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A fera anda solta

Acuado pelo homem, o puma, aqui chamado de suçuarana ou onça-parda, está saindo da mata para as fazendas e para as cidades. O único modo de evitar um conflito fatal é conhecê-lo melhor.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h00 - Publicado em 28 fev 1999, 22h00

Denis Russo Burgierman, do Parque das Emas, Goiás

Julho de 1997, 7 horas de noite. A professora de Educação Física Vera Lúcia Batista está saindo de casa em um bairro residencial de Ibiúna, a 50 quilômetros de São Paulo. Dá de cara com uma fera mortal, bem em frente ao portão. É um puma. Ou, como é chamado aqui no Brasil, uma suçuarana, a onça-parda.

Final de novembro de 1998, 3 horas da tarde. O biólogo Leandro Silveira, da Universidade Federal de Goiás, é chamado às pressas a um condomínio na periferia de Goiânia onde uma suçuarana tinha sido vista. “As pegadas estavam mesmo lá”, contou Silveira à SUPER. “Até o final de fevereiro, ela apareceu mais cinco vezes no local.”

Que susto! Com 60 quilos de puro músculo, garras cortantes e instinto de matadora, a parda é lindíssima. Mas ninguém espera ser apresentado a ela assim, cara a cara. Conforme a SUPER apurou, ocorreram nos últimos anos dezenas de casos como os de Goiânia e de Ibiúna em todo o país. Sempre com o mesmo enredo: a predadora está rondando por aí, bem longe das matas e dos campos e muito perto das fazendas e das cidades.

“O número de onças não está crescendo”, garantiu à SUPER o maior especialista em grandes felinos do país, o zoólogo Peter Crawshaw, do Ibama (Instituto Nacional do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). “A população de pardas gira entre 30 000 e 50 000 e está caindo.” Acontece que o desenvolvimento reduz as matas e os campos, eliminando a fauna que serve de almoço e jantar para elas. Aí, como não têm nada de bobas, as suçuaranas apelam para a malandragem e vão buscar o pão de cada dia na casa dos vizinhos.

Crawshaw calcula que elas devoram todos os anos alguns milhares de animais, entre bezerros, porcos, galinhas, cabras e ovelhas. Atualmente, ele lidera vários grupos de pesquisa que procuram conhecer melhor a fera para tentar afastá-la dos currais e dos condomínios. Os cientistas acham que é possível conviver pacificamente com o felino. Mas advertem que o único jeito seguro de fazer isso, sem pôr as onças em risco, é garantir que elas não fiquem sem comida.

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Por falta de opção, o predador aperta o cerco

Com mais de 600 abates no currículo, o maior matador de pintadas e pardas do Brasil é o Tonho da Onça, de Rondonópolis, Mato Grosso. Caçador profissional desde a juventude, hoje convertido ao conservacionismo, Antonio Teodoro de Mello Neto, seu nome de batismo, está convencido de que a suçuarana não tem culpa dos incidentes em que está envolvida. “Aquilo é fome”, diz ele, repetindo a conclusão das pesquisas recentes, feitas de norte a sul em todo o país. Elas mostram que só há conflito com a onça onde ela já não encontra caça em seu território.

Basta comparar o Parque do Iguaçu, no Paraná, e o Parque das Emas, em Goiás. Em Iguaçu, os caçadores já se acostumaram a invadir o santuário sem cerimônia e dizimar itens indispensáveis na despensa dos gatões, como cotias e capivaras. Os pumas então contra-atacam perseguindo as criações de gado. Já em Goiás, onde a caça é esporádica, sobram tamanduás e veados-campeiros. Assim, os vizinhos não têm do que reclamar. O biólogo Leandro Silveira, da Universidade Federal de Goiás, que estuda os felinos no Parque das Emas, diz que o problema na região são as áreas nas quais o desmatamento afugentou a fauna. Aí, a guerra corre solta, como atesta o fazendeiro Alberto Rodrigues da Cunha, de Chapadão do Céu. “Nos últimos tempos, venho perdendo de dez a doze bezerros por ano.”

