Kamikaze: Quando morrer era uma arma de guerra
Em outubro de 1944 o mundo era apresentado aos kamikazes, fruto do desespero militar japonês.
Ricardo Arnt
Seis caças japoneses apareceram no horizonte do Golfo de Leyte, nas Filipinas, às 7h40 da manhã no dia 25 de outubro de 1944. Os marinheiros da 1ª Frota da Armada americana correram para as armas antiaéreas e abriram fogo. Mas alguma coisa estava errada: os aviões arremetiam, mas não atiravam. Dois foram logo abatidos e caíram no mar. Um passou incólume por todos os projéteis e veio direto, obstinadamente, estatelar-se no porta-aviões Santee. Os outros três pareceram recuar, subiram e sumiram nas nuvens. Dez minutos depois, quando todos olhavam para o Santee em chamas, um voltou e mergulhou, de 2 000 metros de altitude, como um raio vertical, até espatifar-se no porta-aviões Suwanee. O ataque matou 31 marinheiros e feriu 82. Com muito pesar, o mundo era apresentado aos kamikaze (pronuncia-se kami-kazê).
A guerra já estava perdida para o Japão. A ofensiva do império oriental havia sido detida desde a derrota na batalha de Midway, em junho de 42. Em janeiro de 43, os americanos passaram à ofensiva com a vitória de Guadalcanal. Em junho de 1944, conquistaram Saipan, nas ilhas Marianas, em pleno Pacífico. Em setembro, desembarcaram no Sul das Filipinas. A máquina de guerra japonesa espalhada pela Ásia estava em desagregação. A falta de combustível era dramática. Em 12 de outubro, metade da força aérea imperial estacionada em Taiwan foi destruída por bombardeios. Uma semana depois, uma força irresistível de 840 navios, 3 mil aviões e 200 mil homens invadiu Leyte, no centro das Filipinas.
A América trabalhava no Projeto Manhattan para fabricar a bomba atômica e Hitler lançava os mísseis V1 e V2 sobre Londres. O exército japonês também descobriu uma novidade: uma arma absoluta, imaterial, que a ciência desconhecia. Era um segredo espiritual guardado no passado profundo e cultivado pela tradição: para vencer, impunha-se querer verdadeiramente, querer até a morte e organizar o uso do sacrifício consentido. Os kamikazes converteram em programa de governo uma tradição rigorosa da cultura japonesa — a arte da morte voluntária.
Ao contrário do que o Ocidente perplexo imputa como quintessência do fanatismo, a consciência dos pilotos kamikazes — de unir-se à tradição do suicídio na derrota — nada tem de irracional. Tratava-se de defender o Japão ameaçado, a pátria, as famílias em casa, deter o inimigo e inflingir-lhe as mais pesadas baixas. Tarefas infinitamente mais importantes do que a sobrevivência física individual. A possibilidade de transformar-se em um herói incandescente era um privilégio. Os 2 198 pilotos que jogaram seu avião contra o inimigo eram todos voluntários; a lista de candidatos a kamikaze foi sempre maior do que o número de aviões disponíveis.
O suicídio voluntário não é um ato de desespero, mas de lucidez e abnegação rigorosas. Ele confere significação à toda a vida. A força de vontade que o suicida dá de si próprio expressa soberania e orgulho, revida o ultraje e expia o fracasso. A morte é triste e lamentável, mas o suicida não morre, se mata; desaparece, não sem um último resplendor que, como ele bem sabe, fascinará os mortais e atestará seu devotamento à causa da sua morte voluntária, seja por amor, honra ou patriotismo.
O suicídio como enobrecimento surgiu na antigüidade japonesa. Os chefes poderosos dos primeiros clãs guerreiros, em seu enterro, eram acompanhados pe-lo enterro compulsório dos parentes; um costume também registrado na Babilônia, na Índia e na China. A prática durou até o século V, quando o rei Suinin aboliu-o, substituindo familiares vivos por estátuas de terracota. Entretanto, o junshi — acompanhamento voluntário na morte — continuou. Os sentimentos que uniam o senhor e seus servidores, suserano e vassalos, o imperador e seus oficiais, o apego de homem para homem forjado em combates, era intenso.
