás dos acampamentos.
No Exército paraguaio não havia soldo. A ração diária era de uma vaca para 80 homens e, na escassez, para 200. Às vezes, os soldados recebiam um pouco de erva-mate, tabaco e milho. O sal era escasso e sua ausência causou inúmeras baixas. Muitos também pereceram pela falta de vegetais, que antes se constituíam na base de sua alimentação.
Uniforme peculiar
O chiripá dos paraguaios, saia típica masculina, também era usado pelos gaúchos argentinos e brasileiros.
Dentro do quepe de couro duro, pintado com as cores nacionais, guardavam-se dinheiro, pente, agulha, linha e tabaco.
Soldados usavam camisa vermelha.Oficiais, como o da foto,trajavam túnica azul com detalhes em vermelho.
Por cima das calças brancas, usava-se o chiripá, traje originalmente indígena, com a parte superior coberta por um pedaço de couro ou pano.
Quase todos combatiam descalços, mesmo jovens de boas famílias e até alguns oficiais.
Domingo Fidel Sarmiento, filho de Domingo Faustino Sarmiento, presidente argentino de 1868 a 1874, mostra como se vestia a fina flor da juventude portenha na guerra. Como muitos outros, morreria na Batalha de Curupaiti, em 1866
Cara a cara permanente com a morte
Uma tarde, o 16º Batalhão brasileiro acampado em Tuiuti entra em forma e um soldado cai de cara no chão. Era a cólera. Surgida nos acampamentos de Itapiru, ela se espalhou entre tropas aliadas e paraguaias. Levada para o interior do Paraguai, causou grande número de mortes entre civis.
Desabituados à alimentação e ao frio, os brasileiros do Norte e do Nordeste sofriam com essa e outras doenças, como gripe, disenteria, varíola. Preconceituosos, os gaúchos faziam versos sobre a suscetibilidade dos compatriotas. “Mandai, Mãe de Deus, mais alguns dias de minuano, para acabar com tudo que é baiano”, diziam.
Havia mortos por todos os lados. Eles eram um problema para os vencedores das batalhas. Depois da luta de 24 de maio de 1866, em Tuiuti, os brasileiros montaram pilhas de 50 a 100 cadáveres intercalados com lenha para queimar parte dos 6 000 corpos.
Contas imprecisas
O número de vítimas da guerra ainda é uma incógnita. A pesquisadora norte-americana Vera Blinn Reber, da Universidade de Shippensburg, na Pensilvânia, demonstrou em 1988 que o censo paraguaio de 1857 – 1,3 milhão de habitantes – foi inflado pelo governo, para intimidar inimigos. Tudo indica que o país tinha 318 144 habitantes no máximo e perdeu até 58 857 no conflito, número muito inferior aos 650 000 estimados antes. Mas isso não é pouco. A tragédia dizimou um em cada cinco paraguaios.
As perdas brasileiras também são controversas. Estimativas oficiais, de 1870, falam em 23 000 vítimas, mas acredita-se que o número foi forjado para minimizar os efeitos da guerra. O próprio ministro da Marinha na época, o visconde de Ouro Preto, falou em 50 000. Em 1972, o Estado- Maior do Exército recalculou as mortes em 33 000. A população do Brasil era de 10 a 11 milhões. A Argentina, com pouco menos de 2 milhões de habitantes, perdeu cerca de 18 000 e o Uruguai, que tinha 221 000, contou cerca de 1 500 baixas.
Algo mais
A ocupação do Uruguai também fez numerosas vítimas no Exército brasileiro. Nesta esquina varada de balas em Paysandu, junto ao bar Âncora de Ouro, toda uma banda militar foi emboscada e espingardeada.
A luta em cores
Fotógrafo retratista itinerante e pintor, Cándido López (1840 – 1902), como muitos outros argentinos, alistou-se como voluntário no Batalhão da Guarda Nacional tão logo a invasão de Corrientes, por López, uniu a opinião pública ao redor do presidente Mitre. Desde o início, declarou-se disposto a produzir pinturas sobre a Campanha do Paraguai destinadas à documentação histórica.
López participou de todas batalhas de 1864 a 1866. Desenhou com lápis até a luta de Curupaiti, onde teve sua mão direita despedaçada por uma granada. Duas cirurgias depois, ficou sem o braço. Aprendeu a desenhar e a pintar com a mão esquerda e produziu uma série de 56 quadros que cobrem minuciosamente tudo o que viu. Seus trabalhos foram comprados pelo Estado argentino e encontram-se atualmente no Museu Nacional de Belas Artes e no Museu Histórico Nacional, ambos em Buenos Aires.
O terror escondido nos retratos
A maior parte das fotografias que você vê nesta reportagem foi feita nos acampamentos de Tuiuti, Tuiucue e Passo da Pátria, onde fotógrafos se misturavam aos soldados. Batiam retratos e os vendiam aos combatentes. Para muitas famílias foi a última lembrança recebida.
A profissão de fotógrafo estava surgindo. A partir da década de 1850 a fotografia passou a ser ampliada sobre papel, o que barateou os custos e facilitou a multiplicação de cópias. Os 93 fotógrafos de Paris em 1851 passaram para 7 558 em 1870. Em 1869, havia 130 deles em Buenos Aires e, em 1864, trinta no Rio de Janeiro. Eram, na maioria, franceses, americanos e ingleses.
Posadas, essas imagens frustram leitores acostumados às fotos de guerra de hoje. Naquele tempo, ninguém podia pensar em clicar a ação. Para a imagem se fixar, eram necessários vários segundos de pose. Mesmo assim, a guerra arejou os retratos, antes rígidas composições de estúdio. O fotógrafo trabalhava ao ar livre e conseguia captar uma realidade muito distante dos ambientes neoclássicos da época.
Apenas uma firma de fotografia, no entanto, se propôs a documentar o episódio e não apenas a vender retratos. Foi a Bate e Cia., de Montevidéu, que enviou o fotógrafo uruguaio Esteban Garcia. É de sua autoria o primeiro instantâneo da guerra, em que os negros do batalhão Florida, uruguaio, apresentam armas ao coronel León Palleja, que, mortalmente ferido, é conduzido para a retaguarda. Exatamente a imagem que você viu na capa desta edição da SUPER. Uma cena que resume a ferida ainda mal cicatrizada bem no coração do Mercosul.
Para saber mais
O Conflito com o Paraguai – A Grande Guerra do Brasil, Francisco Fernando Monteoliva Doradioto, Ática, São Paulo, 1996
O Expansionismo Brasileiro – O Papel do Brasil na Bacia do Prata, da Colonização ao Império, Moniz Bandeira, Philobiblion, 1985
A Solidão Segundo Solano López, Carlos de Oliveira Gomes, Civilização Brasileira, Rio, 1980
Algo mais
Em Humaitá, soldados paraguaios fizeram ilustrações jocosas para o jornal Cabichuí, para levantar o moral das tropas e destruir o ânimo brasileiro. Ao lado, a gravura que acompanhava um texto sobre “como matar os negros”. O Marquês de Caxias, tido como lerdo, foi mostrado como um sapo negro montado numa tartaruga.
Armas em repouso
Voltando de uma patrulha, oficiais brasileiros posam para a eternidade.
O mosquetão Minié, francês, de calibre 14,8 milímetros, foi uma das armas mais usadas
Acoplado ou não ao mosquetão, o sabre-baioneta era uma arma temível nos freqüentes combates corpo a corpo
O sabre longo distinguia dos subordinados os oficiais
Mesmo não sendo da Cavalaria, muitos oficiais utilizavam cavalos, por isso calçavam botas de montar