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Caraguatás: Beleza e Perigo

Eles formam um verdadeiro pântano no alto das árvores e abrigam muitas espécies de seres vivos, entre eles os mosquitos que transmitem muitas doenças perigosas. Por isso os sanitaristas repetem: lugar de caraguatá é na floresta

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h58 - Publicado em 31 jul 1988, 22h00

Roberto Muylaert Tinoco

Diariamente chegam às cidades, sobretudo nos Estados do Sul, grandes quantidades de caraguatás, ou bromélias, trazidas por vendedores de plantas ornamentais que as arrancam na mata. Eles entraram na moda porque produzem flores de forte colorido e são, sem dúvida, muito bonitos. Mas convém ter cuidado com os caraguatás – sobretudo os de origem silvestre. Eles possuem a original capacidade de viver sobre outras plantas— daí seu nome científico epífitas—e podem ser hospedeiros de larvas de mosquitos capazes de transmitir inúmeras moléstias, desde a malária às viroses responsáveis por alguns tipos de encefalites.

Isso deixa bem claro que lugar de caraguatá é no mato — lá, ele é imprescindível para garantir o equilíbrio ecológico de toda a região. E no desempenho desse papel eles são, realmente, fantásticos. “Nas florestas tropicais da América existem verdadeiros pântanos suspensos sobre as árvores”, escreveu um biólogo francês depois da descoberta para ele surpreendente: uma variedade enorme de animais aquáticos, típicos habitantes de pântanos e lagoas, consegue viver a 30 metros de altura, junto às copas das árvores. Desde microscópicos protozoários e larvas de insetos até pequenos vertebrados, como os sapinhos arborícolas, sobrevivem naquela altura graças a pequenas quantidades de água de chuva ou de orvalho acumuladas pelos caraguatás.

São poucos os litros de água que uma planta dessas pode reter, mas existem centenas de milhões (isso mesmo: centenas de milhões) de caraguatás povoando os galhos das árvores em grandes extensões de florestas. Na Mata Atlântica, em apenas uma árvore é possível encontrar até quinhentos caraguatás, cada qual com enorme quantidade de seres abrigados entre as folhas. Somando todas essas unidades obtém- se o que muito apropriadamente aquele biólogo chamou “um pântano suspenso?”.

É grande a variedade de plantas que servem de criadouro para pequenos animais, mas poucas conseguem hospedar uma fauna tão abundante e diversificada como os caraguatás. Suspensos nas árvores, eles não abrigam apenas seres aquáticos. Em suas folhas podem ser encontrados também inesperados habitantes ao solo e até do subsolo da floresta.

É que, além da água, uma boa quantidade de folhas caídas fica retida pelo caraguatá e todo esse material se decompõe lentamente, transformando- se num húmus muito semelhante ao do solo. Ele serve de residência para aranhas, besouros, centopéias, lesmas e até mesmo minhocas. Assim, não foi apenas o pântano que ficou suspenso com os caraguatás: eles levaram para o telhado da floresta um pouco de seu chão e outro pouco do seu porão. Do ponto de vista ecológico, os caraguatás conseguiram, literalmente, virar a mata de cabeça para baixo.

É claro que isso tudo não aconteceu de uma hora para outra. Foram necessários alguns milhões de anos para que a família botânica das bromeliáceas—que engloba as bromélias e os ananases, ou abacaxis — produzisse espécies capazes de viver sobre as árvores. Distanciando – se do solo, essas pioneiras ficaram impossibilitadas de absorver, pelas raízes, a água e os sais minerais, como faziam suas ancestrais terrestres. E, se realizaram a façanha de conquistar o topo da floresta, foi porque já contavam com algum mecanismo capaz de solucionar esse problema vital.

