Outubro vermelho
Não fosse a 1ª Guerra, o levante comunista de 1917 na Rússia jamais teria acontecido
Texto Bianca Nunes
Quando você ouvir um historiador dizendo que o século 20 só começou de verdade com a 1ª Guerra Mundial, pode ter certeza: ele está se referindo, principalmente, à Revolução Russa de 1917. O golpe de Estado liderado por Lênin em outubro daquele ano daria origem ao primeiro país socialista da história: a União Soviética. E mudaria completamente a configuração das relações internacionais nas décadas seguintes, com capitalistas de um lado e comunistas do outro. Dali em diante, o mundo nunca mais seria o mesmo. E tudo isso só aconteceu por causa da Grande Guerra.
Às vésperas da revolução, a Rússia era o retrato do caos. O império comandado pelo czar Nicolau 2º vinha sofrendo derrotas esmagadoras no front oriental. Enquanto milhões de soldados morriam, o custo financeiro da guerra não parava de aumentar. Por outro lado, o fantasma da fome tornava-se cada vez mais real, já que os camponeses tinham sido obrigados a trocar a enxada pelo fuzil. Nas cidades, faltava emprego, e a inflação corroía os baixos salários daqueles que tinham uma ocupação. Resultado: uma crescente insatisfação com as classes dominantes, que viviam cercadas de luxo. “Tempos de guerra são extremamente propícios a revoluções”, diz Richard F. Hamilton, professor da Universidade de Ohio, nos EUA, e autor do livro The Origins of World War I (“As Origens da 1ª Guerra Mundial”, sem tradução para o português). “Foi exatamente o que aconteceu com a Rússia em 1917.”
Rolo compressor
Quando convenceram Nicolau 2º a entrar na guerra ao lado de França e Grã-Bretanha, em 1914, os generais russos, assim como franceses, britânicos e alemães, apostavam numa campanha militar fácil e rápida. Para o czar, aquela seria uma oportunidade de ouro: a vitória despertaria no povo um fervoroso sentimento nacionalista, unindo-o em torno do czarismo e da defesa da pátria. Mas o tiro saiu pela culatra. Embora seu gigantesco exército fosse conhecido como “rolo compressor”, ele não estava à altura das tropas bem treinadas e equipadas da Alemanha. No segundo ano do conflito, em 1915, o número de soldados russos mortos em combate já chegava a 2 milhões. “Enquanto as potências européias conseguiam se adaptar [às características do conflito] e improvisar, o sistema czarista mostrava-se autoritário e ineficiente diante das circunstâncias não antevistas”, escreve o historiador Orlando Figes no livro A Tragédia de um Povo (Record, 1999).
Em fevereiro de 1917, uma passeata feminina em comemoração ao Dia Internacional da Mulher acabou se transformando em greve geral, abraçada por mais de 150 mil trabalhadores. Nos dias seguintes, os grevistas foram duramente reprimidos pelas forças do czar. Àquela altura, as uniões operárias – chamadas sovietes – já constituíam um verdadeiro governo paralelo, detendo o monopólio virtual dos meios de promover a violência de maneira organizada. Em meio à revolta generalizada, Nicolau 2º viu-se obrigado a abdicar. E o poder passou às mãos de um governo provisório, formado por liberais e socialistas moderados.
“Esse novo regime, comandado primeiro pelo príncipe Lvov e depois por Alexander Kerensky, não conseguiu estabelecer a autoridade e frustrou a expectativa da maioria das uniões operárias, que queriam a Rússia fora da 1ª Guerra Mundial”, explica o historiador Nicholas Martin, da Universidade de Birmingham, na Inglaterra. “Enquanto isso, os bolcheviques ganhavam cada vez mais força e o apoio dos sovietes frustrados.” No dia 25 de outubro, os revolucionários liderados por Lênin depuseram o governo provisório e tomaram o poder. Era a vitória comunista.
O preço da paz
Sob o domínio bolchevique, a Rússia começou a organizar sua saída da guerra. Propor o armistício foi fácil. Mas assinar a paz com os alemães deu trabalho ao novo governo. A Alemanha queria indenizações e anexações rejeitadas por muitos comunistas. Os revolucionários tentaram ganhar tempo e postergar as negociações, mas o exército inimigo avançava e chegou a ficar próximo de Petrogrado (atual São Petersburgo), ameaçando a tão celebrada vitória da revolução.
“A burguesia tem de ser estrangulada e, para isso, precisamos de ambas as mãos livres”, disse Lênin ao aceitar o tratado de Brest-Litovsk, firmado em 3 de março de 1918. Ao assinar aquele documento, a Rússia reconhecia sua derrota na guerra e oficializava a paz com a Alemanha, a Áustria-Hungria, a Bulgária e o Império Otomano. Mas também abria mão do controle sobre a Finlândia, os países bálticos (Estônia, Letônia e Lituânia), a Polônia, a Bielo-Rússia e a Ucrânia. Nesses territórios estavam concentrados um terço da população da Rússia, metade de sua incipiente indústria e quase todas suas minas de carvão. Ou seja: o preço a ser pago pela saída do conflito era alto. Mas Lênin acreditava que aquele era o único caminho para consolidar a revolução. E ele estava certo. Em 1922, sobre os escombros do extinto Império Russo, seria fundada a União Soviética – pronta para assumir um dos papéis mais importantes na balança de poder do século 20.