Lendas de um povo guerreiro que revelou novos mundos
Entre os séculos 8 e 11, os vikings aterrorizaram as costas da Europa com invasões e pilhagens. Há quem defenda que foram os primeiros a chegar ao que seria a América. No caminho, descobriram e povoaram a Islândia e a Groenlândia (a "terra verde", ainda que mais pareça uma geleira). Mas por trás do que se imaginava ser a personificação da barbárie havia uma civilização refinada, com uma rica mitologia de deuses, heróis e monstros narrada na tradição oral e que, mais tarde, se transformou em uma literatura muito sofisticada.
Texto Álvaro Oppermann
No princípio era um grande vazio. Mas aos poucos, surgiram dois reinos. No norte, Niflheim era lugar de gelado. No sul, Muspelheim era quente e cheio de fogo. No centro, o calor de um reino se encontrava com o frio do outro, e o gelo começou a derreter. As gotas formaram um gigantesco monstro de gelo, Ymir. Quando Ymir acordou e o calor do vento do sul bateu em seu corpo, ele começou a suar. E de seu suor outros dois gigantes, macho e fêmea, apareceram embaixo de seu braço. Nas suas pernas surgiu mais um macho, de 6 cabeças. O gelo ao redor continuava derretendo e deu forma a Audhumia, uma vaca, que alimentou os gigantes com seu leite. Com sede, a vaca lambia o gelo, e outros gigantes começaram a povoar o pedaço. Buri, o primeiro a nascer das lambidas, teve um filho chamado Bor, que se casou com Bestla. Eles tiveram 3 filhos, Odin, Vili e Vê, os primeiros deuses nórdicos. Os 3 deuses juntaram forças e derrotaram Ymir. Com sua carne, fizeram a Terra. O sangue virou mares, rios e lagos. A caveira, o domo do céu. Então, criaram o primeiro homem, Ask, do freixo, e a primeira mulher, Embla, do olmo.
O DEUS CAOLHO
Ele tinha longos cabelos e barbas de cor prateada. Usava um cajado e um chapelão de bico cônico. Não, não se trata do mago Gandalf, o Cinzento, de O Senhor dos Anéis. O deus Odin – pois é dele que estamos falando – tinha um aspecto amedrontador, ao contrário do benigno personagem criado por J.R.R. Tolkien. Odin estava mais para líder de gangue de motoqueiros. Era alto e forte como um gigante. De feições pétreas, tinha um olho só. Reza a mitologia nórdica que o deus, num arroubo de macheza (ou insensatez, dependendo), arrancara o outro olho com as próprias mãos. A sua “Harley-Davidson” era um cavalo cor de fogo, Sleipnir, um possante monstrengo de 8 patas. Odin era o senhor dos deuses nórdicos.
Em Asgard, a Terra dos Deuses, todos o tratavam com respeito e deferência. Todos, menos o endiabrado Loki. Apesar da origem divina, Loki provocava consternação em Asgard, e ninguém entendia por que raios Odin não mandava enforcá-lo. As más línguas diziam que os dois eram irmãos. O cavalo Sleipnir havia sido presente do capetinha. Certo dia, porém, Odin estava fazendo mágica – seu hobby – e, entre risadinhas maliciosas, Loki disse que aquilo era coisa de mulher. Pra quê! Odin, enfurecido, moeu Loki de pancada. A mitologia e a religião dos vikings – povos de origem germânica que povoaram o norte da Europa, principalmente as regiões da Suécia, da Noruega, da Dinamarca e da Islândia – são mescladas de elementos de encantamento e violência, com uma pitada de fatalismo. “É uma fé não-revelada, sem uma data histórica de começo”, diz o professor Johnni Langer, que leciona história medieval na UFMA e é o autor de Deuses, Monstros, Heróis: Ensaios de Mitologia e Religião Viking.
ELFOS E FADAS
“A fé nórdica não possuía um livro sagrado ou dogma principal”, afirma Johnni Langer. Era uma religião livre como o vento do norte europeu. E telúrica. Não haviam templos, e os ritos eram feitos junto a cachoeiras, campos e bosques. “Viking era o termo usado para designar os guerreiros nórdicos. Posteriormente, passou a designar a civilização como um todo”, esclarece Johnni.
A mitologia nórdica sobreviveu graças sobretudo aos Eddas, coletâneas em prosa e poesia de narrativas orais preservadas na Islândia. E é uma delícia. A religião viking parece saída de um RPG, à la Dungeons and Dragons. Era uma religião povoada de elfos, fadas, monstros e gigantes. E de deuses, claro. Freya – uma Gisele Bündchen de eternos 17 anos – era a deusa da beleza. O sisudo Heimdall guardava atento a ponte em forma de arco-íris que ligava Asgard e Midgard (o mundo humano: a Terra). Tyr, o deus da glória, era um exímio guerreiro, apesar de maneta (o lobo Fenrir comera um de seus braços). Já o deus boa-praça Freyr era o guardião do mundo subterrâneo dos anões. (Adivinhe onde Tolkien foi buscar inspiração para sua trilogia?)
