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Liberdade corroída

Os discursos do Ocidente e dos fundamentalistas nunca foram tão parecidos. Há algo de errado com os nossos valores democráticos?

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h17 - Publicado em 31 out 2001, 22h00

Rodrigo Cavalcante

Francis Dyckman é uma típica avó de classe média americana, daquelas que ainda fazem a verdadeira torta de maçã, marca registrada do país, e se divertem com os netos colocando bandeirolas dos Estados Unidos no jardim de casa, nos arredores de Boston, Massachusetts. Seu sorriso se desfaz apenas quando olha para o retrato do marido, que morreu há mais de 20 anos. Ela sente sua falta. E sente falta também dos Estados Unidos do tempo da Segunda Guerra Mundial, “quando a vida era difícil mas, em compensação, o povo americano era mais unido”. Depois do atentado do dia 11 de setembro, Francis sentiu novamente um pouco do velho espírito da América, enquanto assistia às tropas do exército do seu país cercarem o Afeganistão. “Temos que preservar nossos valores democráticos, custe o que custar”, diz.

O mesmo sentimento reacendido em Francis tomou conta da maioria dos lares americanos. Quinze dias após o atentado, quase 10 000 pessoas se candidataram a trabalhar na CIA, a agência do serviço secreto. No mesmo período do ano passado, apenas 2 760 currículos haviam sido enviados. A venda de armas cresceu 20%, a de Bíblias, 28%, e o estoque de bandeiras sumiu das prateleiras. Até a catedral de St. Patrick, em Nova York, precisou incluir cinco novas missas na programação semanal para atender os fiéis. As preces em defesa dos valores americanos aumentaram inclusive o consumo de velas, que cresceu 30%.

Mas nenhum desses números superou o milagre da multiplicação de apoio operado sobre a Casa Branca. Segundo pesquisa do jornal Washington Post, realizada dez dias após o atentado, os discursos do republicano George W. Bush conquistaram a aprovação de 90% dos seus compatriotas, mesmo daqueles que não haviam engolido bem o controvertido resultado das eleições no início do ano. “Os terroristas querem atingir os valores americanos”, declarou o presidente. “Cada nação, em cada religião, tem de tomar uma decisão agora. Ou está conosco ou está com os terroristas”, ameaçou. A onda de discursos inflamados não parou por aí. Preste atenção neste: “Digo a eles que esses eventos dividiram o mundo em dois campos: o dos fiéis e o dos infiéis”. Ele não é de autoria de Bush. Veio direto da rede de televisão paquistanesa Al Jazeera, no pronunciamento em que Osama bin Laden convoca os muçulmanos a lutar contra os Estados Unidos. Parecidos os dois discursos, não?

Talvez tenha sido apenas a ira, o sentimento de ódio diante de tantas mortes. Mas não há como negar que, pelo menos por alguns momentos, o discurso americano e o dos fundamentalistas islâmicos se confundiram. O líder evangélico dos Estados Unidos, Billy Graham, por exemplo, pediu que todos se voltassem para Deus e rezassem como uma nação, “para impedir que o mal se espalhe”. No final da exortação, pinçou trechos do salmo 45 da Bíblia: “Deus é nosso refúgio e nossa força. Conosco está o Senhor dos exércitos”. Curiosamente, a frase menos messiânica de todo o tiroteio verbal partiu justamente do supremo líder religioso do Irã, o aiatolá Khamenei. “Não, nós não estamos do seu lado. E nós não somos terroristas”, respondeu prontamente o aiatolá, fugindo da cruzada dos discursos.

A declaração de Khamenei não veio de um país que pode ser considerado um exemplo de democracia. Mesmo assim, caiu como uma pedra sobre as nações do Ocidente ao expor a fragilidade dos seus valores. Será que a linha que divide a democracia dos outros regimes políticos é tão tênue que não resiste ao abalo dos Boeings que caíram sobre os Estados Unidos?

