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Mozart, a flauta mágica

O bicentenário de sua morte, este ano, desencadeou uma onda de homenagens e comemorações que nenhum outro compositor jamais recebeu. Ele fez por merecer todas elas

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h09 - Publicado em 31 Maio 1991, 22h00

Olhando para meu filho de quase 13 anos, entretido em seu videogame, não posso deixar de pensar que, se ele se chamasse Wolfgang Amadeus, já seria com essa idade o autor de onze sinfonias, duas óperas, 24 sonatas para piano ou violino, missas, oratórios, serenatas e uma infinidade de peças menores. Dá para assustar, não é mesmo? O mundo teve muitos gênios precoces, mas nenhum tão impressionante quanto esse menino austríaco, cujo bicentenário de morte comemora-se este ano, dotado pela natureza de um dom misterioso, que fazia com que fluísse dele, instintivamente, desde a infância, música de qualidade inigualável.

Já é espantoso que, em 1766, aos 10 anos de idade, Wolfgang Amadeus Mozart tenha sido convidado a colaborar com Michael Haydn e Anton Adlgasser, dois compositores adultos e experientes, no oratório Die Schuldigkeir des erstens Gebotes (A obrigação do primeiro mandamento). Como Johann Sebastian Bach antes dele (SUPERINTERESSANTE n.° 7, ano 3,), Mozart não inventou formas novas. Mas levou à perfeição todas as que existiam em seu tempo. Nenhum outro compositor, na história da música, conseguiu, como ele, trabalhar com tanta inventividade todos os gêneros então existentes, da ópera à música de câmara.Mas perfeito domínio de forma não é tudo: outros compositores de seu tempo o tiveram no mesmo alto grau. 

Genialidade em estado puro é o que explica que suas idéias musicais vejam sempre mais originais do que as de qualquer um de seus contemporâneos. Mozart é o dono de uma das mais marcantes “assinaturas” musicais da história da música: a um amante da música clássica basta ouvir meia dúzia de compassos para saber que é dele a melodia tocada. E não apenas dispunha de uma gama imensa de recursos como sabia instintivamente empregá-los da forma mais adequada; tanto assim que foi capaz de transcender um libreto simplório como o da Flauta Mágica, transformando-a numa das mais sublimes criações da mente humana.

Dos sete filhos que Leopold Mozart—violinista, cantor, compositor e vice-mestre-de- capela do Arcebispado de Salzburgo, na Áustria—teve com sua mulher, Anna Maria Pertl, apenas dois sobreviveram. Uma menina, chamada Maria Anna, cujo apelido era Nannerl, e um menino, nascido a 27 de janeiro de 1756, dia de São João Crisóstomo, a quem foi dado o nome de Joannes Chrysostomus Wolfgang Theophilus (ou Gottlieb, em alemão, que, em 1770, época da viagem para a Itália, ele trocaria pela forma latina Amadeus).Não fosse essa data, 1756 teria sido um ano obscuro na história da humanidade. 

França e Inglaterra iniciaram mais uma de uma longa série de guerras inúteis. Os ingleses conseguiam, pela primeira vez, produzir veludo a partir do algodão, e um famoso cavalheiro, Giacomo Casanova, fugia da prisão em Veneza para continuar sua vida de aventura.A infância e a adolescência, Wolfgang—cujo talento para a música revelara-se desde os 3 anos de idade—as passou percorrendo as estradas européias com seu pai, que o levava a exibir-se por toda parte, como um macaquinho amestrado. Sem avaliar os danos que podia estar causando ao filho, que não tinha tempo para ser criança, Leopold não hesitava em explorar o talento do geninho, capaz, aos 6 anos, de improvisar sobre qualquer tema, executar as peças mais complexas ou fazer malabarismo tocando com um pano sobre o teclado do cravo.

