Assine SUPER por R$2,00/semana
Continua após publicidade

Munique, 1972

Era para ser apenas o local e a data da 20ª Olimpíada. Mas entrou para a história como um dos mais violentos atos de terrorismo.

Por Sergio Gwercman
Atualizado em 6 set 2017, 14h36 - Publicado em 31 dez 2005, 22h00

Em 1936, a Alemanha escreveu o capítulo mais vergonhoso da história das Olimpíadas ao transformar os Jogos de Berlim numa exibição pública de propaganda nazista – a ponto de as vitórias do velocista negro e americano Jesse Owens terem sido consideradas uma humilhação para o regime. As competições de 1940 e 1944 marcaram um novo vexame alemão. Programadas, respectivamente, para Londres e Helsinque, tiveram de ser canceladas por causa da guerra mundial iniciada pelos devaneios do führer.

Por isso tudo, quando foi escolhida como sede dos Jogos Olímpicos de 1972 a cidade de Munique, na Baviera (ironicamente o berço do nazismo alemão), o país inteiro viu a chance de limpar sua ficha. Organizadores logo batizaram o evento de “os Jogos da Paz” e a idéia era entrar novamente para a história. Dessa vez, como a mais alegre e fraternal de todas as Olimpíadas. Estava tudo preparado para ser uma grande festa. Só faltou combinar com o adversário.

O adversário, no caso, eram grupos terroristas palestinos. Pouco após 1967, quando Israel conquistara a Faixa de Gaza e a Cisjordânia na Guerra dos 6 Dias, a Organização para Libertação da Palestina (OLP) resolveu incorporar atentados terroristas mundo afora às suas estratégias de divulgação da causa. Em 1970, o alvo foi um avião belga. No mesmo ano, o seqüestro simultâneo de 5 aviões acabou com 3 deles explodidos na Jordânia, pouco após serem evacuados. Em 1971, reservatórios de petróleo em Hamburgo e Roterdã foram sabotados. As bombas, porém, não eram a única arma do ativismo palestino. No começo de 1972, a OLP enviou carta ao Comitê Olímpico Internacional (COI) solicitando a inclusão da Palestina nos Jogos. Os palestinos sequer receberam resposta, descaso que irritou em especial o Setembro Negro (o nome é referência ao massacre de palestinos por tropas jordanianas, em setembro de 1970), braço armado da Fatah, grupo político de Yasser Arafat. “Ficou claro que, para o COI, que se dizia apolítico, nós palestinos não merecíamos existir”, afirmaria anos mais tarde o chefe do Setembro Negro, Abu Iyad. Com o provável conhecimento do próprio Arafat, o grupo decidiu que, se os palestinos não iriam participar, o melhor a fazer era melar os Jogos.

Ação

Cinco de setembro era o 12º dia de competição e o principal destaque do calendário era o jogo de vôlei entre a Alemanha e o poderoso Japão, que tinha 35 mil ingressos vendidos. Passava pouco das 4 horas da manhã quando 8 terroristas pularam uma cerca e caíram dentro da Vila Olímpica. Vestiam uniforme de treino e carregavam sacolas esportivas recheadas de granadas e rifles Kalashnikov. Foram auxiliados no salto por atletas da delegação americana, que voltavam para casa após o horário de fechamento do portão principal e pensavam ter encontrado outro grupo de boêmios. Seguranças que cuidavam da vila fizeram vista grossa. Como faziam, aliás, todas as noites – aquela era uma passagem manjada por atletas que retornavam bêbados da noite em Munique. Nem armados os guardas andavam – estamos nos Jogos da Paz, lembra-se?

Continua após a publicidade

O grupo se despediu com acenos e seguiu para um prédio de 24 apartamentos no número 31 da rua Connolly, hospedagem das delegações do Uruguai, de Hong Kong e de Israel. Em poucos minutos, estavam forçando a porta do apartamento 1, onde dormiam 7 israelenses.

“Chevre, tistatru!”, gritou Yossef Gutfreund. O árbitro de luta livre acordara segundos antes com o barulho dos invasores e vira, por uma fresta que se abria na porta, um bando de mascarados. Pulou para tentar impedir a entrada enquanto gritava “pessoal, se proteja”. Tuvia Sokolovsky, técnico de luta livre, conseguiu fugir pela janela. Os demais foram feitos reféns assim que Gutfreund perdeu a batalha contra os palestinos. O líder dos terroristas, Lutiff Afif, um filho de mãe judia e pai muçulmano nascido em Nazaré, começou então a se mover rumo aos outros quartos. Acabou surpreendido pelo ataque de Moshe Weinberg, técnico de luta, que tinha uma faca de cozinha nas mãos. Na confusão, um tiro foi disparado no rosto do israelense, que ainda levantou, quebrou a mandíbula de um terrorista com um soco e recebeu uma rajada no peito. Caiu morto. Os Jogos da Paz estavam oficialmente encerrados.

