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Os EUA derrubaram o presidente do Brasil?

Arquivos revelam toda a influência dos americanos no Golpe de 64. Não é conspiração: é história

Por Jennifer Ann Thomas
Atualizado em 22 nov 2018, 15h54 - Publicado em 12 ago 2014, 22h00

John Kennedy tinha um brinquedo novo. Quando os convidados chegaram, o presidente apertou um botão escondido na lateral de sua mesa, acionando um microfone ali no Salão Oval e um gravador no porão da Casa Branca. Era a estreia de uma engenhoca secreta que registrou 260 horas de conversas sigilosas.

Olha que coincidência: a primeira gravação é sobre o Brasil. Das 11h52 às 12h20 de 30 de julho de 1962, debateu-se o futuro e a fritura do presidente João Goulart. O embaixador americano no Brasil, Lincoln Gordon, disse que Jango estava “dando a porcaria do país de graça para os…” “…comunistas”, completou Kennedy. O assessor Richard Goodwin ressaltou: “podemos muito bem querer que os militares brasileiros tomem o poder no final do ano”. Isso quase dois anos antes do Golpe de 64.

Desde 1961, com a chocante renúncia de Jânio Quadros e a conturbada posse de Jango, as reuniões de Kennedy sobre nosso país eram monotemáticas: como impedir que o Brasil se tornasse uma gigantesca Cuba? Apesar disso, Lincoln Gordon, embaixador no Rio entre 1961 e 66, morreu em 2009, aos 96 anos, negando que os americanos teriam participado do golpe. Durante e após a ditadura, que foi até 1985, muitos pesquisadores brasileiros menosprezaram o papel dos americanos, tachando investigações nesse sentido de paranoia e teoria da conspiração. Mas documentos revelados nos últimos anos contam uma história diferente, que vai sendo revelada aos poucos.

Parte desse material ganhou destaque no documentário O Dia que Durou 21 Anos, da dupla de filho e pai Camillo e Flávio Tavares – autor de um grande livro sobre a luta contra o regime, Memórias do Esquecimento. O filme apresenta gravações e documentos oficiais e expõe justamente a articulação do governo americano e dos militares brasileiros contra Jango. Arquivos recém-abertos nos EUA estão mexendo até com obras definitivas: os quatro livros do jornalista Elio Gaspari foram revistos levando em conta as gravações clandestinas de Kennedy e de seu sucessor Lyndon Johnson. E ainda há muito a ser revelado: Carlos Fico, historiador da UFRJ, estima que mesmo com a Lei de Acesso à Informação ainda não se analisou nem 20% dos arquivos dos órgãos de repressão brasileiros.

De qualquer forma, as informações disponíveis já permitem cravar: Jango caiu com um empurrão dos Estados Unidos. O governo americano instigou os militares, financiou a oposição, boicotou a economia e tinha tropas e navios prontos se fosse necessário intervir. Não foi. Em boa parte, graças ao próprio João Goulart, um presidente que até hoje desafia classificação.

Jango Livre

O vice-presidente João Goulart soube da renúncia do presidente Jânio Quadros após uma viagem oficial à China, durante uma missão extraconjugal em Cingapura. Em 2014, após 29 anos de democracia ininterrupta, seria uma surpresa se o vice não assumisse, seja quem for e esteja onde estiver. Em 1961, a regra não era tão clara. Aliás, era feita para confundir: havia eleição para presidente e também para vice. Os vencedores podiam ser de campos opostos. E, em 1960, foram: Jânio era um salvador-da-pátria de direita, Jango um para-raios de todas as tempestades à esquerda. Quando o presidente deixou o campo após sete meses, seu reserva era de outro time. E o árbitro – nesse caso, as Forças Armadas – não quis que o reserva entrasse.

Jango foi defendido em seu Estado natal, o Rio Grande do Sul, onde o governador (e seu cunhado) Leonel Brizola criou a Campanha da Legalidade para impor sua posse. Com a nação à beira da guerra civil, aceitou ser presidente em um regime parlamentarista. Ganhou o cargo, mas não o poder.

