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Shindo Renmei: Fanáticos e assassinos

Eles se recusaram a acreditar que o Japão tinha perdido a 2ª Guerra. E criaram uma organização clandestina em São Paulo, para matar os integrantes da colônia japonesa que se conformassem com a derrota

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h27 - Publicado em 31 out 2008, 22h00

Texto Tarso Araújo

O dia amanhecia no bairro do Jabaquara, em São Paulo, quando 4 japoneses bateram à porta do industrial Chuzaburo Nomura. Alguém abriu para ver quem chamava e a casa foi invadida. A mulher do empresário ainda gritou para que o marido não saísse do quarto, mas já era tarde. Um dos homens viu Nomura surgir descalço e de pijama no corredor e o acertou com um tiro no pescoço. Os outros 3 se aproximaram e fizeram vários disparos à queima-roupa. “Morra, traidor indigno”, disse um deles, ao meter-lhe uma última bala no peito.

Ao mesmo tempo, no bairro da Aclimação, outro grupo estava escondido no jardim do ex-diplomata Shiguetsuna Furuya, aguardando a hora certa para atacar. Quando Furuya acendeu a luz de um dos cômodos e apareceu na janela, os 5 japoneses fizeram 17 disparos em sua direção. Conseguiram errar todos, embora estivessem a apenas 5 ou 6 metros de distância do alvo. No que soou o primeiro apito da polícia, 2 atiradores decidiram se entregar e 3 saíram correndo.

Os dois atentados, ocorridos no dia 1º de abril de 1946, eram obra da Shindo Renmei, uma organização criada por integrantes da colônia japonesa em São Paulo durante a 2ª Guerra Mundial. Triunfalistas fanáticos, eles se recusavam a acreditar nas notícias sobre a derrota do Japão no conflito. Decidiram que tudo não passava de propaganda americana. E começaram a matar japoneses que admitissem o fracasso na guerra. Ao longo de um ano a partir desse duplo ataque, eles aterrorizariam o estado, deixando um rastro de 23 mortos, mais de 150 feridos e cerca de 30 mil prisões.

YAMATODASHI

Antes da 2ª Guerra, a vida dos 200 mil imigrantes japoneses no Brasil já não era nada fácil. A maioria vivia sob um regime de trabalho semi-escravo, enquanto penava para se acostumar com o clima, a comida e os costumes de uma terra desconhecida. Quando o conflito estourou, em 1939, a situação ficou ainda pior. O Japão estava ao lado da Alemanha nazista, enquanto o Brasil alinhava-se com os EUA e as demais nações aliadas.

Três anos mais tarde, em 1942, o caldo engrossou de vez. Submarinos alemães começaram a afundar navios mercantes brasileiros, forçando o presidente Getúlio Vargas a declarar guerra contra o Eixo. Imigrantes provenientes da Alemanha, da Itália e do Japão tiveram seus bens apreendidos. Ficaram proibidos de se mudar, fazer reuniões ou viajar sem autorização do governo. E também não podiam publicar jornais nem ter programas de rádio. Até o direito de falar na língua materna acabou sendo cassado.

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Foi nesse contexto que um senhor de 67 anos, o ex-coronel do Exército Imperial japonês Junji Kikawa, fundou a Shindo Renmei (ou Liga do Caminho dos Súditos), em agosto de 1942 – um grupo destinado a unificar a colônia em torno do yamatodashi, o espírito japonês. A organização começou distribuindo panfletos que enchiam os patrícios de esperança na vitória e cobravam deles sua parte no esforço de guerra. Muitos imigrantes japoneses pararam de criar bicho-da-seda, por exemplo, para não fornecer a matéria-prima que, mais tarde, viraria pára-quedas para as forças militares aliadas. Mas foi quando o Japão se rendeu, em 15 de agosto de 1945, que a Shindo revelou sua face assassina.

Junji Kikawa e dezenas de milhares de imigrantes consideravam a derrota do Japão impossível. Em 2 600 anos de história, o Exército de seu país jamais tinha perdido uma guerra. Era preciso contra-atacar a “propaganda aliada”. Àquela altura, meados de 1945, a organização tinha cerca de 100 mil sócios em 64 municípios paulistas – mais ou menos metade de toda a colônia japonesa no Brasil. Além de serem muitos, os membros eram generosos. Segundo cálculos da polícia, as doações totalizavam cerca de 700 mil cruzeiros por mês, o equivalente a US$ 500 mil em dinheiro atual. Com esse dinheiro foram comprados mimeógrafos, transmissores de rádio, gráficas e estúdios fotográficos.

A Shindo falsificava de revistas a manifestos imperiais, para provar à colônia que o Japão continuava na luta. Um documento falso, com assinatura de Hiroíto e data posterior à rendição oficial, dizia: “Forças de terra e mar prosseguem na guerra”. A Rádio Bastos, uma das dezenas de emissoras piratas da organização, colocava no ar um noticiário surreal, com boletins sobre a rendição de 7,5 milhões de soldados americanos, a nomeação de um novo presidente dos EUA pelo imperador japonês e a conquista da cidade de São Francisco, na Califórnia.