Enquanto o príncipe-arcebispo de Salzburgo, para quem os Mozart trabalhavam, era o tolerante Sigismund von Schrattenbach, essas viagens constantes não foram um grande problema. Mozart tocou em Viena para o imperador Francisco I e à princesa Maria Antonieta— mais tarde, a infeliz rainha da França—, que o ajudou a levantar-se depois de um escorregão, disse: “Quando crescer, vou-me casar com você”.Em Versalhes, foi recepcionado nos aposentos particulares de Madame Pompadour, a amante de Luís XV. Recebeu títulos das academias filarmônicas de Bolonha e Verona e a Ordem da Espora Dourada das mãos do papa Clemente XIV Em Roma outra prova de seu gênio: após ouvi-lo uma única vez, na Capela Sistina, reproduziu de memória o Miserere, a nove vozes, de Allegri, cuja transcrição era proibida. E —um recorde para a época—seu Mitridate alcançou vinte récitas no Scala de Milão.Mas a morte de Schrattenbach, em 1771, mudou essa situação. Seu sucessor, Hieronimus Joseph Franz von Paula, o Conde de Colloredo, era intratável, exigente, desaprovava excursões e o interesse de Mozart pela música profana. Ele ainda conseguiu,entre 1777 e 1778, fazer uma estada em Manaheim, onde entrou em contato com a orquestra- laboratório que Johann Stamitz criara para fazer pesquisas de técnica instrumental. Com Christian Cannabich, o sucessor de Stamitz, Mozart aprofundou seu conhecimento das possibilidades da escrita orquestral.

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Foi em Mannheim também que conheceu a família Weber, e apaixonou-se por Aloysia, talentosa soprano, a mais velha das quatro irmãs. Mas Leopold desaprovava esse casamento, que perturbaria a carreira do filho, a quem não queria ver “reduzido a mero acompanhador de uma cantora”. Para afastá-lo de Aloysia, mandou-o a Paris com a mãe; mas Anna Maria adoeceu subitamente, e morreu em julho de 1778. Mozart estava com 22 anos, e já testemunhara alguns acontecimentos de grande importância.

As colônias inglesas no remoto continente americano declararam-se independentes. Na Inglaterra, Adam Smith publicou sua Pesquisa sobre a natureza e a causa da riqueza das nações, logo reconhecida como a bíblia do novo modelo econômico que tomava conta da Europa—o capitalismo. Descobertas recentes revelavam que o ar era composto principalmente de oxigênio e nitrogênio. O mundo musical enriquecia-se com a copiosa produção de dois talentos extraordinários: o próprio Mozart e Joseph Haydn (não era parente de Michael Haydn), que já havia chegado à sua 63 a sinfonia. E um outro gênio precoce começava a ser exibido em concertos pelo pai—chamava-se Ludwig van Beethoven.Para Mozart, à dor com a perda da mãe, juntou-se a de saber que Aloysia, agora no elenco da Ópera de Munique já não se interessava mais por ele (e, no ano seguinte, se casaria com Joseph Lange, ator e pintor da corte em Viena). 

Tudo isso concorreu para tornar insuportáveis as pressões sofridas em Salzburgo. Em maio de 1781, Mozart pediu demissão; e foi dispensado nos termos mais humilhantes. Estava com 25 anos: restavam-lhe só mais dez para viver; mas esse seria o período mais fulgurante de sua produção, desenvolvido em Viena, um dos maiores centros musicais do mundo. Wolfgang Amadeus Mozart estava no limiar da maturidade.Decidindo-se a ficar na capital, Mozart hospedou-se na pensão da senhora Weber e, ali, apesar uma vez mais da oposição paterna, apaixonou-se por Constanze, irmã caçula de Aloysia e com ela se casou em agosto de 1782, em aberto desafio a Leopold. O casal levaria vida atribulada, acima de suas posses e, por isso mesmo, sempre cheio de dívidas; a saúde de Constanze era minada pelas gravidezes freqüentes (de seis filhos em nove anos, apenas dois sobreviveram); e a de Wolfgang—que já sofrera enfermidades graves na infância—, gradualmente solapada pela vida dissipada que levava.

