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Mitos que habitam os terreiros de dois continentes

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Por Wagner Gutierrez Barreira
Atualizado em 12 abr 2023, 14h56 - Publicado em 19 mar 2011, 22h00

Os escravos trazidos da África trouxeram para as Américas suas manifestações religiosas. E elas se espalharam pelo continente. A santería cubana, o vodu no Haiti e o candomblé por aqui evocam deuses milenares, originários da tradição dos iorubas, vindos do Benin e da Nigéria, no oeste africano. Cerca de 500 anos antes de Cristo, a África já tinha impérios, grandes cidades e uma arte sofisticada, especialmente a feita com metais, como o bronze e o ouro. O genial artista espanhol Pablo Picasso costumava contar que viu a luz que gerou o cubismo ao visitar uma exposição de arte africana em Paris, no começo do século passado. Com exceção do Egito, os povos africanos não dominavam a escrita. Seus mitos eram transmitidos de pai para filho pela tradição oral. A arte que representava os deuses e heróis do continente foi a chave usada para o mundo ocidental mergulhar na riqueza cultural dos herdeiros dos primeiros Homo sapiens.

O ovo e a galinha

Para os iorubas, grupo étnico do atual território da Nigéria, o deus do céu Olorum mandou seu filho Obatala aqui para baixo com a missão de criar a Terra. Na bagagem, um saquinho de terra e uma galinha de cinco dedos. Obatala tirou a terra do saquinho, a espalhou na água e assim formou o solo. Então, botou a galinha no chão e ela, como boa galinha, saiu por aí ciscando. Cada arranhão no chão criou um vale ou uma colina da África.

Com a base formada, Obatala, cujos atributos são a pureza, a honestidade e a paz, começou a criar os homens usando argila (um material presente no mito de criação da humanidade em várias culturas). Depois, fundou Ife, a primeira cidade dos iorubas. De uma palmeira, presente precioso de Olorum, os primeiros humanos tiraram o suco, o óleo e as nozes, a base para a sobrevivência dos homens.

Uma versão presente em muitas mitologias africanas afirma que os primeiros humanos não tinham sexo. Por um tempo eles ficaram felizes, mas depois notaram que estava faltando alguma coisa. Foi então que o Deus fez baixar os órgãos sexuais masculino e feminino. Acontece que eles eram entidades independentes, com vida própria – há quem acredite que é assim até hoje. Os humanos decidiram se dividir em dois times para tocar as tarefas do dia a dia e convidaram os sexos para se juntarem a eles num dos grupos. Dessa forma surgiram os homens e as mulheres.

Se para os iorubas o mundo existe por causa da ajuda de uma galinha, outros povos africanos, como os dogons, do Mali, acreditam que quem apareceu primeiro foi o ovo. Um grande ovo, que guardava a semente do cosmos. Ele vibrou sete vezes antes de liberar Nommo, o espírito da criação. Ele e seus irmãos criaram o céu, a terra, a noite e o dia e os seres humanos.

A SERPENTE CÓSMICA

O mito da criação para os fons, do Daomé, começa com a serpente eterna Aido-Hwedo e sua mulher, Mawu, a criadora de todas as coisas. Dela saíram outros deuses, tantos que ele não conseguia se lembrar do nome de todos. “A cobra ou a serpente é uma das criaturas mais disseminadas pela mitologia africana. O conceito de uma serpente cósmica como força primeva da criação é especialmente importante”, afirma o antropólogo Roy Willis em Mitologias (Publifolha, 2006).

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Para arrumar um canto para os humanos, Mawu cavalgou a serpente cósmica em busca de um lugar, e desse passeio eles criaram a Terra na forma de uma cabaça, cercada de água por todos os lados. As coisas daqui foram moldadas pelo ritmo da cobra, e enquanto ela serpenteava vales e rios ganhavam forma. É por isso que coisas da Terra são curvas e onduladas – seguem o jeito de se locomover do deus-serpente. O cocô da cobra se transformou nas montanhas. Com o tempo, ficou tão duro que deu origem às pedras. Dentro dessas montanhas existem metais preciosos, o legado do deus para os homens. Parecia bom esse mundo, não? Só tinha um problema: com tantos minérios, pessoas, bichos e plantas, a Terra ficou pesada e começou a afundar. Mawu pediu que o marido segurasse o planeta. A serpente topou na hora. Preferia a água gelada ao calor abrasador da superfície. E está lá até hoje. Quando tenta se enrolar no céu, aparece na forma de um arco-íris. Quando dá uma mexidinha, costuma provocar um terremoto. Diz a lenda que um dia o deus-cobra vai morder o próprio rabo e, quando isso acontecer, o mundo vai afundar no mar.