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Mesmo enfraquecido, ele assustava Kennedy, que o recebeu em abril de 1962. A primeira-dama Maria Thereza Goulart, rival à altura de Jacqueline Kennedy, encantou Washington, mas os EUA mantiveram dois pés atrás com Jango. Para os americanos, ele era um radical livre. Além de manter boas relações com Cuba, defendia impostos pesados e até a expropriação de empresas americanas no Brasil. Os relatos de Gordon sugeriam que ele se tratava de uma marionete de Moscou.

Em janeiro de 1963, a 14 meses do golpe, Jango recuperou os poderes presidenciais: 91% votaram contra o parlamentarismo em um plebiscito. O pleito tinha sido convocado por ele, o que os americanos compararam a “uma jogada de Garrincha, um jogador de futebol que corre grandes riscos esperando obter grandes ganhos”. Mas ser contra o parlamentarismo não significava ser a favor de Jango. Sim, ele contava com o apoio dos pobres: uma pesquisa do Ibope às vésperas do golpe e não divulgada na época mostrava uma aprovação de 86% entre as classes baixas de São Paulo. Mas um levantamento do oposicionista Aníbal Teixeira no mesmo período mostrava que o golpe era apoiado por 80% do exército, 72% dos empresários, 66% do clero e 58% dos estudantes. Na imprensa, tinha fama de indeciso e incompetente. Havia a suspeita de que ele planejava realizar seu próprio golpe, com o apoio da esquerda.

Jango estava encurralado, e muito por culpa dele mesmo. A história seria diferente se ele tivesse apoio dos americanos? Ou dos militares brasileiros? Se bem que aí é especular demais. O alinhamento desses dois grupos não teve início nesse golpe nacional, mas muito antes, em uma guerra mundial.

Comandos em ação

Precisou que um submarino alemão afundasse cinco navios brasileiros em 40 horas para que Getúlio Vargas deixasse de manobras e entrasse na Segunda Guerra contra Hitler. Isso foi em 1942. Só em 1944 os primeiros brasileiros chegaram à Itália para lutar sob comando dos EUA. A Força Expedicionária Brasileira era formada por 25 mil pracinhas. O contingente, metade do previsto, era mal equipado e mal preparado – houve meses de treinamento suplementar em solo italiano. Cientes de que organização não era nosso forte, os americanos escolheram como oficial de ligação entre os dois exércitos alguém cujo principal talento era o jogo de cintura: Vernon Walters.

Sem diploma universitário, e militar há apenas três anos, Walters era fluente em sete idiomas. Inclusive português, que aprendeu guiando militares lusitanos em visita aos EUA. Conquistou os brasileiros com gestos simples, como o de conseguir casacos para nossos soldados enfrentarem o inverno nos alpes. Além de condecorações, ganhou o posto de adido militar no Rio de Janeiro entre 1945 e 48.

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O período após a Segunda Guerra foi de muito intercâmbio entre oficiais brasileiros e americanos. Após o convívio com forças realmente armadas na Europa, nossos militares pressionavam o governo por mais máquinas, armas e experiência. Centenas foram estudar no exterior, principalmente na Escola das Américas no Panamá, centro de treinamento criado pelos Estados Unidos, e na National War College, inspiração para a criação da nossa Escola Superior de Guerra. Independente do endereço, a ideologia era uma só: eliminar o comunismo.

Esse objetivo não era apenas de militares, mas também de civis. Uma tarefa importante dos agentes da CIA era monitorar a América Latina para avaliar a possibilidade de golpes que evitassem “novas Cubas”. Sean Purdy, canadense professor de história dos Estados Unidos na USP, explica que a agência americana não possuía uma fórmula: podia haver envio de tropas ou apenas apoio logístico e financeiro. E aliados eram imprescindíveis. “Nenhum golpe apoiado pelos americanos aconteceu sem que o país tivesse forças internas para articulá-lo. Ele não era imposto a outras nações. Os EUA têm a sua culpa, mas, também no caso do Brasil, havia parte da sociedade que apoiava a derrubada do governo”, explica Purdy. Durante a Guerra Fria, estima-se que a CIA tenha participado de, no mínimo, 26 golpes de estado.