Às 10h50 do dia 25 de outubro de 1944, quando a notícia do primeiro ataque kamikaze — três horas antes — ainda não tinha sido totalmente entendida, cinco Zero atacaram a 3a. Frota no Golfo de Leyte. Surgiram rasantes, sobre a espuma das ondas, para escapar dos radares, subiram 2 mil metros e mergulharam. Dois arremeteram contra o navio-capitânea, o porta-aviões Fanshaw Bay, mas foram derrubados. Um errou por centímetros o porta-aviões Kitkun Bay e explodiu na água. Dois mergulharam no White Plains, mas as balas de 40 milímetros do fogo antiaéreo atingiram um, que caiu e explodiu, matando 11 marinheiros, e desviaram o outro. O piloto manobrou com sucesso, mudou de alvo e foi estatelar-se, em cheio, na ponte de comando do Saint Lo. A explosão e o incêndio acionaram torpedos e bombas estocadas no hangar. Sete explosões sucessivas sacudiram o porta-aviões. Trinta minutos depois, às 11h25, o Saint Lo afundou. Foi o primeiro navio afundado pelos kamikazes.
Na base de Macabalat, na ilha de Luzón, nas Filipinas, de onde a esquadrilha decolara, o vice-almirante Onishi Takijiro exultou. Naquele momento, a força aérea japonesa nas Filipinas estava reduzida a 60 aviões em condição de vôo. Os dois ataques, com o sacrifício de nove pilotos, mataram 113 americanos, feriram 200, afundaram um porta-aviões e danificaram três. Takijiro, o idealizador dos Taiatari Tokubetsu Kogekitai — as Unidades Especiais de Ataque por Choque Corporal, mais conhecidas como kamikaze, tinha um saldo positivo para informar ao imperador. A expressão kamikaze, que significa “vento divino”, havia sido usada para designar um tufão que, em 1281, dispersou os navios e impediu a invasão mongol do Japão. Novamente , em 1944, o vento divino poderia mudar a sorte.
A idéia suicida avançou no Exército e na Marinha. Dois meses antes da estréia dos kamikazes, o imperador Hiroito aprovara a construção do míssil Ohka, um torpedo voador de duas toneladas, asas, pequena cabine para piloto, controles elementares de vôo e cinco foguetes. Podia voar 30 quilômetros depois de ser lançado por um planador. Com o cerco do Japão, foram projetados botes leves carregados de dinamite, homens-rãs suicidas, torpedos auto-dirigíveis e mini-submarinos.
O honroso sacrifício de 2 198 pilotos kamikazes resultou no afundamento de 34 navios, danificação de 288 e na morte de milhares de marinheiros, mas não impediu a vitória americana. A arma não era cem por cento eficaz, embora de rendimento superior aos métodos ordinários. Os almirantes em Tóquio sabiam que ela não mudaria o curso da guerra.
O inimigo temia e odiava os ataques kamikazes. No princípio, não sabia como reagir: o navio visado teria que zigue-zaguear ou se imobilizar para melhor ajustar o tiro antiaéreo? Com o tempo, o efeito surpresa se desgastou e as guarnições antiaéreas foram treinadas para servir em sobressalto. A superioridade da aviação americana no ar diminuiu muito a eficácia dos kamikazes.
Enquanto isso, os sacrifícios japoneses eram cada vez maiores. Na Ilha Leyte, morreram 4 000 americanos e 65 000 japoneses. A conquista das Filipinas custou 10 440 vidas americanas e 256 000 japonesas. O massacre seguinte, na ilha de Iwo Jima, em fevereiro de 1945, custou a morte de 6 812 americanos e 21 000 japoneses, a guarnição inteira aniquilada. A carnificina fez os generais americanos pensarem. Se naquela ilhota a resistência fora assim, o que aconteceria quando os aliados chegassem às ilhas do Japão? A lógica da resistência até a morte acabaria por tornar razoável a lógica do uso da bomba atômica para poupar a morte estimada de 2 milhões em uma guerra de ocupação.
Em abril de 1945, os americanos reu-niram quatro divisões do exército e três de fuzileiros, 280 000 homens, pa-ra invadir Okinawa. O Japão mandava uma advertência mórbida: se sacrificava 185 000 pessoas por Okinawa não haveria limite de sacrifício na de-fesa do solo pátrio.
No começo, os kamikazes eram escolhidos entre pilotos de elite voluntários. Mais tarde, no final da guerra, as autoridades adaptaram-se às necessidades. Solicitaram vocações, escolhendo jovens, ao redor dos 20 anos. No Japão, a maturidade completa corresponde à idade simbólica de 41 anos: aos 21, os jovens ainda são considerados em dívida com a família e a sociedade.