AS VALQUÍRIAS
A sociedade nórdica era dominada pelos valores aristocráticos da casta guerreira. Isso se refletia na religião viking. Os guerreiros que morriam em combate renasciam em Asgard, a Terra dos Deuses, e passavam a morar no palácio de Valhala, construído por Odin. Lá, eram acompanhados por belas e sensuais jovens – as Valquírias -, com vinho e iguarias à vontade. Tudo liberado. O Valhala era uma espécie de spa dos heróis. Não era propriamente uma religião para os fracos. “Os que morrem de doenças, velhice ou acidentes vão para os subterrâneos do reino de Hel”, diz Johnni Langer.Os subterrâ-neos eram lugarzinhos ingratos, mais ou menos como as cavernas do Tártaro na mitologia grega. O elitismo religioso também estava presente nas cerimônias funerárias vikings. Nobres e guerreiros eram cremados dentro de seu navio. Por sua vez, o enterro dos corpos era visto com desdém, condizente com fazendeiros e pequenos artesãos – gente honesta, mas não muito valente, na opinião da elite nórdica. “Contudo, o estereótipo do viking como um bárbaro primitivo é falso”, diz Johnni Langer. No livro Os Vikings: História de uma Fascinante Civilização (Editora Hemus, 2004), o historiador Johannes Brondsted mostra que a sociedade nórdica era bem mais sofisticada do que se imagina. O vestuário, as ferramentas e as habitações vikings eram tão ou mais refinadas do que as existentes então no resto da Europa. Segundo a historiadora americana Jenny Jochens, a mulher também tinha uma importância destacada na sociedade. “Elas controlavam propriedades rurais e pequenos negócios. Participavam da confecção das velas dos navios”, escreveu Jenny no artigo La Femme Viking en Avance sur Son Temps, da revista Temas Medievales (2004). Era comum a presença de profetisas no povo nórdico. Seriam mulheres que teriam um vínculo espiritual direto com a deusa Frigga.
RUNAS
A adoração entre os vikings não era restrita aos deuses. Um exemplo: segundo os historiadores Miranda e Stephen Aldenhouse-Green, a Islândia possuía a figura do goði, análoga à dos druidas celtas, como escrevem em The Quest for the Shaman: Shape-Shifters, Sorcerers and Spirit-Healers of Ancient Europe, de 2005. Os goði eram magos, especialistas nas artes divinatórias das runas (símbolos do antigo alfabeto germânico). Contudo, a figura do sacerdote profissional não existia na sociedade viking. Tal papel era circunstancial. “O povo também adorava os espíritos da terra”, diz Johnni Langer. Essas criaturas sutis, chamadas landvaettir, habitavam os bosques e as florestas. “As cabecinhas de dragão que adornavam os navios vikings estavam associadas a esses espíritos”, observa Langer.
Como dá para ver, era uma religião até que pacífica. Para deixar um viking espumando de ódio, contudo, bastava pronunciar uma palavrinha: “cristão”. O cristianismo, muito contrário à cosmovisão politeísta viking, inspirava ódio e temor nos bárbaros do norte, que tentaram em vão destruir a religião de Jesus Cristo. Entre os séculos 8 e 9, os vikings empreenderam uma série de ataques a mosteiros do norte da Europa, em especial na região inglesa da Nortúmbria. Não era uma guerra santa. Era pura pilhagem. Ironicamente, a visão de mundo dos cristãos europeus era tão mágica quanto a dos vikings. Segundo as Crônicas Anglo-Saxônicas, escritas por um anônimo monge, o ataque viking ao mosteiro inglês de Lindisfarne, em 793 – data convencional da inauguração da civilização viking -, foi antecedido por uma séries de eventos premonitórios e mágicos. “Ventos terríveis. Relâmpagos cortavam o céu. Dragões dançavam insolentes no ar e cuspiam fogo”, escreveu o assombrado monge.