Outra certeza dos pesquisadores é que, nas áreas em que o atrito já começou, ele tende a se agravar. “Se as mães aprendem a caçar bezerros, podem transmitir o hábito aos filhotes”, conta Crawshaw. É que as crias vão à escola: elas ficam dezoito meses treinando táticas de caça com a mãe.

O que se pode fazer? A lição número 1, diz Crawshaw, é lembrar que as pardas, como outros predadores, têm medo do homem e evitam chegar perto. Então, para prevenir a maior parte dos ataques, basta manter o gado preso ou o mais próximo possível da fazenda. Se as predadoras já estiverem mal-acostumadas, é preciso proteger as criações com cercas eletrificadas de arame grosso.

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Risco de morte

A ameaça direta aos humanos existe, sim. Por enquanto, a única morte registrada no Brasil foi a de uma criança, nas cercanias da cidade de Carajás, no Pará, em 1992. Mas se a fera continuar acuada pode ficar mais agressiva. Nos Estados Unidos, onde o sufoco é maior, os pumas não causavam preocupação no passado. Mataram apenas seis cidadãos, de 1890 a 1990, disse à SUPER o biólogo Paul Beier, da Universidade da Califórnia. “Mas de lá para cá, um período bem menor, já pegaram outros quatro”, alerta ele.

De olho nos rastros do felino invisível

Eram 7 da manhã quando o jipe do Ibama pegou a estrada de terra, levando o biólogo Leandro Silveira e a reportagem da SUPER ao coração do Parque das

Emas. Atento ao fone de ouvido, Silveira espera ouvir o bip-bip de um dos rádios que, nos últimos quatro anos, pendurou no pescoço de três suçuaranas. Com ajuda dos transmissores, embutidos em uma coleira, dá para saber, o tempo todo, os caminhos trilhados pelos bichos e o que estão fazendo.

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O pioneiro nesse campo foi Peter Crawshaw, na década de 70, junto com o grande zoólogo americano George Schaller, da Wildlife Conservation Society (Sociedade para a Conservação da Vida Selvagem), de Nova York. Um dos pais da Zoologia contemporânea, Schaller havia inaugurado, dez anos antes, a pesquisa científica sobre os leões e os tigres. Nos alagados do Pantanal, ele e Crawshaw puseram os primeiros rádios-colares em pintadas, pardas e jaguatiricas, primas menores das outras duas.

Hoje, existem sete equipes de pesquisa correndo com fones de ouvido atrás dos pumas em São Paulo, no Paraná (dois grupos cada), em Goiás, em Santa Catarina e no Mato Grosso. O esforço começou em 1990 e agora está começando a fornecer informações sobre os pumas. Segundo Silveira, um objetivo é descobrir as regiões nas quais eles estão mais apertados. “Nos próximos anos, esses animais poderão ser levados para parques que ainda têm espaço disponível.”

No Parque das Emas, as vinte pardas residentes são a conta certa. O que é muito bom para elas, mas desanimador para quem tenta vê-las: como o parque tem uns 1 300 quilômetros quadrados, só com muita sorte daria para topar com uma. Por isso, o bip tinha ficado mudo a manhã inteira. É assim mesmo, diz Silveira. “Em quatro anos de estudo, só vi onças dezoito vezes.”

Pegadas no barro

Onze horas da manhã. Apesar do silêncio do rádio, Silveira desconfia que há uma parda por perto. Saímos da estrada para ter uma vista mais ampla do terreno. Quando voltamos, lá estavam os rastros no barro da estrada molhada. “Um gato grande”, comenta o cientista. “Só que ele nos viu antes e, pelo jeito como as marcas estão borradas, saiu correndo para não nos encontrar.” Está provado: se dependesse só delas, não haveria confronto nenhum.

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Esperta, é a vira-lata da família dos gatos

Das 36 espécies de felinos existentes no mundo, nenhuma se espalha tanto pelas latitudes do planeta quanto a suçuarana. Ela se adapta bem tanto nas regiões árticas quanto nos trópicos ou na Patagônia, quase no pólo sul. Batizada cientificamente de Puma concolor, a parda existe apenas nas Américas. O Brasil abriga a maior população devido à extensão do território, com vastas áreas selvagens. Mas o puma, apelido do bicho nas nações de língua espanhola, anda por todos os países do continente. No Estado americano do Colorado, ele evita o homem mantendo-se em grandes altitudes. Aí, é chamado de leão-da-montanha – o mesmo nome do personagem célebre de desenho animado para a tevê.