O sentimento de solidariedade e de emulação reunia as vontades num mesmo impulso. Os voluntários iam para o escritório do comandante, recebiam felicitações, assinavam um engajamento e começavam o treinamento — na medida da disponibilidade de gasolina, cada vez mais rara. Os pilotos aguerridos, cada vez mais raros, passaram a ser reservados para missões de cobertura e os mais jovens para o mergulho final. Para muitos jovens medíocres, desprovidos de maiores talentos, a oportunidade de morrer como kamikaze significava acesso à glória de herói. No final, muitos universitários vindo de disciplinas jurídicas e literárias, intelectuais inflamados com a moral samurai, eram treinados sumariamente e convertidos em kamikazes. Estudantes de ciências eram muito preciosos para o futuro para serem dispensados dessa maneira.
Os treinadores recomendavam manter a calma e a responsabilidade pelo uso eficaz do precioso avião confiado. Era preciso escolher a presa, voar rente às ondas, ou se precipitar a pique sobre a embarcação, esquivando-se do fogo inimigo com a mente desperta, o coração calmo e os olhos bem abertos, para atingir o bom fim. Era preciso resistir à pressa, à ansiedade, ao impulso e levar seu suicídio a termo, sem comoção — levando, pela morte, o autodomínio à perfeição. No máximo, o grito vitorioso de Banzai! (Viva!), antes do impacto.
Na última noite antes da missão, os pilotos escreviam suas cartas finais, um ou dois poemas, dormiam ou cantavam para espantar o medo. Ao nascer do sol, arrumava-se uma mesa no campo de aterrissagem e a esquadrilha se reunia. O comandante da base partilhava uma última taça de saquê com os que iam partir. Fumavam um cigarro. Os pilotos vestiam, na testa, uma faixa de algodão branco com um sol vermelho impresso — a cor que os samurais usavam em batalha para avisar que estavam dispostos a morrer. Perfilavam-se, inclinavam-se pela última vez na direção do sol nascente e subiam nas carlingas. As fotografias os mostram, instantes antes da decolagem, sorrindo e acenando. A adesão era completa.
No holocausto de Okinawa poucos caças Zero foram usados pelos kamikaze. Os aviões eram cada vez menos adequados à missão e cada vez mais precários. A grande maioria foi derrubada no ar pelos Hellcats americanos. Toru Okazono escapou de morrer porque não chegou a entrar em missão. Tinha 18 anos e sentiu imenso remorso: “Eu acreditava na superioridade do espírito kamikaze. Foi um dia terrível, perdi minha razão de viver, porque eu vivia para morrer”, disse.
A inutilidade prática do sacrifício dos pilotos foi compreendida pelo seu idealizador. O almirante Onishi Takijiro foi um dos que suicidou-se fazendo sep-puku após ouvir o discurso de rendição do Imperador no rádio. O incentivador do tufão deixou sobre sua mesa o seguinte poema: “No céu puro sem nuvens / Agora a lua brilha / A tempestade passou”.
Sua mensagem de despedida dizia: “Eu me dirijo à elite que os kamikaze representam. Eles lutaram heroicamente. Estávamos cheios de esperança na vitória final, mas o sacrifício não tornou nosso triunfo possível. Ofereço minha morte em honra de meus subordinados e suas famílias. Também me dirijo aos jovens. Que eles aprendam uma lição com a minha morte. Deve-se levar a vida a sério. Deve-se obedecer ao Imperador e, mesmo na derrota, todos devem continuar orgulhosos de serem japoneses”.
Para saber mais:
A guerra sem fim
(SUPER número 1, ano 1)
Os dias dos caças
(SUPER número 10, ano 6)
O Japão rumo ao espaço (SUPER número 5, ano 8)
I Guerra Mundial
(SUPER número 12, ano 8)
Os samurais e o Seppuku
No século XII houve a emergência de uma elite marcial, os samurais. Chefiados por um general supremo, o shogun, os samurais dominaram o Japão de 1192 até 1868. A ideologia dos samurais exigia glória na derrota. A prática de suicídio dos vencidos surgiu no século XII, para evitar a execução em guerras onde não se tomavam prisioneiros. Mas a partir do século XIII o gesto de matar-se tornou-se mais e mais solene e ritual. A morte voluntária era um manifesto do domínio de si. Por isso, gradualmente, impôs-se a cerimônia dolorosa do seppuku, o ritual impassível de abrir-se o ventre com uma adaga, em cruz, da esquerda para a direita e de cima para baixo. No Ocidente, ficou conhecido pelo nome harakiri.
A sucessão de derrotas no Pacífico, até a rendição total, em 2 de setembro de 1945, provocou uma epidemia de seppuku no Alto Comando japonês. Dezenas de comandantes, almirantes, generais e ministros abriram o ventre.