PAGANISMO
O mundo cristão, porém, acabou por derrotar os destemidos guerreiros nórdicos. A pá da cal veio em 1066, quando o rei viking norueguês Harald Hardrada foi derrotado na Inglaterra. “O paganismo já não oferecia os mesmos vínculos sobrenaturais, confortos materiais e satisfações cotidianas ao homem do norte”, diz Johnni Langer. Era o fim dos deuses? Não, senhor! Odin & companhia não se deram por vencidos tão facilmente. “No século 15, ainda haviam adoradores de Odin, que foram perseguidos pela Inquisição”, diz Johnni Langer. Na língua inglesa, os deuses nórdicos sobrevivem até hoje no calendário semanal: Tuesday (terça-feira) é uma homenagem a Tyr, Wednesday (quarta) a Odin, Thursday (quinta) a Thor, e Friday (sexta) uma justa homenagem à bela Freya. Sobrevivem também na cultura pop, como mostra o autor Christopher Knowles em Nossos Deuses São Super-Heróis (Cultrix, 2009). Enquanto não vier o Ragnarök, os deuses do norte ainda vão dar o que falar. Com muito som, beleza e fúria, é claro.
RAGNARÖK
A “contaminação” da mitologia nórdica pelo cristianismo está presente no Ragnarök: uma batalha que vai ocorrer no fim do Cosmos (tal como o apocalipse bíblico). É a única lenda nórdica que ocorre no futuro e começa com a morte de Balder, filho amado de Odin e Frigga, numa trama do (quem mais?) deus Loki e seus aliados.
A morte de Balder tem reflexos imediatos na Terra. Tudo começa a piorar. O inverno dura 3 anos inteiros, os homens matam seus parentes, os lobos comem a Lua, as florestas secam. Deuses, humanos, monstros, todas as formas de vida se engalfinham numa batalha que acaba sem vencedores. Por fim, o caos que antecedeu à criação retorna. Uma imensa fogueira queima tudo, e a Terra é, enfim, engolida pelo oceano. No final, a Terra ressurge. Um casal de humanos, Lif e Lifthrasir, começa a repovoar o planeta. Balder volta do submundo e se torna o regente de todo o Universo. O ciclo nórdico recomeça, num novo tempo sem maldade.
Odin era o chefe dos deuses. Mandou construir Valhala – a morada dos heróis em Asgard, o paraíso. Tem um terrível cavalo vermelho de fogo, de 8 patas, Sleipnir. Irascível, surrou o deus Loki. Razão: Odin gostava de fazer mágicas, e Loki dizia que magia era coisa de mulher. O criador da humanidade, detentor supremo do conhecimento, das fórmulas mágicas e das runas costumava ser invocado por ocasião das batalhas, dos naufrágios e das doenças.
UMA RELIGIÃO PARA OS FORTES
Quando morriam, os guerreiros vikings tinham lugar cativo no Valhala, o paraíso dos nórdicos. Os velhos, mesmo os bons, seguiam para o inferno.
A LENDA DE BEOWULF
É provável que você tenha visto o filme. O guerreiro Beowulf, dos Geats, ajuda o rei dinamarquês Hrothgar a se livrar do monstruoso Grendel, o devorador de homens, que costumava atacar o palácio em busca de comida. A mãe de Grendel, enfurecida, busca vingança, mas o herói a segue até seu esconderijo, no fundo de um lago. Numa longa luta para penetrar a pele grossa e escamosa da criatura, Beowulf triunfa. A história do filme acaba aqui. Beowulf, não. Ele reina por 50 anos entre os Geats até que, já velho, se vê diante de um novo desafio. Um dragão que guardava um grande tesouro se enfurece quando um jovem rouba uma taça de sua coleção. Ele pretende destruir os Geats e Beowulf o encara usando um escudo de ferro para suportar o fogo que sai do bicho. É abocanhado pelo dragão, mas o guerreiro Wiglaf o salva. O veneno do hálito do dragão, porém, o enfraquece e ele morre, não sem antes dar suas armas e seu tesouro ao jovem Wiglaf.
LOKI E HEL
Em Asgard, a monotonia era quebrada pelo travesso deus Loki. Ele pregava peças e insultava os outros deuses. Depois de uma série de roubos e assassinatos, foi condenado a passar a eternidade numa caverna. Sua filha, Hel, ganhou dos outros deuses o pior dos trabalhos: vigiar o reino subterrâneo dos mortos pecadores.
FRIGGA
No panteão nórdico, o posto mais alto entre as mulheres era o de Frigga, esposa de Odin. Chefiava as Valquírias. Para se recuperar da perda do filho Balder, se tornou a rainha da fertilidade. Cuidar do nascimento dos seres humanos tornou-se uma terapia ocupacional para a deusa enlutada.
THOR
Se Odin representa o poder, Thor é a representação do amor e da misericórdia. Com seu indefectível martelo, gostava de esmigalhar o crânio dos gigantes mais malvados.
BALDER E HOOR
Odin tinha dois filhos, Balder e Hoor. Balder era o filho predileto, o deus da beleza e do equilíbrio. Hoor, cego e meio atrapalhado, tinha fama de perdido. Balder tinha um segredo: não possuía resistência ao veneno extraído do visco, uma planta comum na Escandinávia, e foi morto por Loki.