Cadê minha água?
Diante de uma crise hídrica sem precedentes, a maior cidade do Brasil procura água cada vez mais longe. Mas a SUPER calculou que há zilhões de litros disponíveis por perto, num volume muito maior do que o governo paulista planeja injetar na capital. Os números mostram que não é preciso trazer mais.
“São Paulo é uma Sugadora de água. Busca recursos longe enquanto seus rios estão podres.” A sentença da urbanista Marussia Whately, da Aliança Pela Água, define a maior metrópole brasileira: um ralo. Por ele escorrem bilhões de litros diários. Os reservatórios secam. Não por culpa da chuva, que rareou em 2014, mas porque sai mais água das represas do que a natureza repõe. É aí que se evidencia a crise: ela é cultural. E nacional.
No Brasil, quando a fonte seca, a primeira solução é buscar água em outro lugar. Não importa se será preciso bombeá-la por vários quilômetros ou se ela terá que escalar montanhas. Seguimos o curso de extinção dos recursos, esgotando mananciais e explorando outros mais distantes. Para Marussia, que também é especialista em gestão de recursos hídricos, encarar o problema assim é um erro. Torramos dinheiro em planos de emergência e deixamos de investir no básico: eliminar gastos desnecessários.
A seguir, comparamos o volume de água que o estado de São Paulo estima levar para a capital e o quanto poderia ser recuperado com soluções alternativas. O segredo é racionalizar o consumo de água.
Solução do governo de São Paulo: trazer água de longe
O plano de emergência do governo paulista para contornar a crise é buscar novas fontes de água. as medidas incluem: ligar o rio Paraíba do Sul ao sistema Cantareira, que abastece mais de 8 milhões de pessoas; uma adutora regional para levar água para a bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí; um novo sistema de água, o São lourenço, a mais de 80 km da capital; conexão do rio Pequeno à represa billings; e barragem dos rios Jaguari e Camanducaia. Há também dois projetos de estações de água de reúso, mas são da Sabesp, empresa fornecedora de água. Não há sequer menção a projetos de aceleração da limpeza dos rios, de expansão do saneamento básico, de combate massivo a vazamentos e roubos de água ou de subsídio a aparelhos mais econômicos nas casas. Não que essas soluções sejam fáceis de colocar em prática. Não são. Mas são mais elementares e sensatas. Sem elas, a cidade continua a ser um ralo – cada vez maior.
Trazer água de outros lugares
Obras para aumentar a disponibilidade hídrica
Ganho 28 mil litros/s
Tempo 30 meses
Custo R$ 5,6 bilhões
Solução 1: trocar descargas
O Brasil tem água de sobra – 12% da água doce do mundo. Com exceção de quem vive no semiárido, o brasileiro nunca se preocupou com falta d’água. até que ela faltou. Só aí reparamos em nossos absurdos diários.
Usamos água de beber – a mais pura que existe – para tudo. inclusive dar descarga no cocô. Nunca cogitamos fazer isso com água de reúso. Na construção de imóveis, instalar um sistema de reaproveitamento de água já usada nem entra em discussão. E não é complicado: bastaria que as casas tivessem duas tubulações. Uma por onde flui a água tratada e outra por onde corre água reciclada. Esta última viria de um tanque em que são despejadas a água da máquina de lavar roupa, da pia do banheiro e do chuveiro, por exemplo. após ser filtrada, ela pode regar plantas e mandar o cocô embora. Depois, tudo segue para a rede de esgoto e o ciclo recomeça no próximo banho.
Cerca de 60% da água gasta em uma casa pode ser reutilizada. Países como EUa e austrália regulamentaram a instalação de sistemas de reúso. Na Europa, pesquisadores identificaram que reaproveitar gera emprego. Mas, antes de modernizar a casa inteira, poderíamos começar com algo simples: trocar nossas descargas por modelos mais econômicos, que gastam até 65% menos. Na década de 1990, após uma sucessão de crises hídricas, Nova York trocou 1 milhão de descargas. E pagava para as famílias que quisessem trocar por conta própria. Outra medida foi criar metas de consumo. Quem extrapola paga multa.
Trocar descargas
Instalação de 1 milhão de dispositivos mais econômicos
Ganho 200 litros/s
Tempo 3 anos
Custo R$ 375 milhões
Solução 2: consertar tubulações
Nova York tinha a opção de seguir construindo mais represas. Mas concluiu que não fazia sentido captar mais água antes de investir na preservação dos mananciais e na rede de abastecimento. E sabe como chegaram a essa conclusão? Quando mexeu no bolso. Para buscar novas fontes, a cidade gastaria US$ 5 bilhões em valores da época. Com o programa de economia e preservação gastaram US$ 500 milhões: dez vezes menos.