A ARANHA HUMANISTA

É possível ser um herói e um trapaceiro ao mesmo tempo? Pergunte ao povo achanti, de Gana. Para eles, a aranha Ananse é um símbolo de que o intelecto pode superar a força física. Ela é uma espécie de intermediária entre os homens e a deusa do céu, Nyame. Ela estava amuada porque, apesar de ser uma deusa criadora, estava longe de suas criaturas, e Ananse subia e descia para a Terra usando sua teia para ver como as coisas estavam aqui embaixo. E levava os recados para a deusa.

Cada vez que descia ouvia uma reclamação. Primeiro, de que os homens trabalhavam sem parar nos campos e não tinham tempo de descansar. Ela ajudou a providenciar a noite, para que eles pudessem dormir. Mas os homens ficaram com medo do escuro, e então a deusa colocou a Lua no céu. Os reclamões insistiram e disseram que sentiam muito, muito frio. E a deusa inventou o Sol. Daí, claro, as coisas ficaram muito quentes para os humanos, e a aranha foi contar isso para a deusa, que mandou chuva para aplacar o calor. Foi tanta chuva que inundou todos os campos, e de novo Ananse pediu a Nyame que resolvesse o problema. A deusa topou e tudo ficou bem.

Mas o negócio da aranha Ananse era mesmo levar vantagem. E uma vez se deu bem com a deusa Nyame usando seu repertório de truques. A deusa era dona de todas as histórias do mundo, e a aranha resolveu comprar a coleção. Como pagamento, Nyame pediu uma vespa, uma píton (cobra africana do tamanho de uma sucuri) e um leopardo. A aranha enganou as vespas e as prendeu numa cabaça. Depois, foi encontrar a cobra levando um grande bastão. Disse que não tinha ideia do tamanho dele e pediu que a píton a ajudasse. Quando a cobra se esticou no bastão, Ananse a amarrou pelo rabo e pela cabeça. Por fim, a aranha cavou um poço e o cobriu com galhos e ramos. Foi onde caiu o leopardo. Por isso, a aranha é dona de todas as histórias do mundo (desta que você lê, inclusive).

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Uma vez, um elefante entediado resolveu desafiar todos os animais para um concurso de cabeçadas. É claro que todos deram um jeito de cair fora, menos a aranha Ananse. A regra do jogo previa que a competição deveria durar 14 noites. Na primeira semana, o elefante daria as cabeçadas. Na seguinte, se sobrevivesse, seria a vez da aranha. Na primeira noite, Ananse convidou um antílope à sua casa e ofereceu comida a ele. O elefante apareceu, mandou a cabeçada e despachou o antílope para o outro mundo. A aranha fez a mesma coisa com outros animais até chegar a sua hora no jogo. Então, pegou um martelo e uma cunha, mirou bem no meio da cabeça do elefante e o matou com um só golpe.

ESPERTEZAS DE EXU

Exu é o rei da confusão entre os homens e os deuses iorubas. Certa vez, ele resolveu atazanar a vida de dois grandes amigos. Os dois tinham fazendas vizinhas, estavam sempre juntos e até vestiam as mesmas roupas. Tamanha amizade era demais para Exu. Ele imaginou um truque para separar a dupla. Vestiu um chapéu que era preto de um lado e branco do outro. Botou um cachimbo atrás da cabeça e um cajado nas costas e passou pela divisa das duas fazendas.

Os dois amigos, que concordavam em tudo, começaram a discutir sobre a cor do chapéu e a direção para onde ia o viajante. O bate-boca cresceu tanto que chegou aos ouvidos do rei do lugar. Os dois foram convocados ao palácio e ficaram se acusando de mentiroso, até que apareceu Exu, para dizer que, de fato, não eram mentirosos, apenas tolos.

O rei ficou furioso com o deus e mandou seus guerreiros atrás dele. Por onde passava, Exu queimava as casas. Os moradores tiravam delas o que podiam e o deus pedia para tomar conta dos objetos. Mas os dava de presente a qualquer um que passasse por ali. Dessa forma, o reino ficou pobre e o deus se vingou.

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Mas os homens não eram as únicas vítimas dos truques de Exu. Os deuses também caíam neles, até o mais poderoso. Uma lenda afirma que Exu procurou o Deus Supremo para avisá-lo de que alguém queria roubar sua plantação de inhame. À noite, entrou no quarto do deus, roubou suas sandálias e foi colher o inhame. De manhã, Exu avisou ao deus que sua horta tinha sido roubada, mas que seria fácil encontrar o ladrão, pois ele deixara pegadas espalhadas na roça. Bastava encontrar o dono delas.

Todo mundo foi chamado, mas nenhum pé se encaixava na pegada gigantesca. Então Exu sugeriu que, quem sabe, o próprio deus não teria surrupiado o legume enquanto dormia. Claro que a marca na terra era dele, pois fora feita com a sua sandália. Para castigar Exu, disse que ele deveria se mandar do mundo. Toda noite, ele é obrigado a subir ao céu e prestar contas do que aconteceu aqui na Terra. Por isso é considerado o mensageiro dos deuses pelos iorubas.

