Papiro de quase dois mil anos explica sonegação de impostos na Roma Antiga
Texto descoberto em caverna da Judeia traz bastidores de um julgamento de fraude fiscal no Império Romano.

Há quem diga que o brasileiro é mestre em ganhar dinheiro de formas escusas. Mas o fato é que a escola da malandragem é tão antiga quanto o próprio dinheiro: mesmo sem caixa dois nem tigrinho, os golpes fiscais já faziam sucesso há quase 2 mil anos na Roma Antiga.
É o que revela um papiro de 1,9 mil anos, que relata os bastidores do julgamento de um caso que parece ter saído de um filme (ou do noticiário da noite). A história tem direito a falsificação de documentos, sonegação fiscal, venda fraudulenta de escravos e muita estratégia jurídica.
Ninguém sabe exatamente qual foi a jornada do documento desde sua elaboração até o laboratório da Autoridade de Antiguidades de Israel. Os pesquisadores acreditam que ele se salvou por ter sido armazenado em uma caverna do deserto da Judéia alguns anos após o julgamento, durante uma turbulência política.
Ele tem 133 linhas, o que faz dele o documento o mais longo já encontrado na região. Entretanto, o material só ganhou os holofotes recentemente, já que passou muito tempo esquecido, classificado erroneamente como pertencente à cultura de um povo ancestral dos árabes, os nabateus.
O papiro ficou anos guardado até ser redescoberto por Hannah Cotton Paltiel, professora emérita da Universidade Hebraica. “Eu me ofereci para organizar papiros documentais no laboratório de pergaminhos da Autoridade de Antiguidades de Israel e, quando o vi, marcado como ‘nabateu’, exclamei: ‘Para mim, é grego!’”, lembra a professora, em comunicado.
E era mesmo. O achado foi nomeado P. Cotton, e registra as notas de promotores romanos se preparando para um julgamento de uma acusação de fraude fiscal em grande escala.
Os acusados eram Gedaliah (ou Gadalias), um cidadão romano com uma ficha criminal recheada — violência, extorsão, rebelião—, e seu parceiro Saulos, o cérebro logístico da operação. Juntos, eles forjavam documentos para simular a venda e libertação de escravos, tudo para escapar das garras do fisco do Império Romano.
O mais intrigante é que, ao que tudo indica, libertar escravos não era um negócio lucrativo. Então por que tanto esforço? A suspeita é que o esquema escondia algo mais obscuro — tráfico de pessoas ou a tentativa de cumprir o dever judaico de resgatar correligionários escravizados.
Segundo os estudiosos, os promotores do caso se debruçaram sobre provas e até rascunharam transcrições de audiências. Um trecho até tenta prever como os acusados podem se defender e, assim, planejar formas de refutá-los.
O julgamento ocorreu durante um período delicado para a região, nos anos de 129 e 130 d.C. Pouco antes, entre 115 e 117 d.C, uma revolta da diáspora judaica havia sacudido a região.
O texto sugere que Gadalias e Saulos poderiam estar envolvidos em atividades rebeldes durante a visita do imperador Adriano à região. Na esteira dos distúrbios anteriores, as autoridades romanas provavelmente suspeitavam dos réus, relacionando seus crimes a conspirações mais amplas contra o império.
Hoje, sabemos que a preocupação generalizada das autoridades não era paranoia: pouco depois do julgamento, em 132, a revolta dos judeus contra o Imperador Adriano deu início à terceira guerra judaico-romana, também conhecida como Revolta de Barcoquebas.
“Se eles estavam de fato envolvidos em uma rebelião permanece uma questão em aberto, mas a insinuação fala da atmosfera carregada da época”, disse, no mesmo comunicado, Anna Dolganov, pesquisadora de história antiga da Academia Austríaca de Ciências que participou do estudo do papiro.
“Esse documento mostra que as principais instituições romanas documentadas no Egito também foram implementadas em todo o império”, disse o historiador alemão, Fritz Mitthof, que também participou da pesquisa. “O papiro também mostra a capacidade do estado romano de regular transações privadas mesmo em regiões remotas.”
As punições previstas para os crimes não eram nada brandas. Se condenados, na melhor das hipóteses, os réus cumpririam trabalhos forçados. Na pior, poderiam ser condenados a damnatio ad bestias, ou seja, seriam lançados a feras famintas diante do público.
A descoberta reuniu uma equipe de pesquisadores de vários países e foi publicada na revista acadêmica Tyche. Segundo o arqueólogo Avner Ecker, este é o caso jurídico romano mais bem documentado da Judeia – depois, é claro, do julgamento de Jesus Cristo.