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“Não tenho dúvida de que o discurso intolerante de um país democrático, mesmo quando dirigido a um inimigo externo, é um risco à liberdade interna do próprio país”, diz o cientista político da USP Cícero Romão Filho. O pacote de leis para o combate ao terrorismo, assinado por Bush no final do mês passado (leia mais sobre esse assunto na matéria “Tem alguém te vigiando”, na pág. 19), já aponta nesta direção. Além de facilitar a escuta telefônica e o monitoramento de mensagens via internet, a nova lei diferencia os direitos civis dos americanos dos de estrangeiros. Os estrangeiros suspeitos de terrorismo poderão ficar detidos por uma semana, mesmo que não sejam culpados – um cidadão americano não pode ficar preso sem culpa formada por mais de 24 horas. Bush disse que os novos poderes da polícia e das agências de inteligência “são necessários para enfrentar uma ameaça sem paralelo na história” e garantiu que “o governo aplicará a lei com a urgência de uma nação em guerra”.

Com a prisão de milhares de americanos árabes nos últimos meses, o final de ano não promete ser nada agradável para os defensores dos direitos civis.

“Essa é a contradição: em nome da liberdade, o governo suspende direitos que são a base da sua própria democracia”, diz Romão Filho. Ou seja: num momento de tensão, os Estados Unidos esquecem valores que, desde a chegada dos primeiros imigrantes europeus, foram a marca registrada do país. No século XVII, esses imigrantes chegaram fugindo das guerras e das perseguições religiosas. Daí o apego ao direito, à crença e ao respeito às liberdades individuais que foram a base da sociedade americana. Esses valores, consagrados com a independência do país, em 1776, influenciaram a Revolução Francesa, em 1789, e marcaram o início de uma nova era. Os dois países se tornaram modelos de nações livres, que haviam varrido do seu interior o despotismo dos monarcas e a influência intolerante da religião no Estado.

Pouco mais de um século depois, a França selou essa amizade presenteando os Estados Unidos com o monumento símbolo da nova era: em outubro de 1886, milhares de novaiorquinos celebraram a chegada da Estátua da Liberdade.

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Com alguns reveses, a credibilidade dos valores representados pelo monumento permaneceu praticamente intacta até o final da Segunda Guerra Mundial. Em seguida, durante a Guerra Fria, esses valores entraram em conflito constante com a política externa americana e as rachaduras maiores apareceram. Veja o caso do ditador Suharto, da Indonésia. Em 1967, quando assumiu a presidência, ele banhou o arquipélago num mar de sangue. Mais de 500 000 pessoas foram assassinadas sob seu comando. Tudo apoiado por Washington, que não queria que os opositores do ditador estreitassem laços com a China. O patrocínio às ditaduras latino-americanas – incluindo a brasileira e a chilena – e a desastrosa participação no Vietnã já seriam exemplos suficientes para fazer a senhora liberdade corar de vergonha. Mas talvez tenha sido o alinhamento dos Estados Unidos com o regime truculento do xá iraniano Reza Pahlevi a mais emblemática dessas alianças.

Um artigo da revista National Geographic, de 1975, com o título “Iran – Desert Miracle” (Irã – Milagre no deserto) exaltava a modernização do país, com fotos da imperatriz em roupas ocidentais e da moderna capital Teerã, cada vez mais parecida com as grandes metrópoles do Ocidente. A revista anunciava uma “nova era para a região, que quebrava os laços com seu passado feudal”. Ignorava que os iranianos viviam sob uma ditadura ferrenha. Em 1979, os muçulmanos derrubaram o governo do xá e levaram ao poder um líder religioso exilado na França: Ruhollah Khomeini, o aiatolá Khomeini – que instalou o governo xiita. Os Estados Unidos, em represália, decidiram apoiar o Iraque, país que entraria em guerra com o Irã. E, ironicamente, fortaleceram o poder do homem que, dez anos depois, se transformaria no seu arquirrival – Sadam Husseim. O próprio Osama bin Laden foi beneficiado pelo apoio americano aos afegãos sob a invasão soviética até 1988.

Seria ingenuidade pensar que a democracia pode sobreviver sem essas negociações escusas? Talvez. O fato é que, no momento em que você lê este texto, a conta do apoio russo e da neutralidade chinesa na guerra afegã pode estar sendo por Chechênia e Taiwan. No caso da Rússia, há a tese de que o Ocidente deixaria de pressionar o país pelas infrações aos direitos humanos na guerra com a Chechênia. Enquanto isso, a China exigiria dos Estados Unidos apenas que não apoiassem o desejo de independência da província de Taiwan. A essa altura, o toma-lá-dá-cá é mais importante do que o desejo da população dessas duas regiões.

