Heliogábalo: Roma já teve um Imperador que era mulher trans?
Textos históricos indicam que o imperador usava roupas femininas, passava maquiagem e se prostituía – mas é preciso interpretar essas fontes com muita cautela.

A identidade de gênero de um imperador romano controverso entrou sob os holofotes nos últimos meses desde que um museu britânico passou a considerar que o imperador Marco Aurélio Antonino, conhecido como Heliogábalo de Roma era, na verdade, uma imperatriz.
O Museu North Hertfordshire, localizado na Inglaterra, passou a utilizar pronomes femininos para se referir à figura histórica em suas exposições e materiais. A instituição justificou a decisão citando um texto histórico em que Heliogábalo teria pedido que o chamassem de “senhora”, em vez de “senhor”.
Um porta-voz do Museu North Hertfordshire disse à BBC que considera “educado e respeitoso ser sensível à identificação de pronomes para pessoas do passado”.
A decisão do museu, porém, levantou controvérsias entre historiadores e pesquisadores, por alguns motivos.
Para começar, o Império Romano não tinha categorias como “transgênero” e “cisgênero”, termos atuais usados para descrever a identidade de gênero de indivíduos. Mesmo assim, existem outros casos registrados da era romana de pessoas que se apresentavam, se vestiam e assumiam os papéis sociais do sexo oposto ao que haviam nascido – o que, hoje, chamamos de pessoas transgênero.
Heliogábalo se tornou imperador na adolescência, quando tinha apenas 14 anos, e teve um governo curto de quatro anos. Ele foi assassinado no ano 222 d.C.
De acordo com o cronista romano e senador Cassius Dio, Heliogábalo vestia roupas femininas, usava maquiagem e assumia papel de mulher entre seus amantes homens. Dio também descreve que Heliogábalo oferecia grandes quantias de dinheiro para quem pudesse realizar uma operação de mudança de sexo e que gostava de assumir o papel de uma prostituta. Além disso, o cronista cita alguns amantes homens do imperador.
Em um trecho específico, o imperador teria pedido que não o chamassem de senhor, pois era uma senhora. Essa é a fala que levanta a possibilidade de ele ter sido transgênero, em termos atuais.
Mas historiadores e até outros museus, como o Museu North Lincolnshire, destacam que é difícil determinar a veracidade desses relatos. Heliogábalo não era muito bem visto por muitos no Império Romano, e as principais fontes históricas que temos sobre ele foram escritas por seus inimigos políticos. É possível que elas tenham exagerado, mentido ou distorcido fatos para tornar sua imagem menos respeitável.
No contexto romano, um homem tomar papel feminino ou passivo era considerado não-masculino e pouco romano. Isso levanta a possibilidade de que as referências às mulheres nos textos fossem usadas como forma de enfraquecer Heliogábalo.
Heliogábalo acumulou inimigos por vários motivos – mantinha costumes considerados excêntricos e estrangeiros, por exemplo –, mas o principal foi de caráter religioso: ele tentou promover oficialmente outro deus (Elagabal) no lugar da divindade suprema da religião romana (Júpiter). Para muitos romanos da época, isso foi considerado uma grande ofensa. O reinado curto do imperador adolescente foi interrompido quando ele foi assassinado numa revolta popular e militar.
Heliogábalo também foi bastante lembrado pelo comportamento sexual promíscuo e fora do comum, conforme retratos descritos por Dio. Não dá para cravar o quanto disso era verdade, embora saibamos que relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo existiam em Roma (afinal, a homossexualidade é natural e sempre existiu).
Boa parte da associação negativa que existe hoje em torno de Heliogábalo foi promovida por Dio. O historiador especializado em história romana, Jussi Rantala, destacou que o senador ficava indignado com os atos do imperador que lhe pareciam estranhos. Portanto, não dá para saber com certeza se a suposta identificação com o sexo feminino de fato era real ou foi inventada pelo cronista.