Inexplicavelmente, Afif pulou o apartamento 2, onde dormiam 5 israelenses. Seus homens foram direto ao apartamento 3, dormitório de 6 atletas que, quando abriram os olhos, já estavam diante dos rifles. Dominados, receberam ordem para se dirigir ao apartamento 1. No curto trajeto, o lutador Gad Tsabari percebeu a distração de um terrorista. Agarrou o cano do seu rifle e deslocou-o para a esquerda. Então virou o corpo para a direita e escapou por um lance de escada que levava ao estacionamento. Yossef Romano, de muletas por causa de uma contusão, se atracou com um terrorista tentando pegar seu rifle. Foi morto. Os palestinos agora tinham 9 reféns e 2 corpos. Para devolvê-los, exigiram a libertação de 234 prisioneiros detidos nas prisões israelenses e mais dois que estavam em cadeias da Alemanha. Se não fossem atendidos até as 9 horas, os reféns morreriam.

Continua após a publicidade

O governo israelense nem pensou antes de responder: não há conversa – a política de jamais negociar com terroristas dura até hoje. Mas ofereceu uma unidade de elite para o resgate, o que foi prontamente recusado pela Alemanha. Os organizadores da Olimpíada disseram ser capazes de resolver sozinhos o problema.

Negociações e ampliações do prazo de execução dos reféns se estenderam ao longo do dia. Enquanto isso, o mundo assistia ao vivo o drama de Munique. Foi a primeira vez que as pessoas viram o rosto do terrorismo moderno. Mais do que libertar seus compatriotas, os palestinos queriam publicidade. A idéia era usar um dos evento mais populares do mundo para divulgar a causa pela independência da Palestina. A partir de Munique, as ações terroristas se tornariam cada vez mais espetaculares – foi ali que se aprendeu a atrair a atenção da mídia. Foi também por causa da cobertura ao vivo que uma das estratégias da polícia foi por água abaixo. A invasão do prédio por um duto de ar-condicionado estava a ponto de ser detonada perante câmeras quando os terroristas resolveram avisar que eles também tinham televisão no quarto e estavam assistindo às imagens. E que qualquer invasão resultaria na execução dos reféns.

Sem solução para o impasse, os alemães planejaram uma arapuca. Ofereceram aos seqüestradores um avião que levaria terroristas e reféns para um país árabe. Na prática, o aeroporto serviria de cenário para a operação de resgate. Os palestinos aceitaram a idéia e caminhavam para a emboscada. Mas uma série de erros de planejamento da polícia alemã provocou a morte dos 9 israelenses.

Continua após a publicidade

Antes de o mundo saber o desfecho do caso, houve tempo para um detalhe mórbido: durante o tiroteio, um policial misterioso se dirigiu aos jornalistas do lado de fora do aeroporto e disse que todos os reféns haviam sido salvos. A notícia, sabe-se lá como e por que, foi confirmada oficialmente pelo governo alemão, divulgada ao vivo na televisão e estampada na manchete de jornais europeus e israelenses. Demorou 4 horas até que a polícia alemã corrigisse a informação. A rede americana ABC informou na televisão. “They’re all gone”, disse o apresentador. Estavam todos mortos.

Reação

Oito terroristas participaram do atentado na Olimpíada. Cinco morreram no tiroteio do aeroporto. Os outros 3 foram presos. Mas não ficaram detidos na Alemanha por muito tempo. Em outubro de 1971, um avião da Lufthansa foi seqüestrado no Líbano. O preço do resgate era a liberdade dos envolvidos no atentado de Munique. O governo alemão concordou. E nem poderia ter feito diferente porque o seqüestro era parte de uma farsa montada por alemães e palestinos. Chantageado pelos árabes, que ameaçavam lançar uma onda de terror na Alemanha, o governo do chanceler Willy Brandt concordou com a troca: deu os criminosos, recebeu tranqüilidade. “Em casa, me informaram que um acordo pela nossa libertação havia sido feito com o governo alemão”, afirma Jamal Al-Gashey, um dos terroristas soltos, no documentário One Day in September.

A libertação dos prisioneiros caiu como o combustível que faltava na bomba que estava sendo armada no gabinete de Golda Meir, primeira-ministra israelense. E fez vencer a ala que defendia uma retaliação enérgica. A ordem era aniquilar o Setembro Negro. “Não tínhamos outra saída que pudesse funcionar. Era moralmente aceitável? É uma questão a ser debatida. Era politicamente vital? Sim, era”, disse o general Aharon Yariv, então assessor para questões terroristas, numa entrevista à rede BBC nos anos 90.