Agora, imagine que os países democráticos fizessem um esforço sincero para eliminar os regimes opressores em todo o mundo. O que aconteceria? “Se a campanha dos países democráticos contra os que praticam o terror se traduzir numa política de apoio efetivo e sistemático à democratização das sociedades vítimas das ditaduras, o mundo evoluirá de forma rápida”, disse o escritor peruano Mário Vargas Llosa, num artigo publicado logo após o atentado. Mas seria legítimo impor um sistema político externamente – mesmo que ele seja a democracia? “Se ela não brotar de dentro do país, dificilmente durará muito tempo”, diz Renato Janine Ribeiro, filósofo da USP. “Até mesmo porque a imposição pela força de qualquer regime pode criar um sentimento de oposição interno mais forte.” Ele diz que a melhor forma de eliminar regimes fundamentalistas que dão suporte ao terrorismo seria apoiar economicamente esses países. “Quando o inimigo não é claro, as soluções militares são ineficazes”, diz.

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Mesmo que a riqueza eliminasse boa parte das ações terroristas, restaria ainda uma pergunta: a existência de um Estado regido por leis religiosas é legítimo – desde que a maioria da população o apóie? “Acredito num Estado teocrático justo”, diz o xeque Jihad Hassan Hammadeh, um dos líderes da religião islâmica no Brasil. “Desde que haja tolerância religiosa e liberdade de expressão, por que um povo não pode viver seguindo as leis da sua religião?” Quando questionado se é possível chamar de democrático um Estado presidido por um califa, sem eleições de quatro em quatro anos, ele pára, pensa um pouco e questiona: “Por que o que o Ocidente chama de democracia ocidental tem que ser a regra geral para todos os povos?”

Até há pouco tempo, boa parte dos intelectuais acreditava que a democracia ocidental era um valor tão sólido que chegaria um dia em que ninguém faria uma pergunta dessas. Mas a reação aos atentados do dia 11 de setembro está reacendendo o debate da legitimidade do Ocidente em proclamar que alguns de seus valores são superiores aos de outros povos. Até mesmo a idéia de que nossas democracias são laicas e deixaram de lado a presença da religião terá que ser reavaliada. “Antes de criticar a religião nos Estados do Oriente Médio, é bom lembrar que, até 1977, a lei do divórcio sequer existia no Brasil, por influência da Igreja”, diz o filósofo da Unicamp Roberto Romano. “E a legislação do aborto?” Ele diz ainda que a Igreja Católica esteve no poder na Europa durante as ditaduras de Franco, na Espanha, e de Salazar, em Portugal. “O próprio papa João Paulo II é mais que um líder religioso.

É também um grande estrategista político”, diz, lembrando que, nos anos 80, ele teria sido um apoio decisivo aos governos de Ronald Reagan e de Margareth Thatcher na luta pela desintegração do regime soviético. “Mesmo em nossos tribunais, quando as testemunhas juram dizer a verdade, elas juram colocando a mão em qual livro? A Bíblia ou A Origem das Espécies, de Darwin?”

Para Ivan Rocha, professor de história antiga da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), os conflitos atuais são muito semelhantes aos problemas do Oriente Médio no século I. “Para manter seu domínio sobre os judeus da Palestina, Roma tolerava sua religião, desde que os impostos fossem pagos”, diz. “Esse domínio era mantido também com o apoio de uma elite entre os próprios judeus, assim como os americanos têm o suporte da Aliança do Norte no Afeganistão.” Rocha conta que esse ambiente de pobreza, conflitos religiosos e políticos, foi decisivo para a popularidade de Jesus que, em seus discursos, fazia uma oposição diferente ao Império Romano, sem incitar o ódio ou a revolta pela violência. “Os romanos logo o crucificaram, sem imaginar a influência que essa execução teria nos séculos seguintes”, diz o historiador.

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“Eles não podiam prever que, 2 000 anos depois, a imagem da sua morte estaria espalhada por boa parte do mundo.” Na casa da senhora Francis, em Boston, Estados Unidos, há uma dessas imagens na sala de estar.

rcavalcante@abril.com.br

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