A diferença está em saber onde o calo aperta de verdade. Em São Paulo, se perde quase 40% de água tratada, limpinha, em vazamentos e roubos, como ligações clandestinas. Isso ocorre antes mesmo de ela chegar às torneiras. Um dos motivos desse desperdício é o excesso de gente que os canos têm que atender. A população cresce e é preciso aumentar a pressão nos tubos para a água chegar a todos. Mas a rede paulistana, que ainda tem tubulações da década de 1930, não suporta a vazão e cede. O plano de Nova York durou cerca de 30 anos – só termina em 2023 -, mas todo ano a cidade renova 90 mil km de tubulações.
Outra medida nova-iorquina foi comprar terrenos nas margens e nascentes dos mananciais. Manter a vegetação nativa nessas áreas é fundamental para preservar a água dos rios. Para recuperar o sistema Cantareira, seria necessário replantar 30 milhões de árvores nas margens destruídas dos rios que o abastecem. De acordo com a Empresa brasileira de Pesquisa agropecuária (Embrapa), o custo estimado do plantio é de R$ 195 milhões. No brasil, essas matas são ameaçadas por ocupações irregulares de pessoas, de empreiteiras e da agropecuária, que derruba florestas para usar o terreno como pasto ou plantação.
Consertar tubulações
Diminuir perda de água de 40% para 10%
Ganho 15 mil litros/s
Tempo 30 anos
Custo R$ 5,4 bilhões
Assista: A água não vai acabar. Mas vai
Solução 3: construir cisternas
No semiárido nordestino, onde a população depende da água da chuva para sobreviver, a estimativa do governo federal é de que 750 mil famílias tenham cisternas instaladas. Para elas, a água que cai do céu é aproveitada em vez de ir direto para a terra. Em São Paulo, nestes tempos de crise, a população depende da boa mira de São Pedro para ser abastecida. Ou ele acerta a pontaria e faz chover dentro dos mananciais ou nada de água nas torneiras. Enquanto isso, toda a chuva que cai na cidade – e poderia complementar o abastecimento – deságua nos poluídos rios Pinheiros e Tietê.
Países com clima e hidrografia menos favorecidos que os nossos já se abastecem de água da chuva há muito tempo. Em israel e em Uganda, por exemplo, cisternas são instaladas nas escolas e mantêm os alunos estudando nos períodos de seca. Na austrália, mais de 30% das famílias (cerca de 2,3 milhões) possuem cisternas em casa e usam a água da chuva para atividades domésticas que não exigem água potável. No sul australiano, 86% das famílias usam cisternas.
Em São Paulo, algumas pessoas desenvolveram sistemas de captação da água da chuva por conta própria, sem incentivo nenhum para isso. Simplesmente instalaram calhas sob os telhados, direcionando a água para tonéis. Um movimento chamado Cisterna Já, que ensina como montar uma em casa, nasceu por iniciativa da população. Só no ano passado, o acumulado de chuvas na cidade de São Paulo foi superior a 1.200 mm. Considerando que cada residência da capital tem uma média de 70 m² de área, um domicílio equipado com sistema de cisterna garantiria mais de 88 mil litros para a família em 2014 – água suficiente para consumo de um casal por um ano.
Construir cisternas
Captação de água da chuva nas residências
Ganho 19 mil litros/s
Tempo 3 anos
Custo R$ 900 milhões
Solução 4: universalizar a rede de esgoto
São Paulo virou as costas para seus rios. Em vez de fazerem parte da paisagem e serem fonte de abastecimento, são canalizados, têm suas margens concretadas e acabam servindo como depósito de esgoto de toda a cidade. Uma alternativa para tentar recuperar os rios é investir em políticas de moradia que contemplem a construção de parques lineares. Apesar de criticados por gerar desapropriações, os parques normalmente são preservados pela população, e a vizinhança corre risco muito menor de sofrer com inundações.
Além de não cuidar dos rios que cortam as cidades, o Brasil trata apenas 39% dos esgotos. De acordo com a Sabesp, em São Paulo, mais de 13 mil litros/s não são coletados e caem direto nos mananciais. Do esgoto coletado, mais de 30% não é tratado. O projeto de despoluição do rio Tietê, iniciado nos anos 1990, ainda está longe de ser concluído. O melhor exemplo de despoluição está em Seul, Coreia do Sul, onde o rio Cheonggyecheon foi despoluído em apenas quatro anos – de 2003 a 2007 – a um custo de US$ 370 milhões.
