Oásis de múmias
Seis séculos de dominação grega e romana deixaram marcas no Egito. Um enorme cemitério de múmias, no Oásis de Bahariya, a 300 quilômetros do Cairo, revela a força das influências estrangeiras. Os corpos preservados são testemunhas de uma cultura arcaica em transição.
Alessandro Greco
Como próspero território anexado ao império romano no ano 30 a.C., o Egito da época de Jesus Cristo abrigava militares, diplomatas e comerciantes que deixaram Roma com a família para trabalhar e morar na terra dos faraós. Lá, aprenderam hábitos milenares – como o da mumificação – e ensinaram sua cultura aos habitantes do país. As múmias de Bahariya, encontradas em 1996, mas só agora reveladas, são uma prova disso. “As coroas das máscaras mortuárias, as pinturas e as estátuas revelam influências gregas e romanas”, disse à SUPER o historiador americano Roger Bagnall, da Universidade Columbia, nos Estados Unidos. A dominação grega, de 331 a.C. a 30 a.C., foi seguida pela romana, até o ano 324. Para o pesquisador, o achado é impressionante. “Ele revela como foi a convivência entre esses povos. Ilumina, com enorme riqueza de detalhes, essa longa transição da história do Egito.”
Vale Verde
Na época de Cristo, 500 000 dos 7 milhões de egípcios moravam em oásis como este, de Bahariya. Aqui, foram encontrados 200 sepulcros. Só nos quatro já escavados acharam-se 105 múmias. O total pode chegar a 10 000
Mistura cultural
Na máscara mortuária desta mulher, a tiara com cabelos cacheados é de estilo grego-romano. Mas os desenhos do sarcófago evocam os deuses egípcios Hórus e Anúbis
Corpo intacto
Cadáver sem máscara, de um cidadão pobre. As radiografias indicam que os mumificadores de Bahariya não retiravam os órgãos dos mortos, ao contrário de outros embalsamamentos do Egito
Memória preservada no sepulcro
Bahariya pode ser a mais reveladora descoberta desde 1923, quando foram abertos os túmulos dos faraós Ramsés e Tutancâmon, na cidade sagrada de Luxor. Os dois tesouros arqueológicos se equivalem porque os sepulcros reais mostraram a importância da religião e do culto aos mortos na sociedade egípcia. Apesar disso, continham apenas algumas dezenas de corpos, de nobres e funcionários da corte. Já os cadáveres e os objetos encontrados em Bahariya representam a memória de uma comunidade inteira preservada. É verdade que no cemitério de Saqqara, achado em 1984, na periferia do Cairo, o número corpos é ainda maior, quase 20 000. Mas eles não são todos da mesma época, variando de 2000 a.C. à época de Cristo. Em Bahariya, todos os cadáveres pertencem a um mesmo período, que vai de 31 a.C. ao ano de 395.
Anemia crônica
“Mal começamos a explorar. Há muitas câmaras fechadas e tumbas por quase 5 quilômetros quadrados”, ressalta o arqueólogo e vice-ministro da cultura Zahi Hawass. Para o americano Roger Bagnall, a maior fonte de informação será o organismo das múmias. Os exames médicos poderão fornecer um perfil detalhado das condições de saúde daquela gente. Bagnall está interessado num enigma que há anos intriga os especialistas – a anemia crônica que afligia os egípcios da época, especialmente as crianças. “Não sabemos se era algum tipo de doença, se tinha base genética ou se refletia uma deficiência da nutrição”, explica ele. Nos próximos anos, as dúvidas serão finalmente eliminadas.
Luxo na morte
Este molde de rosto coberto de ouro mostra a prosperidade do sepultado. Junto dele foram achados peças suntuosas, brincos, braceletes e estátuas de deuses grego-romanos
Charme europeu
O olhar, o cabelo encaracolado e o sorriso expressivo são grego-romanos. Os seios decorados indicam riqueza
Gente comum
Todas as classes sociais da antiga comunidade estão representadas na necrópole. Os mais pobres não tinham máscaras nem levavam pertences para o túmulo
Chefe da pesquisa
Zahi Hawass, vice-ministro da cultura egípcio, cuida pessoalmente das investigações em Bahariya. Ele estima que elas tomarão 10 anos de trabalho ininterrupto
Hórus sobreviveu dois milênios
Relatos antigos contam que Bahariya foi um grande centro produtor de vinhos. Suas terras eram exploradas por latifundiários que moravam na cidade de Koussour Mohareb, situada numa das bordas do oásis. Não se sabe muito mais do que isso sobre essa população, ainda. Mas os corpos estão muito bem preservados, não há sinal de profanação por saqueadores e nenhuma comunidade moderna se assentou sobre os vestígios. “Vamos poder comparar as descrições do passado com um vasto arquivo de evidências concretas guardadas na necrópole”, comemora o egiptólogo brasileiro Antônio Brancaglion, da Universidade de São Paulo.
O cemitério mostrou que os egípcios da época de Cristo continuavam a cultuar deuses como Hórus, Osíris e Ísis, venerados pelos faraós no auge do império, de 1500 a.C. a 1000 a.C. Supunha-se que o culto às divindades tinha desaparecido antes da época de Cristo. As múmias mostram que elas sobreviveram a trezentos anos de faraós de dinastias gregas, mais três séculos de dominação colonial romana e chegaram até mesmo ao começo da era bizantina (de 324 a 641).
Militares estrangeiros
Para se ter uma idéia da persistência do culto, basta constatar que boa parte dos egípcios falava grego nessa época. “Justamente por isso, prefiro pensar que os corpos encontrados eram de egípcios e gregos romanizados e não de romanos”, diz Roger Bagnall. Segundo o cientista, militares vindos de Roma também se deixaram preservar, como atesta o cemitério de Douch, achado no final do século XIX, perto de Luxor. Mas Bahariya, nota Bagnall, “está em pleno deserto, longe do Mar Mediterrâneo. Portanto, devia haver poucos romanos”.
Privilégio
Uma águia de ouro e prata na coroa de uma múmia indica a pompa reservada aos ricos. Seu ocupante foi um grande proprietário de terras do Oásis de Bahariya
União final
Um homem e uma mulher enterrados juntos talvez tenham sido marido e mulher há 2 000 anos
Última tarefa
Depois que os caixões foram retirados do subsolo e estudados, as tumbas foram seladas para serem protegidas de saqueadores