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Quando ainda éramos loucos

Como os transtornos mentais foram vistos ao longo da humanidade

Por Willian Vieira
Atualizado em 31 out 2016, 18h21 - Publicado em 19 Maio 2012, 22h00

Transtornos mentais sempre existiram, mas o tratamento como doença é tão recente quanto a guilhotina. Saiba como a loucura já foi encarada:

Antiguidade
A voz dos deuses – ou fígado ruim

Na Antiguidade grega, a loucura tinha um caráter mitológico que se misturava à normalidade. Num tempo em que a noção de passado era vaga, a escrita inexistia e os deuses decidiam tudo, o “louco” era uma espécie de ponte com o oculto. De sua boca, vinham informações quentinhas lá de cima, e não se tinha dúvida: eram eles, os deuses, que decidiam que tipo de loucura a pessoa teria. Isso até Hipócrates, o pai da medicina, estragar a festa do panteão, lá por volta do século 4 a.C.

“Se a voz dele (o doente) ficar mais intensa, comparam-no a um cavalo e então se afirma que Poseidon é o responsável”, ironizava. “Um absurdo”, pensava ele, que finalmente separou doença mental de deuses e mitos. Hipócrates sistematizou então a teoria dos humores. Era a bílis que afetava o comportamento e causava a loucura, fosse melancolia ou mania – ou seja, loucura calma ou agressiva. Confusão ainda maior estava em crer que o pânico era causado pelo deslocamento do cérebro, por sua vez aquecido pela bílis vinda pela corrente sanguínea.

Platão também deu seu pitaco no século 5 a.C. – e desde então, até o século 19, a filosofia foi a linha mestra para entender a loucura. Sua teoria das 3 mentes (a racional, a emotiva e a instintiva) pregava: se uma delas se desequilibrasse, surgia a desordem mental. Claro, o que para eles causava o desequilíbrio eram as glândulas, e não o cérebro. A coisa muda pouco com os romanos. Galeno (130 d.C.) incrementou a hipótese da boa e velha bílis: a amarela causaria a mania (alegre, furiosa ou homicida), e a negra, a melancolia. Assim, com poucas variações, a relação entre corpo e mente virou a base para compreender a loucura – o que seria retomado durante o Renascimento, após um longo intervalo em que Deus (dessa vez, um só) voltou com força total: a Idade Média.


Idade Média
Vade retro, Satanás

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Em se tratando de loucura, estereótipos sobre a Idade Média se encaixam como uma luva bem pouco cirúrgica: nada de bílis amarela ou negra nem de cérebro deslocado, mas o Capeta em carne e osso. As referências que se cristalizaram sobre o período vêm dos textos de santo Agostinho e são Tomás de Aquino, os maiores pensadores religiosos da Idade Média. Ambos pregaram a vida perfeita, moralmente sã, tudo direitinho, segundo a Bíblia. Qualquer coisa que se fizesse de errado era pecado.

Para santo Agostinho, o que separava o homem do animal era o dom da razão. Se o homem a perdesse, logo se reduzia a um animal, a punição divina para a alma pecadora. Bastava um comportamento estranho (um transtornozinho de personalidade ou um episódio psicótico dos bravos) e o cara era imediatamente taxado como possuído pelo demônio. A loucura não era um problema psiquiátrico porque, afinal, ainda não existia a psiquiatria. A mente era um conceito filosófico, moral. E, nessa época, a moral provinha de Deus.

A depressão de nossos dias era especialmente “má”, digna de entrar na lista de pecados capitais: a “acedia”, um tipo de “preguiça” que distanciava a pessoa do amor e da misericórdia de Deus. Uma indolência sem fim, causada por uma quantidade tão grande de pecados que arrependimento algum serviria para absolvê-los. Afinal, a acédia comprometia a alma a ponto de não sobrarem mais forças para as penitências, muito menos para as obras de Deus.

Se a pessoa fosse endemoniada, o que fazer com o pecador? Havia as práticas inquisitoriais padrão, mas também era comum trancar os loucos em um navio e mandá-los para outra cidade, exilados. Os loucos sumiam e isso era considerado perfeitamente normal.


Séculos 17 e 18
Perda da razão

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O Renascimento veio, as ditas trevas anticientíficas ficaram para trás e, conforme o Iluminismo chegava, os loucos continuaram a se dar mal – só que agora de forma mais racional. A loucura sai do mundo das forças naturais ou divinas e se torna a falta da razão. Surge a noção de alienação das faculdades mentais – memória, razão e imaginação -, dessa vez com causas internas, e não pela ação da bílis ou de demônios.