No Plano Nacional de Saneamento Básico consta que seria preciso investir R$ 303 bilhões em 20 anos para o Brasil conseguir universalizar os serviços de água e esgoto. Apesar de isso parecer uma realidade distante, cidades como Piracicaba (SP) servem como exemplo. A prefeitura fez uma Parceria Público-Privada e, com investimento de R$ 180 milhões, alcançou os 100% em dois anos. Dentre as capitais, Curitiba é a que chega mais perto da meta: coleta e trata mais de 90% do esgoto.
Universalizar a rede de esgoto
O Plano Nacional de Saneamento prevê acesso de todos os brasileiros a água e esgoto
Ganho 22 mil litros/s
Tempo 15 anos
Custo R$ 15 bilhões
Solução 5: modernizar sistemas de irrigação
O usuário comum não é quem gasta mais água. O uso doméstico equivale a 10% da água potável consumida no Brasil, enquanto a indústria usa 20% e a agricultura, 70%. Na verdade, indiretamente esse consumo nem é 100% brasileiro. Exportamos alimentos para mais de 180 países, principalmente para China, União Europeia e EUA. Estima-se que, só de soja e milho, vamos vender 65 milhões de toneladas para o exterior este ano. Com os grãos, vai embora também nossa água, praticamente de graça. Para cada quilo de milho, são 900 litros de água empregados. Na produção de soja, gastamos o dobro. E lá se vão mais de 100 quatrilhões de litros para fora do país em um ano.
O consumo dos nossos rebanhos também não fica atrás. O Brasil é líder mundial em exportação de carne bovina desde 2008: são mais de 1,5 milhão de toneladas por ano. E lá se vão mais 23 trilhões de litros da água amada, idolatrada, salve, salve.
Países como a China já concluíram que vale mais a pena importar água virtual do que plantar. De 1985 a 2010, a importação de água subiu de menos de 10 km³ por ano para 150 km³. Israel importa mais de 80% dos alimentos que consome. d Isso não quer dizer que a solução seja frear a produção ou parar de exportar água, mas fazer esse negócio ser mais lucrativo. Usamos um sistema de irrigação pouco eficiente, o de aspersão. Boa parte da água evapora antes de chegar à terra, outra parte fica nas folhas e metade chega às raízes. A mesma produção é garantida com gotejamento, que tem aproveitamento de 95%.
Modernizar sistemas de irrigação
Gotejamento na agricultura economiza até 50% de água
Ganho 24 mil litros/s
Tempo 30 anos
Custo R$ 21 bilhões
Solução 6: reúso de água pela indústria
Num cenário de crise, a prioridade deve ser o abastecimento das pessoas. isso inclui dar condições para que elas participem da gestão da água e sejam parte da solução. O historiador natural José Tundisi, presidente do instituto Ecológico internacional, visitou mais de 40 países que viveram crises hídricas. Para ele, a palavra-chave para sair dessa situação é transparência. “No brasil, existe a mania de achar que transparência nesses casos causa pânico no povo. Pelo contrário. Transparência gera conscientização e engajamento”, aponta.
Em São Paulo, por outro lado, há um obscurantismo em relação à falta de água e até uma negação oficial sobre a gravidade do problema. ao mesmo tempo, a população é pressionada a reduzir o consumo, sofrendo elevação nas tarifas e multas, além de um racionamento não-declarado em algumas regiões. Enquanto isso, grandes consumidores como shoppings e hotéis têm contrato de Demanda Firme com a Sabesp, um programa que garante o abastecimento de água em qualquer circunstância. Em 2014, ano em que estourou a crise, as 526 empresas cadastradas receberam água normalmente. além disso, as que consumiram mais foram premiadas com tarifas menores.
No estado de São Paulo, o consumo industrial equivale a quase 20% de toda a demanda, de acordo com o Departamento de Águas e Energia Elétrica. a maioria nem é servida pela Sabesp: tem outorga para retirar água direto de mananciais e nascentes. Em contrapartida, não é exigido que reaproveitem esse privilégio. O consumo de uma fábrica poderia ser reduzido, no mínimo, à metade, caso houvesse reúso.
Reúso de água pela indústria
Sistemas de reaproveitamento para empresas e outros grandes consumidores
Ganho 40 mil litros/s
Tempo 10 anos
Custo R$ 14,5 bilhões
Haja água
O plano paulista é mais rápido e barato do que a soma das soluções sugeridas na reportagem. A questão é que ele não resolve o problema – e, em breve, será preciso gastar mais dinheiro. Com as soluções propostas, o volume captado seria cinco vezes maior, e nada disso seria paliativo. Não estamos falando de trazer mais água, mas de tornar nosso consumo mais racional.
Plano emergencial SP: 28.000 l/s em 2,5 anos
Custo: R$ 200 mil por l/s
Soluções somadas: 148.200 l/s em 40 anos
Custo: R$ 285 mil por l/s
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