Compare com a pintada: a Panthera onca, na classificação dos cientistas, está cada vez mais restrita ao que restou de matas entre o sul do Brasil e a América Central. “Dá para dizer que as pintadas têm pedigree. As pardas são vira-latas”, brinca Leandro Silveira. A analogia é boa, pois a pintada é quase um bicho de luxo. “Se não tiver um grande pedaço de mata abastecido por um rio, ela morre”, diz Peter Crawshaw. Como ela é maior – pode chegar ao dobro dos 60 quilos da parda –, precisa de presas grandes. A carne de um tatu não compensaria o gasto de energia na perseguição.

Já a suçuarana, o segundo maior felino americano, se satisfaz com pouco. Apesar de adorar uma capivara, se contenta com galinhas; prefere matas intocadas, mas não liga se tiver de ocupar pastos abandonados. Assim é o perfil que a pesquisa vem traçando da onça marrom. Ele ajuda a entender como agora é possível vê-la – uma fera selvagem e indomável – à solta pelas ruas das cidades.

Galinhas e perus

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Versátil, ela não só é capaz de se adaptar a vários ambientes e cardápios como também consegue superar o temor natural que sente pelo homem. De que a suçuarana prefere fugir a contra-atacar não há dúvida. Tanto que, apesar do susto que causou em Ibiúna, foi posta facilmente para correr com um tiro para cima dado por Alcides, pai da professora Vera Lúcia Batista. Mesmo assim, não deixou de levar o jantar para casa. Naquele mês, segundo reclamações de diversos moradores da cidade, pelo menos uma dúzia de galinhas e perus foi surrupiada dos quintais.

Para saber mais

The Natural History of the Wild Cats, Andrew Kitchner, Editora Comstock, Nova York, 1991.

Felinos, Michael Boorer, Editora Melhoramentos, São Paulo, 1979.

Aqui é a casa dela

A parda é solitária. Cada uma cuida de um território como o que você vê aqui.

Esconderijo

Na hora do descanso, ela evita terreno aberto. Escolhe cantos protegidos, como ocos de árvore e pequenas cavernas. Dorme de dia, quando o sol está mais quente.

Interseção

O território do macho cruza com o da fêmea. Quando ela está no cio, ele percebe pelo cheiro do xixi e se aproxima para a reprodução. As áreas medem até 150 quilômetros quadrados.

Almoço na mata

Pacas, tatus, cotias e capivaras servem de almoço nas matas. A concorrência humana, como no caso anterior, é feroz.

Bicho rabudo

Nos campos, o tamanduá-bandeira é a presa predileta. É um prato ameaçado pelas queimadas. O bicho rabudo não tem velocidade para escapar do fogo.

Um vê, outro ouve

Veados-campeiros e emas, no cerrado, estão quase sempre juntos. Um protege o outro – eles ouvem melhor, elas enxergam mais longe. Os tiros estão roubando essas iguarias do felino.

Patrulhamento

Calcula-se que o puma dê uma volta completa no seu território a cada quatro ou cinco dias. Deixa urina e arranhões em árvores nas fronteiras para afastar concorrentes do mesmo sexo.

Comida de gente

Nas fazendas, ela procura galinhas, bezerros e ovelhas. Daí, corre risco de levar um tiro ou ser envenenada.

Filhote na mira

Com queixadas adultos a parda não pode. Mas tenta ficar com os filhotes. O bicho anda em grandes bandos, ataca os milharais no verão e é massacrado por fazendeiros.

Safári ecológico

Nesta caçada, a missão não é matar a onça. É protegê-la.

1. Os cachorros cheiram as pegadas e encontram o rastro.

2. Quando está acuado, o bicho sobe em uma árvore. Vira alvo fácil para o dardo tranqüilizante.

3. Em poucos minutos, fica sonada e dorme no galho.

4. Em geral, a suçuarana tem que ser empurrada e cai sobre uma rede.

5. O colar radio-transmissor é instalado com uma tira de couro. Nesta foto, aparece o casal de biólogos Anah e Leandro Silveira

6. Agora, os biólogos podem rastreá-la com os sinais de rádio, por terra ou de avião. Assim, determinam sua posição e vão delimitando seu território.