Era fácil convencer gente humilde de que a derrota do Japão não passava de conversa fiada. O problema da Shindo Renmei estava numa pequena parcela dos imigrantes, geralmente mais culta, que falava português e estava bem adaptada ao Brasil, desfrutando de boa condição econômica. Esses sabiam que a derrota japonesa era real e não podiam simplesmente ignorar o fato. Para os integrantes da organização, eles eram “corações sujos”, traidores que deveriam morrer para lavar a honra da pátria. O racha entre os kachigumi (triunfalistas ou patriotas) e os makegumi (derrotistas traidores) faria muito sangue correr.

A primeira vítima foi Ikuta Mizobe, presidente da Cooperativa Agrícola de Bastos, a 460 quilômetros de São Paulo. No dia 15 de agosto de 1945, mesma data em que Hiroíto assinou a rendição, Mizobe distribuiu um comunicado aos seus funcionários confirmando que o Japão tinha perdido a guerra. Ao assinar aquele documento, acabou assinando também sua sentença de morte: foi assassinado no dia 7 de março de 1946. Em seguida, 1º de abril, vieram os atentados contra Nomura e Furuya na capital paulista, descritos na página anterior. A “traição” dos dois foi a mesma: divulgar notas reconhecendo a derrota japonesa.

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TRAPALHADAS

Entre abril e junho de 1946, a Shindo Renmei somou duas mortes em 3 atentados na capital paulista. No mês de julho, decidiu aterrorizar o interior do estado. Num intervalo de apenas 8 dias, a organização matou 10 pessoas. Suas ações viraram manchete nos principais jornais do país e até na revista americana Time. Mas um par de atentados malsucedidos, no final daquele mesmo mês, daria à polícia as primeiras chances de reação.

No dia 22 de julho, dois grupos prepararam ataques simultâneos ao farmacêutico Isuyo Suzuki e ao engenheiro Yutaka Abe, na cidade de Osvaldo Cruz, a cerca de 580 quilômetros de São Paulo. As operações foram tão espetaculares quanto desastradas. Na casa do engenheiro, uma bomba explodiu sob o assoalho. Só que os terroristas erraram o quarto da vítima, e o máximo de estrago que conseguiram fazer foi quebrar o armário do filho de Abe. Já no endereço de Suzuki, a estratégia foi provocar um incêndio com dois galões de gasolina. O fogaréu impressionou, mas não machucou ninguém. Serviu apenas para deixar a população revoltada e em estado de alerta, pois todo mundo sabia que a maior parte dos 12 mil japoneses vivendo na cidade era simpatizante da Shindo.

As semanas seguintes foram de muita violência. Em Osvaldo Cruz, um brasileiro morreu esfaqueado por um japonês, desencadeando uma verdadeira caçada a todo cidadão de ascendência nipônica. No município de Tupã, a cerca de 530 quilômetros da capital, um integrante da Shindo Renmei quase terminou linchado depois de executar um “traidor” em plena luz do dia, no meio da rua. A confusão foi tamanha que até o Exército precisou intervir. Depois de lotarem a cadeia pública e a carceragem do quartel local, os militares montaram uma espécie de “campo de concentração”. Cerca de 800 japoneses ligados à organização clandestina passaram algumas semanas presos num terreno improvisado, até finalmente serem interrogados.

Durante os 13 meses em que a Shindo Renmei matou gente, entre janeiro de 1946 e fevereiro de 1947, a polícia paulista prendeu 31 380 imigrantes. Exatos 381 membros receberam condenações que variaram de 1 a 30 anos de cadeia. Todos os 80 dirigentes e matadores do grupo tiveram a deportação decretada, embora jamais tenha sido cumprida. Àquela altura, pelo menos, todo mundo já tinha certeza de uma coisa: o Japão havia perdido a 2ª Guerra Mundial.

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A saga kachigumi

Uma breve história dos “vitoristas” japoneses

AGOSTO DE 1942

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A Shindo Renmei é fundada em Marília, interior de São Paulo, pelo coronel aposentado Junji Kikawa.

AGOSTO de 1945

O Japão se rende aos Aliados na 2ª Guerra Mundial. A organização clandestina diz que é mentira.

JULHO DE 1946

Ataques deixam 10 mortos em 8 dias. Imigrantes japoneses passam a ser hostilizados.

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AGOSTO DE 1946

Reação popular a uma série de atentados na cidade de Tupã faz da cidade num campo de batalha.

MARÇO DE 1946

Terroristas da Shindo matam o primeiro japonês a reconhecer a derrota: Ikuta Mizobe, em Bastos.

DEZEMBRO DE 1946

Mais de 380 integrantes da Shindo Renmei são condenados. Dez anos mais tarde, todos receberiam anistia.

Para saber mais

• Corações Sujos

Fernando Morais, Companhia das Letras, 2000.

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