Continua após a publicidade

Essa resposta israelense ao atentado na Olimpíada é o centro do filme Munique, do diretor Steven Spielberg. Ao contrário do que se afirma frequentemente, a retaliação israelense não teve como alvo os terroristas envolvidos diretamente no atentado olímpico, mas sim o Setembro Negro. Segundo informações do jornalista Aaron Klein, autor do livro Striking Back (“Contra-ataque”, sem versão em português), nenhum dos 3 terroristas sobreviventes do episódio foi caçado pelo Mossad, o serviço secreto israelense. De acordo com Klein, um dos palestinos morreu de ataque cardíaco nos anos 70. Sobre o outro, Mohammed Safady, Klein foi informado estar “tão vivo quanto você”. Jamal Al-Gashey, o terceiro, apareceu em One Day in September. “Revanche nunca foi o foco da ação israelense. Isso não seria profissional. Havia um objetivo claro, que era deter o inimigo. Mostrar que a justiça tem um longo braço. Que, se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come”, diz Victor Ostrovsky, ex-agente do Mossad e autor do livro As Marcas da Decepção, em que conta segredos do serviço secreto israelense.

Unidades do Mossad foram formadas em busca das melhores oportunidades de assassinato. A primeira grande ação foi em Roma, onde Wael Zwaiter mantinha, segundo o pesquisador israelense Michael Bar-Zohar, a principal base operacional do Setembro Negro na Europa. Zwaiter foi morto com disparos de uma Beretta .22, arma favorita dos agentes secretos israelenses. A seguir veio Mahmoud Hamshari, representante da OLP em Paris, assassinado por controle remoto: fingindo ser jornalistas, israelenses se infiltraram na casa de Hamshari, instalaram uma bomba sob a mesa do telefone e depois ligaram para a vítima. Assim que confirmaram se tratar do alvo, enviaram um sinal detonador pela linha telefônica.

Também a distância, o Mossad explodiu a cama de um hotel em Nicósia, Chipre, onde dormia Al Chir. Ele era responsável pelos contatos do Setembro Negro com a KGB. Numa rua de Paris, disparos de Beretta mataram Basil Al-Kubaissi. Os palestinos responderam com mais atentados. E os israelenses concluíram que não estavam caçando as pessoas certas, as que tinham poder de decisão e ataque.

Continua após a publicidade

Abu Yussef, número 3 da Fatah, Kamel Adwan, chefe de operações da OLP, e Kamal Nasser, porta-voz da OLP, eram considerados inatingíveis. Para matá-los, foi montada uma operação cinematográfica envolvendo os melhores soldados do país. Entre eles, Ehud Barak, que seria eleito primeiro-ministro israelense nos anos 90. A ação foi rápida. Na madrugada de 10 de abril de 1973, 16 homens desembarcaram numa praia libanesa. Foram recebidos por motoristas israelenses, previamente infiltrados no país, que os levaram até onde moravam os 3 palestinos. Barak e outro oficial estavam disfarçados de mulher. O grupo se dividiu em 3 unidades – uma para cada alvo. As casas foram invadidas quase que ao mesmo tempo e os palestinos, mortos. Os soldados voltaram para a praia. No total, os israelenses ficaram 30 minutos em solo libanês.

Faltava mais um na lista israelense: Ali Hassan Salameh, organizador do atentado de Munique e chefe operacional do Setembro Negro. O Mossad o localizou em julho de 1973 em Lillehammer, interior da Noruega. Uma equipe de agentes israelenses, que incluía um imigrante brasileiro, foi enviada à cidade. Localizou Salameh numa piscina pública, ficou em seu encalço e disparou os tiros fatais quando ele voltava para casa após uma ida com a mulher ao cinema. Só houve um problema: naquele momento, o verdadeiro Salameh estava escondido, provavelmente no Líbano. O Salameh morto se chamava, na verdade, Ahmed Bouchiki. Era um garçom marroquino, casado com uma norueguesa que estava grávida de 7 meses. Para piorar, a operação de fuga foi mal planejada e 6 agentes acabaram presos – incluindo o brasileiro. O fiasco abalou a credibilidade do governo israelense e praticamente acabou com a carreira do chefe do Mossad. Acabou também com a operação de caça e revanche ao grupo que fez sangrar os Jogos da Paz.

Para saber mais

One Day in September (DVD) – Kevin MacDonald, 2000

One Day in September (livro) – Simon Reeve, Arcade, EUA, 2000

Munique – Steven Spielberg, Dreamworks, 2005

A Ira de Deus – Aventuras na História, edição 30, janeiro de 2006

Publicidade

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Domine o fato. Confie na fonte.

10 grandes marcas em uma única assinatura digital

MELHOR
OFERTA

Digital Completo
Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 2,00/semana*

ou
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba Super impressa e tenha acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de R$ 12,90/mês

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$96, equivalente a R$2 por semana.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.