Elementar, caro pesquisador

Como quase nunca se vêem as pardas, estudá-las é trabalho de Sherlock Holmes.

Só pelas pegadas, os biólogos podem descobrir qual é a suçuarana que passou por lá, uma vez que têm as medidas das patas.

Esses montinhos de areia com urina servem para marcar território. Como elas andam olhando para o chão, o sinal será visto facilmente por uma invasora.

Elas também arranham árvores grandes, em lugares visíveis, para afastar as estrangeiras e evitar o conflito.

A carcaça é outro indício para os cientistas-detetives. É fácil saber se o animal foi mesmo vítima de uma onça. Ela não só come a carne, como tritura os ossos para alcançar o nutritivo tutano.

Anatomia de uma predadora

A suçuarana é uma perfeita máquina de caçar.

Espelho no olho

Os olhos brilham quando iluminados porque têm uma película refletora, atrás da retina, que facilita ver no escuro. As células nervosas absorvem o dobro de luz, captando-a na ida e na volta.

Antena no focinho

Na verdade, são antenas táteis. A onça tem receptores nervosos extremamente sensíveis na base dos bigodes. Assim ela pode saber se a presa está na mira dos dentes, pois não consegue enxergar abaixo do focinho.

Miado feroz

Ao contrário de todos os outros grandes felinos, o puma não ruge. Sua laringe é mais rígida e por isso vibra pouco. O resultado é um miado parecido com o dos gatos domésticos.

Lixa na língua

Ela é tão áspera que serve para raspar a carne das carcaças. É que os grandes dentes são adaptados para triturar com violência, mas não conseguem chegar aos cantinhos escondidos entre os ossos.

Orelha giratória

Os gatos têm verdadeiras antenas parabólicas. Conseguem mexer as orelhas e apontá-las para qualquer direção, até para trás, à procura de presas descuidadas.

Força nas mãos

Antes de morder, o puma precisa imobilizar a vítima. Por isso, tem patas dianteiras poderosas que nao deixam a presa reagir e abrem caminho para a boca chegar à garganta dela.

Mola nas pernas

As patas traseiras funcionam como alavancas. Jogam o corpo para a frente, dando-lhe velocidade para correr a até 60 quilômetros por hora e impulso para saltos de 6 metros de distância. A onça pula muros de 5 metros de altura.

Equilíbrio na cauda

Ela tem a maleabilidade de uma serpente. Seus movimentos dão equilíbrio essencial para o bicho andar com desenvoltura sobre os galhos. Quando o corpo ameaça ir para um lado, a cauda vira para o outro para compensar o peso.

Canivete no dedo

Perto da presa, as unhas se retraem para não fazer barulho ao bater em pedras ou gravetos. O andar é silencioso porque os dedos são almofadados por baixo. Na hora da luta, as garras despontam como lâminas de canivete.

Levante os braços e grite

Como agir se você der de cara com um puma.

Melissa Margetts, uma educadora ambiental do Colorado, Estados Unidos, dá aulas sobre o que fazer ao deparar com uma suçuarana. Por telefone, ela ensinou quatro lições à SUPER. Aprenda você também.

• Tente parecer maior do que é. Levante os braços e fique nas pontas dos pés.

• Não se deite nem finja de morto. Ela ataca na hora. Se você se agachar, ela pode pensar que você é um quadrúpede. Só vai fazê-la lamber os beiços.

• Grite, jogue coisas, ameace partir para a luta. Acredite: ela tem mais medo de você do que você dela.

• O mais importante: não fuja. Sair correndo de um predador assim é quase como pendurar um aviso “sou uma presa” no pescoço. E ela é mais rápida.

De ponta a ponta

A distribuição da fera nas Américas

A parda aparece em todos os países do continente.

Ela se adapta aos mais diferentes climas e come de tudo. Esta, perseguindo um coelho, mora nas montanhas do Colorado, nos Estados Unidos

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