Naquela primeira reunião grampeada por Kennedy ficou decidido que os EUA apoiariam um golpe militar no Brasil. E que o homem para saber quando e como esse golpe aconteceria era: Vernon Walters. Quando desembarcou no Rio em outubro de 1962 para reassumir o posto de adido militar, 13 generais brasileiros lhe esperavam para dar as boas-vindas.

Para James Green, historiador da Universidade Brown, o fato de Walters cair em um ambiente simpático facilitou sua missão de instigar a derrubada de Jango. O conhecimento acumulado facilitava a ida de um conspirador a outro. Em seu livro de memórias, Walters desconversa: conta que gostava muito de tomar sorvete com os seus amigos, e que não conversava sobre política nesses momentos. “Duvido que isso fosse possível”, diz o historiador americano. Apesar de não haver registros, Green acredita que Walters era influente o suficiente para, de forma sutil, deixar claro o nome que mais agradava aos EUA para ser o primeiro presidente após o golpe. A honra coube justamente a um companheiro de Vernon da Segunda Guerra, um general cearense com quem o americano chegou a dividir o quarto: Humberto de Alencar Castello Branco.

A cor do dinheiro

Nem só de tramas ocultas vive uma conspiração. Também é preciso abrir a carteira. Além de financiar adversários de Jango, os EUA o desestabilizavam negando financiamentos ao Brasil.O apoio aos políticos vinha da Aliança para o Progresso, programa criado no início da gestão Kennedy. Nas eleições estaduais e parlamentares de 1962, era fundamental impedir um crescimento da esquerda brasileira. Rolou uma espécie de mensalão americano: a Aliança distribuiu entre os adversários de Jango US$ 5 milhões – metade do que havia custado a campanha presidencial de Kennedy em 1960. Gordon chamava os contemplados de “ilhas de sanidade”. Caso de João Cleofas, que perdeu a disputa em Pernambuco para Miguel Arraes, e de Carlos Lacerda, que já era governador da Guanabara e assumiu o papel de porta-voz da oposição. O repasse dessa verba marca o início do envolvimento direto dos americanos na política brasileira.

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Outra frente de propaganda ficava por conta do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), dois órgãos brasileiros que contavam com financiamento dos Estados Unidos. Ambos produziam conteúdo para rádio, televisão, cinema e jornais pregando o anticomunismo e a oposição a Goulart, frequentemente misturando as duas coisas. Além das campanhas amplas, o plano americano também contemplava ações focadas em público diferenciado e formador de opinião: os militares brasileiros. Gastaram atuais US$ 60 mil em livros para os oficiais, e só em 1963 organizaram 1.706 exibições de filmes “progressistas” em quartéis, bases, escolas e navios.

Não bastasse a campanha de desestabilização interna, havia também boicote externo. Tanto Kennedy quanto Lyndon Johnson, seu sucessor, congelaram os empréstimos que Jango havia acertado com instituições internacionais. Com muito capital investido no Fundo Monetário Internacional (FMI) e no Banco Mundial, os EUA podiam decidir quais propostas seriam aprovadas ou não. Como o embaixador Gordon garantia que Goulart vivia sob influência do comunismo e o dinheiro iria para a guerrilha, o pedido era negado. (Gordon não escondia sua antipatia pelo presidente brasileiro. Em agosto de 1963, pôs num telegrama: “é quase certo que Goulart fará de tudo para instituir alguma forma de regime autoritário”. Mais adiante, torce contra sua saúde: “Se Deus é realmente brasileiro, o problema cardíaco de Goulart, de 1962, brevemente se tornará agudo”.)

Menos de um mês depois do golpe, os americanos aprovaram o envio de US$ 1 bilhão para o presidente Castello Branco, o que motivou o Banco Mundial e o FMI a também liberar recursos. Era como se já estivesse tudo acertado. Bom: alguma coisa já estava.

