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Guinefort, o cão que virou santo – e 5 outros casos históricos animais

Os bichos são nossos amigos e nossa comida. Mas, na Antiguidade e na Idade Média, foram também santos, bruxos, políticos e até bandidos

Por Bruno Mosconi
Atualizado em 8 out 2020, 14h50 - Publicado em 26 jun 2015, 14h15

Guinefort: da injustiça à “cãononização”

Entre o final do século 12 e o começo do século 13, existiu um pequeno castelo na diocese de Lyon (400 km ao sul de Paris). Era uma propriedade modesta, que não tinha vigias – só alguns cães de guarda. Certo dia, o dono do castelo e a esposa precisaram ir até uma cidade vizinha. Deixaram o filho pequeno sozinho por algumas horas. E, bem nessa ausência, algo terrível aconteceu: uma cobra entrou no quarto da criança. Um dos cachorros, um galgo chamado Guinefort, notou o perigo e atacou a serpente com várias mordidas. Matou a cobra, mas a criança e o quarto ficaram todos sujos de sangue. Algumas horas depois, quando o casal voltou de viagem e se deparou com aquela cena, a mãe entrou em pânico. Ela achou que o sangue era do filho, e que a criança havia sido atacada por Guinefort. Enfurecido, o marido pegou sua espada e, com um movimento rápido, cortou a cabeça do cachorro. Mas o casal logo viu que a criança estava bem, dormindo em paz. E encontrou a cabeça da serpente jogada num canto do quarto. Eles haviam cometido uma atroz injustiça ao matar o pobre cachorro.

O casal se sentiu em débito com Deus pela intercessão milagrosa de Guinefort, e pelo modo como ela foi ignorada. Envergonhado, o senhor do castelo providenciou ao cachorro um enterro com todas as honras possíveis. O casal se mudou algumas semanas depois. A história foi sendo repetida, e aumentada, pela população local. Guinefort caiu na boca do povo, passou a ser adorado como um mártir cristão – e recebeu dos camponeses locais o título de santo. Mulheres de diversas regiões da França passaram a visitar o túmulo do animal, na esperança de alcançarem suas bênçãos e curarem seus filhos doentes.

A Igreja não reconheceu a santidade do cachorro. O frei dominicano Estevão de Bourbon, que trabalhava para a Inquisição medieval, escreveu um relato do caso. Para ele, aquilo era um absurdo, e as adoradoras de Guinefort estavam negligenciando a saúde de seus filhos, já que o animal não era milagroso. Mas, mesmo tendo os poderes da Inquisição ao seu dispor, o frei preferiu não processar as mulheres por heresia. Provavelmente ele percebeu que não existia maldade nas ações dessas mães, que só queriam ver os filhos curados.

Antes do século 13, quando os atos heroicos de Guinefort o transformaram em santo popular, os europeus já acreditavam que os cachorros tinham poderes místicos. Baseados nisso, muitos senhores e cavaleiros medievais empregaram cachorros entre seus trabalhadores, na esperança de que doenças e ferimentos humanos fossem curados com lambidas, e para que os soldados fossem seguramente escoltados pelos animais ao retornarem de batalhas muito violentas. O frei Estevão não mediu esforços para acabar com as superstições em torno de Guinefort, e chegou a exigir a exumação dos restos mortais do cachorro, ordenando a seus subordinados que a ossada fosse queimada e enterrada bem longe de Lyon. Há indícios de que o frei tenha até ameaçado os camponeses com excomunhão e exílio, caso eles insistissem em adorar Guinefort.

Essa pressão provavelmente teve algum resultado, mas não acabou com a veneração ao cachorro. O frei Estevão morreu em 1260, cinco anos depois de concluir seu tratado sobre a fé (no qual dava especial atenção a mitos e superstições). Mas a crença em Guinefort acabou indo muito mais longe. A prática de apelar ao cachorro para a cura de bebês e crianças durou até o século 19, e algumas regiões do interior da França tinham até mapas para orientar quem peregrinava até o túmulo original do cachorro milagroso. Mesmo no século 20, entre as décadas de 1960 e 1970, o heroísmo de Guinefort ainda era celebrado nos arredores de Lyon.

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São Cristóvão, o mártir que latia

Um santo humano fez o caminho inverso de Guinefort. Essa história começa em Canaã (atual território de Israel, Líbano, Palestina e Síria), onde, segundo a lenda, os homens eram fortes e ferozes. Dois termos hebraicos eram usados para descrevê-los: “Cainita” (que significa “filho de Caim”), e sua derivação “Cananita”. Entre os séculos 6 e 9, os termos se confundiram com outra palavra: “Caninita”, que significa “homem-cachorro”. São Cristóvão nasceu no norte de Canaã. Quando a região foi tomada pelos romanos, entre os séculos 3 e 4, acabou preso, e foi descrito pelos captores como um “líder caninita”. Esse pequeno erro de interpretação pode ter atiçado o imaginário popular – que passou a enxergar Cristóvão como um cachorro gigante.