Mas suas relações com Constanze sempre seriam marcadas por intensa atração física, e por uma paixão que se revela, da forma mais explícita, em cartas da mais cândida e tórrida sensualidade. É nessas cartas também que melhor se percebe—como o demonstrou o biógrafo Wolfgang Hildesheimer—o quanto o desenvolvimento psicológico dessa criança, obrigada cedo demais a comportar-se como um adulto, ficou truncado; e quantos traços do caráter desse gênio assombrosamente maduro permaneceram paradoxalmente infantis.

A última década da vida de Mozart assiste a um verdadeiro dilúvio de obras primas dos mais diversos gêneros, que jorravam dele de tal forma acabadas que os seus manuscritos pareciam cópias definitivas. É a fase de seu encontro com o italiano Lorenzo da Ponte (1749-1838), pseudônimo de Emanuele Conegliano, judeu convertido ao catolicismo, estranha mistura de padre, poeta e aventureiro, Casanova de batina, que, tendo sido obrigado a fugir da Europa por suas dívidas e intrigas galantes, seria o fundador, em Nova York, do primeiro teatro de ópera dos Estados Unidos.Esse homem—que fugira de Veneza por causa de seus “pecados de amor” e conseguira tornar-se poeta oficial da corte austríaca—escreveria para Mozart seus três maiores libretos: o das Bodas de Figão, baseado na subversiva comédia de Beaumarchais; o do Don Giovanni, história do legendário libertino sevilhano; e o Così fan tutte, ácida crítica à dissolução dos costumes em seu tempo. Mozart e Da Ponte formariam um dos grandes pares de compositor/libretista da história da ópera, realizando plenamente o ideal da fusão perfeita da música com a palavra.

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É em Viena, também, que Mozart— fascinado pelo ideário liberal e humanista posto em moda pela Revolução Francesa—aderirá à Maçonaria. As lições da loja maçônica impregnarão muitas de suas obras, mas nenhuma tão intensamente quanto sua última ópera, A Flauta Mágica, resultado do encontro, nos ambientes maçônicos, com outra estranha figura: o empresário, ator e cantor Emanuel Schikaneder, que dirigia uma sala suburbana de variedades, o Theater auf der Wieden.É para esse palquinho mambembe que será concebido um dos mais sublimes testemunhos do poder criador da mente humana. Fábula ingênua e disparatada, A Flauta Mágica conta a história do príncipe Tamino, encarregado pela Rainha da Noite de libertar sua filha Pamina das garras de um suposto bruxo, Sarastro. Ele, na verdade, é o sumo-sacerdote do templo do Sol. Junto com Papageno, o locador da flauta que encanta os animais, Tamino é admitido no templo. 

Eles derrotam a rainha, e Tamino se casa com Pamina.Interrompida em julho de 1791 a fim de que, em poucos dias, Mozart compusesse A Clemência de Tito, para a coroação do imperador Leopoldo II, em Praga, como rei da Boêmia, A Flaura Mágica é a maior das muitas obras-primas que ele escreveu em seu último ano de vida. O Concerto para piano K 595, o Quinteto K 614, o Concerto para clarinete K 622, o Ave Verurn CorPus sucedem-se febrilmente, como se Mozart, com a saúde em frangalhos, percebesse ser pouco o tempo que Ihe restava de vida. Nos últimos dias, estava obcecado pela encomenda feita, por um misterioso mensageiro vestido de cinza, de uma Missa de Réquiem. Tratava-se do mordomo de um certo conde Franz von Walsegg, milionário habituado a comprar músicas que apresentava como suas; e que pretendia mandar cantar uma missa dos mortos por sua mulher, recém- falecida. Mas para Mozart, já perturbado pela doença, aquilo parecia um sinal do destino. Era para si mesmo que compunha aquela música fúnebre, que deixaria inacabada (a família escolheu Franz Süssmayr para terminá- la, pois fora quem o ajudara a anotar suas últimas idéias para a Lachrymosa, a 4 de dezembro, antes de entrar em coma).