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Pelo menos um grupo de bromeliáceas primitivas já dispunha de uma “inovação· evolutiva para substituir a convencional raiz absorvente. Entre elas, a coleta dos nutrientes passou a ser feita por células altamente especializadas, agrupadas nas bases das folhas. Com o acúmulo de água e de restos vegetais em suas cavidades interfoliares, a bromélia absorve diariamente, através dessas células, uma rica sopa de matéria orgânica. Uma vez independente do solo, a planta utiliza as raízes como elemento de fixação, fazendo-as abraçar os galhos das árvores. Por isso muitos acreditam, erradamente, que elas são parasitas das outras plantas.

As bromeliáceas formam o que se pode chamar uma grande família. Pelo menos metade dos seus membros são epifíticos, ou seja, vivem aferrados aos troncos e galhos das árvores. Algumas mais abaixo, no tronco, outras mais acima, na copa, conforme as exigências de luz e umidade de cada espécie. Exatamente por ocuparem diversos níveis— ou patamares—no meio da floresta, elas oferecem muitas opções de hospedagem. Nos pequenos reservatórios de água das folhas centrais podem ser encontradas muitas espécies de algas, desde que a bromélia pertença a uma espécie habitante dos galhos mais altos, onde a luz é mais intensa.

A proliferação das algas proporciona uma rica fonte de alimento para inúmeras espécies de insetos cuja primeira fase de vida é essencialmente aquática. Não fosse pela presença dos caraguatás, essa fauna jamais poderia viver no interior das florestas, principalmente as que cobrem as encostas das serras, onde o solo íngreme raramente permite que a água se acumule. O significado ecológico disso é assombroso. Essas plantas assumem o papel de verdadeira ponte entre dois ambientes que, sem elas, ficariam separados por uma barreira que esses pequenos animais não conseguiriam atravessar.

Isso acontece especialmente na Mata Atlântica (do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo), que recobre a encosta das serras entre o litoral e o planalto atlântico e as planícies costeiras. Para as espécies capazes de suportar as severas variações de temperatura das regiões serranas, os caraguatás abriram uma excelente estrada de ligação entre o planalto e as baixadas litorâneas.

Entre os incontáveis seres vivos que podem ser encontrados nos caraguatás há alguns que representam um grande perigo potencial: mosquitos capazes de transmitir a malária. Isso chegou a constituir um problema muito sério, em alguns lugares, e acabou provocando a destruição maciça dos caraguatás em uma enorme região. Hoje, essa solução é considerada mais um grande crime contra o meio ambiente, por uma razão muito simples: os caraguatás são plantas indispensáveis à manutenção do equilíbrio ecológico da Mata Atlântica.

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E não apenas porque servem de abrigo para uma infinidade de seres minúsculos e de bebedouro natural para muitos animais da floresta. As pesquisas revelaram que os macacos da Mata Atlântica obtêm uma indispensável dieta de proteínas comendo insetos, aracnídeos, lesmas, caracóis, minhocas e girinos (larvas de sapos). E é entre as folhas dos caraguatás que eles capturam suas refeições. Da mesma forma que os pássaros insetívoros e os beija-flores, que neles encontram o seu suprimento diário de néctar.

Deve-se observar ainda que a erradicação dos caraguatás para combater a malária em uma determinada região não garante resultados a longo prazo. Pois tanto as plantas quanto os mosquitos possuem um elevado poder de recuperação, mesmo depois de terem sido dizimados. Por maior e mais perfeita que tenha sido a erradicação, depois de alguns anos o trabalho deverá ser repetido em toda a extensão da floresta, porque plantas e mosquitos já terão retornado ao seu ambiente natural. E se é verdade que alguns locais, no Sul do Brasil, livraram-se definitivamente da chamada bromélia- malária, isso não se deveu à simples erradicação das plantas mas ao fato de que eles sofreram um quase total desmatamento. Sem árvores onde possam enrolar suas raízes, os caraguatás não conseguem recuperar- se. Em compensação, lentamente eles vão conquistando espaços nas grandes cidades. Em São Paulo, por exemplo, existem bairros onde a febre de decorar os jardins com caraguatás já se espalhou. Se fosse possível reunir todas aquelas plantas ornamentais dentro de um único parque faríamos, sem dúvida, um considerável “pântano urbano”.