Quer dizer que tudo melhorou? Não. Com o fim da lepra, esvaziaram-se os leprosários espalhados por toda a Europa. Que ideia poderia fazer então mais sentido do que rebatizá-los de “hospitais gerais” e mandar para lá todos os que não conseguissem seguir as normas estabelecidas pela razão? Mendigos, loucos, inválidos. Todos iam para o mesmo saco, expostos ao público para mostrar o que acontecia com quem se afastasse da razão. Afinal, a medicina ainda engatinhava em relação aos males da mente, e, equanto isso, a filosofia virava escrava da razão. A lógica era simples: quem pensa chega à razão, e a razão leva à virtude. Já o “louco”, desprovido de razão, cai no vício. Torna-se a falta de controle, o perigo. Para evitar o escândalo de ter um louco em casa, famílias pediam a internação de seus parentes.

Uma vez irracional, o louco era visto e tratado como um animal. A descrição de um manicômio francês pelo filósofo Michel Foucault em A História da Loucura na Idade Clássica dá conta disso. “As loucas acometidas por um acesso de raiva são acorrentadas como cães à porta de suas celas e separadas das guardiãs e dos visitantes por um corredor defendido por uma grade de ferro; através dessa grade é que lhes entregam comida; por meio de ancinhos, retira-se parte das imundícies que as cercam.”


Século 19
A doença mental

O medo de ser internado chegou ao auge nas vésperas da Revolução Francesa. Bastava sua família zangar-se com você ou seu vizinho decidir aumentar sua propriedade para denunciá-lo como louco. Protestos de internos mentalmente saudáveis inconformados em viver com os insanos também pipocavam. Mas junto à Revolução Francesa veio a revolução psiquiátrica: em 1793, o médico francês Philippe Pinel transformou a loucura de uma questão de ordem social para uma questão médica. Agora, a ciência a veria como uma doença que deve ser curada.

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O tratamento de Pinel se baseava em vigiar constantemente o comportamento do interno. Qualquer desvio deveria ser imediatamente comunicado – e punido. Era quase pavloviano, como educar um cachorro nos dias de hoje. Depois de um tempo, muitos pacientes de fato mudavam de comportamento.

Assim nascia uma ciência ocupada em estudar a cognição e as emoções. Na Alemanha, Wilhelm Wundt fundava o primeiro laboratório de psicologia, enquanto os americanos tomavam a frente na pesquisa da psiquiatria. Mas a próxima grande virada viria em 1886, quando Sigmund Freud pariu a psicanálise e, em 1900, quando publicou a Interpretação dos Sonhos, no qual analisa distúrbios de personalidade com base na sexualidade vivida durante a infância.

Só que tudo isso acabou virando uma bagunça: psiquiatria, psicologia e psicanálise se intercambiavam para tratar transtornos mal definidos e pouco conhecidos. E a maior vítima continuava sendo o “louco”, que, se por um lado podia ser tratado, passou a ser visto sob o estigma da doença.


Século 20
Faca ou pílula?

No século 20, a ciência deu um enorme salto nos tratamentos médicos de doenças mentais. O início foi bizarro (leia ao lado): comas induzidos, lobotomia, eletrochoques. Isso melhorou um pouco na década seguinte, com o desenvolvimento de sedativos para acalmar pessoas com quadros psicóticos e estimulantes para “levantar” depressivos. Começava a era da psicofarmacologia.

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Em 1950, foi sintetizado o primeiro remédio específico: a clorpromazina, que acalma o paciente psicótico sem deixá-lo grogue. Isso fez com que, em vez da mesa de cirurgia, bastasse ir para a farmácia, evitando muitas lobotomias. Em 1959, veio o antidepressivo e, um ano depois, o ansiolítico benzodiazepínico. A eficácia desses medicamentos transformou a psiquiatria – e a indústria farmacêutica.

“Com os antipsicóticos, os pacientes deixariam de passar 30 anos num manicômio para ficar só 30 dias. Ou seja, eram tratados e devolvidos à sociedade, que teve de aprender a lidar com eles de outras formas”, diz Renato del Sant, psiquiatra e professor da USP.

O último grande capítulo dos medicamentos viria em 1986: a fluoxetina (Prozac), ainda hoje usada contra transtornos como depressão, transtorno obsessivo-compulsivo, síndrome do pânico e bulimia. No cérebro, a substância impede a reabsorção de serotonina, neurotrasmissor associado ao bem-estar. Por ter menos efeitos colaterais que seus concorrentes, o Prozac virou sinônimo de uma geração inteira de pessoas menos “depressivas”, a tal Geração Prozac, que virou até nome de filme.

Mas a psiquiatria passou também por sérias críticas. Primeiro, por se apoiar às vezes apenas em medicamentos. “Por causa da força da indústria farmacêutica, a psiquiatria passou a tratar o cérebro como se fosse um fígado e o ser humano como um grande camundongo, que só tivesse funções bioquímicas, e não um contexto social”, afirma Del Sant. Outra crítica foi escancarada em 1972 num estudo de David Rosenhan, professor da Universidade de Stanford.