A LEBRE E A TARTARUGA

Não, você não vai ler aqui que a lebre e a tartaruga apostaram corrida e a tartaruga venceu no final. A lenda africana conta que, numa temporada brava de seca, todos os animais tentaram encontrar água, menos a lebre, que não queria ser incomodada. A tartaruga escarafunchou o leito seco do rio e conseguiu achar uma poça.

Os animais imaginaram que a lebre, preguiçosa e ladina, tentaria roubar a água e resolveram ficar de guarda. Na primeira noite, foi a vez da hiena. A lebre a enganou e saiu da poça carregando algumas cabaças. Na noite seguinte foi o turno do leão, igualmente enrolado pela lebre. A tartaruga foi a terceira. Ela passou um pegajoso cocô de pássaro no casco e mergulhou no fundo da poça. Quando a lebre chegou, pensou que não tinha ninguém de guarda e resolveu que além de roubar água merecia tomar um banho. Logo que mergulhou, seus pés colaram no casco da tartaruga. Na manhã seguinte, ela foi punida por todos os animais. Ok. Não era a história da corrida. Mas de novo é uma mostra de como a inteligência e a calma podem vencer atributos físicos. É uma imagem que aparece constantemente nas histórias africanas

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Os dogons do Mali acreditam que a criação começou com uma deidade chamada Amma, um ovo que era a semente do Cosmo. Ela vibrou 7 vezes, então se abriu e revelou um espírito criador chamado Nommo. Ele caiu no solo e foi acompanhado por uma gêmea feminina e mais 4 pares de Nommos. Eles criaram e organizaram o céu, a Terra, a sucessão do dia e da noite, as estações do ano e a sociedade humana.

SINCRETISMO NO BRASIL
Qualquer brasileiro já ouviu falar de sincretismo, a mistura de deuses das religiões africanas com santos católicos. O curioso é a que a palavra vem dos gregos. Quer dizer federação de Creta. Plutarco usou a expressão para dizer que os homens de lá sabiam deixar as diferenças de lado e se unir pelo bem comum. De volta ao caso afrobrasileiro, o sincretismo foi o jeito de manter os mitos vivos, pois as religiões africanas eram reprimidas pelos senhores de escravos e, mais tarde, pela polícia. Assim, Iemanjá, a deusa das águas, ganhou um correspondente em Nossa Senhora, Oxalá se identificou com Jesus Cristo, e assim por diante. Mas havia um problema. Que santo poderia ser Exu? Na África, ele é um deus sexista e cheio de truques. Acabou sobrando o capeta. Na mitologia africana, os conceitos de bem e mal não existem, e, para muitos especialistas, não faz sentido relacionar Exu a uma figura ruim. De acordo com alguns historiadores, o terreiro de candomblé é a recuperação simbólica da terra africana, que os negros deixaram para trás ao se tornarem escravos. Hoje existem 3 milhões de praticantes de religiões africanas no Brasil segundo o último censo (e variações como o vodu e a santería no Caribe) e os terreiros funcionam livremente, como qualquer templo. Só em Salvador eles passam de 2 mil.

CHIBINDA ILUNGA
Em Angola, Chibinda Ilunga é um príncipe caçador, ancestral dos reis lubas. Um dia, a rainha de Lunda, que descendia da cobra cósmica que ajudou a criar o mundo, o viu na floresta e ficou apaixonada. Eles se casaram e Chibinda prometeu aos anciãos que nunca derramaria sangue humano.

O FERREIRO CELESTE
Para os fons, do Benin, Gu era o ferreiro celeste, encarregado pelos deuses de tornar a terra habitável para os humanos. Ele os ensinou a moldar o ferro, a fazer ferramentas, tecer e construir casas. E ainda leva a fama de ter dado o arado para os humanos cultivarem a terra.

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Exu e Ifá viviam juntos, mas tinham espíritos bem diferentes. Ifá ensinara aos humanos os segredos da medicina e da profecia. Exu adorava uma trapaça. Certa vez, disse a Ifá que iria arruiná-lo. Ifá respondeu que qualquer coisa que acontecesse a ele aconteceria para Exu. Numa noite, Exu roubou um galo, cortou sua cabeça e escondeu os pedaços. Depois acordou Ifá e ambos saíram correndo dos humanos. Subiram numa palmeira, mas os aldeões cortaram a árvore. No lugar de encontrá-los, deram de cara com uma pedra e uma poça d’água. Quando olhavam para a pedra (Exu), ficavam agoniados e com calor. Mas, quando viraram para a poça, tudo mudou. O chefe sacou o que tinha acontecido e disse: “Nós, do mundo, nos curvamos e os adoramos”.

CONTOS EM QUE O MAIS ESPERTO VENCE O MAIS FORTE
Em várias etnias africanas existem histórias milenares nas quais a inteligência supera a força física. E muitos deuses fazem da esperteza sua principal arma contra os poderosos.

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