O que todo mundo faz

Um mês e meio antes de ser assassinado em Dallas, Kennedy chamou Lincoln Gordon ao Salão Oval e apertou o botão mais uma vez. O áudio desse encontro foi postado no site da Biblioteca Kennedy e descoberto por Elio Gaspari – parte dele estará na nova edição de A Ditadura Envergonhada. Em 7 de outubro de 1963, o presidente americano quis saber do embaixador o que fazer com seu colega brasileiro. Gordon respondeu que havia dois cenários: Jango podia abandonar o discurso esquerdista e resolver a coisa de modo pacífico. “Ou não tão pacífico: ele pode ser tirado involuntariamente.” Gordon buscou instruções: “Vamos suspender relações diplomáticas, econômicas, ajuda, todas essas coisas? Ou vamos encontrar uma maneira de fazer o que todo mundo faz?” Kennedy pega a bola e mais adiante devolve: “Acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?” Pense naqueles 26 golpes com selo CIA de qualidade.

Gordon desaconselhou uma ação imediata. A não ser que Jango se aproximasse de “velhos amigos” como Brizola. Ficou por isso mesmo. Kennedy morreu e a bola passou para seu sucessor, Lyndon Johnson.

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Atolado com a Guerra do Vietnã, Johnson repassou a bola para Thomas C. Mann, novo coordenador da Aliança para o Progresso. E bota coordenador nisso: em 18 de março de 1964 se reuniu com todas as autoridades envolvidas com a América Latina. Desse encontro saiu a Doutrina Mann: os Estados Unidos reconheceriam o governo de qualquer aliado, mesmo sob regime autoritário, contanto que continuasse anticomunista. A definição a poucos dias do golpe era um sinal claro para militares golpistas agirem com segurança, escreveu o New York Times no dia seguinte. Mann, em vez de desmentir, declarou: cada caso era um caso.

No caso do Brasil, havia a Operação Brother Sam. Não, não é paranoia: é história, comprovada por múltiplas fontes. Caso os golpistas precisassem de uma força, os Estados Unidos tinham mobilizado um porta-aviões, um porta-helicópteros, tropas de paraquedistas, seis contratorpedeiros com cerca de 100 toneladas de armas e os quatro navios-petroleiros – havia receio que faltasse gasolina para os revolucionários. A operação foi planejada com apoio de brasileiros: o general José Pereira de Ulhoa Cintra, homem de confiança de Castello Branco, seria o responsável por avisar Walters caso necessitasse de ajuda.

O estopim do golpe, no entanto, não veio de Washington, mas do centro do Rio de Janeiro. É lá que fica o Automóvel Clube, onde em 30 de março um Jango em chamas disse a militares aliados que “o golpe que nós desejamos é o golpe das reformas de base, tão necessárias ao nosso país”. Para Jango, as “reformas de base” eram uma bandeira; para a oposição, a aurora do Brasil Soviético. Na mesma noite, chegou a Washington um telegrama afirmando que o golpe aconteceria dentro das próximas 48 horas, partindo de São Paulo ou de Minas Gerais. Foi de Minas: na manhã seguinte, o general Olympio Mourão Filho saiu de Juiz de Fora, dando início ao movimento que derrubaria o presidente. (A linha do tempo ao fim da página conta o golpe passo a passo.)

Só no dia seguinte Jango voou do Rio para Brasília, onde foi informado que o movimento de Minas podia ter conhecimento e o apoio dos EUA. Para muitos, esse alerta explica a falta de resistência de Jango e sua fuga para o Uruguai: ele não quis enfrentar os americanos. Americanos que nem vieram: em 1º de abril, Castello Branco avisou Gordon que as embarcações da Operação Brother Sam, que vinham do Caribe, podiam dar meia volta.

O deputado Rainieri Mazzilli assumiu a presidência interinamente. Mas quem seria o presidente militar? Costa e Silva, ligado à linha dura, quis impor seu nome. Ficou para 1967. Em 1964, deu Castello Branco – para Green, graças à influência americana. Castello tomou posse em 11 de abril, prometendo “entregar, ao iniciar-se o ano de 1966, ao meu sucessor legitimamente eleito pelo povo em eleições livres, uma nação coesa”.

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Durante os 21 anos de ditadura, Lincoln Gordon a defendeu. Ignorava a censura, a tortura e celebrava o Milagre Brasileiro. Defendeu até o fim que em 1964 o Brasil estava à beira de uma revolução comunista. Nunca se soube por que foi tão fácil para os militares tomar o poder. E talvez nunca se saiba: até hoje não encontraram um gravador no porão do Kremlin.

Linha do tempo Ditadura Militares

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