Nele, 8 voluntários sadios se consultaram em diferentes hospitais psiquiátricos alegando ouvir vozes – a única mentira que contaram. Mesmo assim, 7 deles foram diagnosticados com esquizofrenia e internados até 52 dias em hospitais incapazes de reconhecer os falsos pacientes. Conclusão: ainda não sabemos distinguir insanidade de sanidade.

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Século 21
Neurociência e genética

Os remédios e o guia DSM revo-lucionaram o modo como transtornos mentais são tratados, mas estão longe de resolver o problema. Só nos EUA, segundo estudo publicado na revista Science em 2010, as perdas econômicas causadas por transtornos mentais passam de US$ 200 bilhões anuais – o equivalente ao PIB de Israel. A luz no fim do túnel pode estar em duas frentes de pesquisa: o estudo do genoma e o mapeamento dos circuitos neurais.

O mapeamento do cérebro tem revelado quais as áreas envolvidas em cada tipo de transtorno. Males como depressão, ansiedade extrema e transtorno obssessivo-compulsivo já foram mapeados – só não se sabe ainda como funcionam e como curá-los. Essa é a promessa para o futuro. Outras pesquisas rastreiam quais circuitos neurais se ativam num dado processo mental: com uso de raios de luz e proteínas, tais circuitos poderiam ser “ligados” e “desligados”. Mas só foram testados em bichos.

Outros estudos também identificam genes que podem causar o mau funcionamento de circuitos neurais. Como cada circuito é determinado por milhares de genes, um problema em alguns genes pode trazer uma batelada de sintomas que caracterizam um transtorno.

Mas a relação entre genes e transtornos não é simples. Diferentes problemas genéticos podem acarretar os mesmos sintomas e, consequentemente, um mesmo diagnóstico. Assim, é possível que haja inúmeras causas genéticas para os mesmos transtornos. Como se vê, faltam ainda enormes passos até se encontrar uma cura por terapia genética. Mas ela seria uma revolução para a neurociência e para a psiquiatria.

Enquanto isso, o dia a dia de pacientes mentais tem melhorado. O movimento antimanicomial deu uma grande ajuda para libertar pessoas antes trancafiadas em hospícios. Grandes manicômios brasileiros, famosos por cenas horrendas de gente pelada correndo entre fezes, foram substituídos pelos Centros de Apoio Psicossocial, onde pacientes recebem tratamento, mas não residem mais. Mesmo em casos graves de esquizofrenia, eles passam a maior parte do tempo com a família. É fato que transtornos mentais ainda carregam um estigma pesado. Mas as coisas estão mudando.


Tratamento de choque 

No começo, era o caos. Assim que se descobriu que as convulsões conseguiam aliviar alguns sintomas psiquiátricos, nos anos 1930, o eletrochoque tornou-se o tratamento com melhores resultados para diminuir a agressividade de pacientes. Só que os aparelhos eram primitivos, e a aplicação, quase intuitiva. Não se sabia qual corrente elétrica usar, onde aplicar, nem por quanto tempo. E não havia anestesia ou relaxantes: era aplicado a seco, muitas vezes como punição a “maus pacientes”. O resultado eram pacientes com memória afetada, apáticos, “abilolados”. Mas, sem remédios antipsicóticos, as clínicas psiquiátricas não tinham nenhuma técnica melhor.

Com o tempo, o eletrochoque, hoje chamado de ECT (eletroconvulsoterapia), voltou com tudo, dessa vez humanizado. Primeiro vêm a anestesia e um relaxante muscular. Assim, o paciente não se debate, o que evita as clássicas fraturas e machucados. Batimentos cardíacos, pressão e respiração são monitorados, enquanto duas placas são postas na parte frontal da cabeça do paciente, deitado na maca. Basta uma sessão rápida de 120 volts e ele entra em convulsão, processo acompanhado por eletroencefalograma. O paciente mal se mexe. Meia hora depois, se estiver bem, toma o café no hospital e volta para casa. Em geral, o tratamento é feito com 3 sessões semanais.

Não é que não haja efeito colateral. Problemas de memória podem ocorrer no curto prazo, mas somem após 6 meses. Metade dos casos melhora. O resultado químico é similar ao dos antidepressivos – os choques ajudam a regular a liberação dos neurotransmissores -, com bons resultados para tratar depressão grave quando remédios não adiantam. E, por incrível que pareça, é o tratamento mais seguro nas depressões em gestantes. Isso porque não interfere na formação do feto, como fazem os medicamentos. Idosos que não querem tomar mais remédios do que já precisam também optam por ele. E, segundo os médicos, não é preciso ter medo: não dói nem queima os miolos.

 

Para saber mais

A História da Loucura na Idade Clássica
Michel Foucault, 1997, Perspectiva.

A Loucura e as Épocas
Isaias Pessotti, 1994, Editora 34.

 

 

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