Chovia torrencialmente sobre Viena, a 6 de dezembro de 1791, dia seguinte ao de sua morte. Os poucos amigos que levaram seu corpo ao cemitério entregaram-no, na porta, aos coveiros. Nunca se soube onde foram colocados seus restos mortais. Não há garantia alguma de que o crânio conservado no Mozarteum de Salzburgo seja realmente o dele. Um dos maiores gênios da humanidade passou pela vida como um fulgurante cometa e desapareceu aparentemente sem deixar rastros. Mas é sintomático que, justamente naquele momento, o jovem Beethoven começava a receber lições do mestre Haydn, na mesma Viena—e a arte da música iniciava uma nova fase de um período universalmente reconhecido como prodigioso.

 

 

 

 

 

Para saber mais:

Coisas de gênio

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(SUPER número 2, ano 3)

 

Bach, alegria dos homens

(SUPER número 7, ano 3)

 

 

 

 

O mundo homenageia Mozart

Nenhum outro artista, em toda a história da humanidade mereceu comemorações tão grandiosas. Bonecas, relógios, marcas de bebida e de chocolate, posters, álbuns de fofos —sem mencionar os inúmeros concertos que foram programados durante o ano inteiro desde Paris, a capital da França, a Dunedin, cidade perdida no interior da Nova Zelândia. De todas as formas será celebrado o bicentenário da morte do mais singular entre os gênios que a raça humana já produziu. Basta dizer que a Philips está gravando todas as suas composições catalogadas, numa série de 180 CDs, reunidos em 45 álbuns, num total de 200 horas de música, e que a Polygram já prometeu importar, a partir do segundo semestre deste ano, para distribuição no Brasil. Que também está preparando o seu Ano Mozart: A Flauta Mágica em Campinas, o Così fan tutte em São Paulo, visitas da Camerata de Salzburgo ao país, montagem de Don Giovanni no Rio e execuções em São Paulo do Réquiem e da Grande Missa K 427. A Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo organiza um Encontro Mozart, coordenado pelo filósofo Adauto Novaes, com a participação de especialistas do mundo inteiro. E o Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio, tem um dos mais extensos programas comemorativos, com concertos, filmes e a ópera Bodas de Fígaro, dirigida por Ítalo Rossi.

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Salieri, o rival inofensivo

Durante muito tempo, o italiano Antônio Salieri (1750-1825) – desde 1788 mestre-de-capela da corte vienense—foi suspeito de, por inveja, ter envenenado Wolfgang Amadeus. Ele próprio foi o responsável pelo surgimento da lenda, pois, no fim da vida, já totalmente insano, tentou suicidar-se, alegando remorsos por ter sido o causador da morte de Mozart. Esse episódio, utilizado pelo poeta russo Aleksandr Púshkin em sua peça Mozart e Salieri (1830)—uma reflexão sobre o conflito entre o gênio e o mero talento, transformada em ópera por Nikolái Rimski-Kórsakov—, serviu de inspiração para a peça do dramaturgo inglês Peter Shaffer, em que se baseou o filme Amadeus, de Milos Forman. Trata-se, entretanto—hoje se tem certeza —, de pura lenda. Por menos que gostasse de Mozart, Salieri era bom músico: modernas reavaliações demonstrem que estava longe de ser medíocre como se quis fazer acreditar. 

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E era generoso e um professor brilhante, como o testemunharam seus alunos: Beethoven, Schubert, Liszt ou Franz Xaver Wolfgang, o filho sobrevivente de Mozart, a quem ele muito ajudou em sua carreira de músico. E as queixas que Mozart fazia, no fim da vida, de que se sentia envenenado, podem atribuir-se à tintura de iodo que ele tomava, para tratamento da sífilis, que provoca intoxicação renal. De que morreu, então, Wolfgang Amadeus? Estudiosos nunca chegarão, provavelmente, a uma conclusão definitiva. A hipótese mais aceita, hoje, é a de que ele tenha sido vítima de moléstia provocada por problemas renais crônicos. A vida inteira, ele sofrera de doenças graves—escarlatina, varíola, febre reumática, hepatite—, cujas conseqüências foram agravadas pela vida dissipada e de trabalho intenso que levava.

 

 

 

 

 

 

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