A versão oficial diz que ele foi executado, mas a lenda medieval é bem diferente. Segundo ela, Cristóvão se libertou e decidiu, como bom e fiel cão, encontrar e servir ao maior dos reis. Descobriu que, para muitas pessoas, esse rei era Jesus, e resolveu procurá-lo. Mas Jesus estava morto, e Cristóvão não entendia como era possível achá-lo. Um sábio eremita o instruiu a procurar Jesus por meio da caridade, ajudando algumas pessoas a atravessarem um rio que passava pela região. Ao tentar ajudar uma criança, Cristóvão notou que o menino ia ficando mais e mais pesado. Usando toda sua força, ele conseguiu terminar a travessia – e descobriu que a criança era uma manifestação do próprio Cristo.

Para acabar com a história de que o santo era um homem-cão, a Igreja deu a seguinte explicação. A boa ação dele teria comovido Jesus, que o presenteou com o fim da “maldição de Canaã”. Cristóvão ganhou um rosto humano, e a limpeza de espírito necessária para que fosse canonizado, no século 15.

Incitatus: o cavalo que quase foi senador

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O Imperador Calígula, que reinou em Roma entre os anos 37 e 41, tem fama de cruel e insano. Mas não se pode dizer que tenha sido maldoso com os animais. Não com os seus, pelo menos. Calígula tinha uma grande tropa de cavalos, dos quais gostava muito. O principal era Incitatus (nome que significa “O motivado”), que tinha 20 funcionários cuidadores ao seu dispor. Calígula mandou construir uma pequena torre de mármore e marfim para servir de estábulo ao animal, e fazia de tudo para não estressar Incitatus. Até mandar a guarda imperial aquietar a vizinhança nos horários em que o cavalo estava dormindo.

Calígula adorava Incitatus, e frequentemente almoçava ou jantava na companhia dele. O cavalo comia a mais fina cevada e alguns grãos selecionados, mas também há indícios de que o imperador o tenha alimentado com vinho e diversas carnes. Além de ser bem-tratado, o bicho tinha um futuro brilhante pela frente: Calígula queria nomeá-lo senador de Roma. É bem possível que a conspiração que resultou no assassinato do imperador, no ano 41, tenha sido estimulada por essa desonra (os políticos teriam se enfurecido ao se ver equiparados a um cavalo). Alguns historiadores afirmam que Incitatus foi morto na mesma ocasião.

O papa Gregório 9º e o massacre de gatos

Gregório 9o era um homem conhecido pela bondade. Mas logo ao ser eleito papa, em 1227, mostrou seu outro lado. Ele foi diretamente responsável por uma cruel caçada de hereges na Alemanha e pela criação de uma “central de treinamento” de inquisidores em Roma. E também odiava animais, em especial os gatos. Embora jamais tenha assumido isso com todas as letras, o papa redigiu um documento oficial, em algum momento da década de 1230, dizendo que os felinos, em particular os gatos pretos, eram encarnações do diabo e tinham a ver com rituais de bruxaria. Imediatamente após a divulgação do documento, os europeus mergulharam em um frenesi de violência contra os pobres bichos. As declarações do papa, aliadas ao fato de que algumas regiões periféricas da Alemanha e da Inglaterra ainda cultuavam gatos como divindades pagãs, estimularam um dos maiores massacres de animais da história. Ao longo de décadas, gatos de todas as partes do continente, independente de cor ou procedência, foram brutalmente mortos em fogueiras, espancamentos e enforcamentos públicos. Gregório jamais se pronunciou contra esses atos de violência – possivelmente porque estava satisfeito com eles. E até hoje, quase 800 anos depois, o preconceito contra gatos pretos ainda existe.

A grande vingança felina

A Peste Negra, uma epidemia de peste bubônica causada pela bactéria Yersinia pestis, assolou a Europa ao longo do século 14. Ela começou na Sicília em 1347 e se alastrou principalmente para Itália, França, Portugal, Espanha, Inglaterra e Alemanha nos quatro anos seguintes. Estima-se que a Peste tenha matado mais de 100 milhões de pessoas. Uma tragédia quase inimaginável. A bactéria Y. pestis é comum em roedores, e se espalhou devido à grande quantidade de ratos nas cidades europeias. E os ratos proliferaram porque seus predadores naturais, os gatos, existiam em menor número – já que o papa Gregório 9o, no século anterior, havia induzido a população a acabar com eles (como conta o texto acima). Aqui se faz, aqui se paga.

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Gafanhotos no banco dos réus

Depois da Peste Negra, alguns europeus passaram a acreditar que a violência do mundo animal não era só um reflexo da fúria punitiva de Deus contra o homem. Talvez os bichos fossem responsáveis por suas ações contra o ser humano (como espalhar doenças). E isso deu origem a um costume insólito: julgar e condenar animais por crimes. Ratos e porcos eram acusados de violência contra crianças e de carregar espíritos demoníacos, e condenados à morte. Cães violentos eram proibidos de entrar em certas vizinhanças, cavalos e jumentos preguiçosos pegavam prisão perpétua. Mas o alvo principal eram gafanhotos e besouros, acusados de destruir plantações nos séculos 15 e 16. Dois ou três representantes desses insetos eram levados à presença dos juízes, em um processo que costumava se concluir com a pena de morte. Seus cúmplices não presentes, porém, não eram esquecidos: os destruidores de plantações eram condenados ao exílio ou à excomunhão.

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