Nosso Vietnã ecológico

Mais de 400 milhões de caraguatás foram destruídos em Santa Catarina, no final da década de 40, a fim de controlar a malária naquele Estado. A informação foi publicada pelo padre Raulino Reitz, um especialista em bromélias, na revista Ciência Hoje, da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Esse verdadeiro “massacre botânico” foi classificado pelo professor Mário Guimarães Ferri, da Universidade de São Paulo, como “fruto de despreparo ou de enfoque unilateral do problema (saúde pública) por uma distorção profissional perfeitamente compreensível e difícil de corrigir”. Mas talvez a incrível denúncia de Reitz seja apenas a ponta do iceberg numa controvertida e lamentável investida contra a Mata Atlântica.

Na guerra contra os caraguatás não foram usadas apenas as armas convencionais — desmatamento e coleta manual—como informou o articulista. Saíram a campo aviões e helicópteros, despejando produtos químicos sobre as selvas litorâneas numa empreitada sem precedentes na história da saúde pública no Brasil. Havia um “modelo importado” inspirando aquela articulação. Uma experiência bem-sucedida fora realizada pelos americanos em Trinidad (Venezuela), que ali exterminaram os caraguatás nas plantações de cacau. Acontece que se tratava de Plantas criadas em matas artificiais que ali estavam apenas para sombrear as plantações de cacau. Os trabalhadores estavam em contato direto com elas e assim se exigiam drásticas e rápidas medidas de saneamento. No Brasil, ao contrário, o veneno foi lançado sobre matas nativas e restingas de pouca ou nenhuma ocupação humana.

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Outro trabalho, publicado em 1956 na Revista Brasileira de Malariologia e Doenças Tropicais, apresenta o resultado de apenas um ano de borrifações: mais de 100 milhões de caraguatás destruídos. Ignorando a tese de que naquelas circunstâncias uma eficiente campanha de saúde pública poderia ser conduzida pelo fornecimento de telas, mosquiteiros, pequenos desmatamentos em torno das habitações e, principalmente, pelo emprego do inseticida DDT, os devastadores ataques aéreos cumpriram sua terrível missão.

Teria sido apenas uma questão de despreparo e distorção profissional dos sanitaristas, como sugere o professor Ferri? Talvez. Mas na mesma revista há uma estarrecedora explicação para o emprego do veneno conhecido como verde-paris: “Era um inseticida básico na época do combate às formas aquáticas dos anofelinos transmissores de malária. Com o advento do DDT, o combate a esses mosquitos passou a ser feito quase exclusivamente contra a fase alada. Ao se proceder a essa mudança, as entidades empenhadas em campanhas antipalúdicas possuíam grandes estoques de verde-paris. Em nosso serviço, só no almoxarifado da diretoria existiam 30 toneladas, fora o que estava distribuído pelos setores. Nessas condições, não é justo que se pense em outro herbicida, enquanto não terminar todo esse estoque”.

Tal como acontece nas grandes guerras, jamais saberemos a verdadeira extensão do desastre ecológico causado pela guerra aos caraguatás. A única certeza é que milhares de pássaros e animais mamíferos silvestres adoeceram e morreram em conseqüência da ingestão de insetos e águas envenenadas. O que restou das florestas ficou privado do seu componente fundamental: alguns agentes polinizadores específicos, responsáveis pela reprodução de uma enorme variedade de plantas. Como saldo positivo restou apenas uma lição simples, amarga e antiga: a extinção é para sempre.

 

 

Para saber mais:

Quando falam as flores: chaves de um código

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(SUPER número 4, ano 2)

 

Os verdadeiros segredos do sexo

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Sobrevivência e sedução

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