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Ecossistema aquático: Depois da tempestade vem a vida

Um universo fascinante, povoado por pequenos e estranhos seres, reúne-se nas áreas alagadiças depois das chuvas. São milhares de espécies de insetos, moluscos, anfíbios, aves e alguns mamíferos especialmente adaptados à luta pela sobrevivência em um ecossistema extremamente frágil e fugaz.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h35 - Publicado em 30 nov 1993, 22h00

Sobre a superfície desenvolve-se um incrível balé de efêmeros desenhos traçados com a ponta das patas pelos veliídeos , percevejos cuja estrutura das longas pernas lhes permite andar sobre a água. Encarapitados nas folhas de lentilhas-d’água, pequenos insetos do grupo dos lepismatídeos, de corpo alongado e cauda franjada que lembram peixinhos de prata, se aquecem aos raios do sol, enquanto são embalados pelo suave balanço das ondas provocadas pelos besouros em sua incessante busca por comida. Espalhados um pouco adiante, alguns diminutos periscópios aparecem fora da água: são os condutos abdominais que permitem aos percevejos nepídeos e ao escorpião aquático respirarem. E mais abaixo, o mistério do desconhecido: uma infinidade de organismos ignorados e criaturas implacáveis que dão forma a um universo único e fascinante.

Charcos, tanques, diques, canais, lagoas, brejos, alagados, mangues ou pântanos: existem muitos nomes para designar essas pequenas massas de água que talvez constituam a manifestação da natureza que mais chama a atenção do homem. E a característica mais notável desses lugares é a enorme biodiversidade que acumulam em tão pequeno espaço. Não devemos esquecer que a vida surgiu na água, há aproximadamente 3,5 bilhões de anos. E ali permaneceu durante milhões de anos, até que começou a colonizar a terra. Hoje, muitas formas de vida desses alagados são incapazes de viver em terra firme, enquanto outras necessitam desses ecosistemas peculiares para desenvolver alguma fase de sua existência.

O motivo de semelhante acumulação de seres tão distintos entre si está na composição da água. Apesar de muitas vezes apresentarem um aspecto limpo e cristalino, os brejos estão longe de possuir água pura. A água pura não pode manter organismos vivos em seu interior durante muito tempo, ao contrário das águas naturais, que são ricas em substâncias gasosas e sólidas. Entre os gases, destacam-se o oxigênio e o dióxido de carbono. Outras matérias de grande importância são os nitratos, sulfatos, cloritos e fosfatos, além de minerais como o sódio, potássio, ferro, magnésio e cálcio. Sua maior ou menor abundância condiciona a presença de uma flora e uma fauna determinadas. Nas águas pobres em cálcio ficou comprovado que não sobrevivem caracóis nem outros moluscos aquáticos.

A falta de pureza das águas dos pântanos não significa que estejam contaminadas. Ao contrário: seus elementos são impurezas naturais que favorecem a proliferação da vida. Existem, entretanto, outras substâncias, como os óleos, detergentes e demais resíduos típicos de certas atividades humanas que sujam artificialmente as águas, ou seja, as contaminam. Então, o volume de vida que podem acolher é inversamente proporcional a seu grau de poluição: quanto mais contaminadas estejam as águas, menos organismos contêm.

Por sua reduzida extensão, essas massas são extremamente frágeis. “É certo que esses alagados estão ameaçados mas, de todos eles, são os charcos temporários os que correm maior risco.” Eles se formam em regiões caracterizadas por períodos de fortes chuvas e temperaturas elevadas, o que provoca uma evaporação rápida e faz com que seus ciclos tenham um desenvolvimento muito rápido”, explica Jesus Dorda, biólogo e pesquisador especializado em herpetologia e ictiologia do Museu Nacional de Ciências Naturais da Espanha.

Exemplos de espécies associados aos brejos são o sapo comum e, sobretudo, o sapo-corredor, que proliferam especialmente nesses tanques, acrescenta Dorda. Sua curta existência faz com que a quaquer momento, normalmente após um forte aguaceiro, se produza uma autêntica concentração desses anfíbios, em uma estratégia claramente oportunista com que evitam os predadores que se constituiriam em uma séria ameaça para a espécie.

Excluindo-se esses alagados temporários, os habitantes dos alagados naturais e dos tanques artificiais de uma mesma região são idênticos, exceto os animais exóticos introduzidos pelo homem. Além disso, todos esses espaços são colonizados de forma parecida.

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Os mais madrugadores de todos são os insetos voadores: espécies como os mosquitos e outros dípteros são os primeiros a chegar, seguidos logo mais tarde pelas libélulas e os escaravelhos.

O vento e alguns animais — insetos, aves, anfíbios e pequenos mamíferos — são o meio de transporte adequado para que ovos de outros insetos, como os copépodos, um tipo de crustáceos de água doce e salgada, cheguem a um tanque. Pouco depois vêm outros crustáceos e moluscos, que chegam ainda como ovos nas patas das libélulas e dos escarevelhos.

Ao contrário do que ocorre em outras zonas úmidas, como os grandes lagos — onde se pode falar de uma estratificação em suas formas de vida, conforme ocorram em águas superficiais ou profundas —, as pequenas massas de água têm um único substrato, já que em geral são pouco profundas. Convém falar aqui do que os cientistas denominam película superficial; isto é, a superfície das águas. Sua função no mundo dos alagados é igual à da pele no corpo humano, isolando e separando a massa de água da atmosfera, abrigando formas de vida sumamente especializadas, como as larvas de mosquito, para citar apenas um exemplo bem conhecido.

Mas, se nos aprofundarmos um pouco abaixo da superfície, irá se abrir diante de nossos olhos um autêntico universo de estranhas criaturas em que os invertebrados são os personagens principais.

Veremos a ferocidade dos ditiscídeos, besouros adaptados à vida aquática, verdadeiros submarinos encouraçados, quando encurralam os ciclopes, ácaros, pulgas-d’água ou pequenos notonectídeos, percevejos cujo nado de costas lembra um barqueiro remando. Observaremos a aranha mergulhadora, que ao construir seu ninho inventou o escafandro autonômo há milhares de anos. Junto deles, escorpiões da água e outros escaravelhos nadadores formam um ecossistema fechado em que todos se relacionam e no qual há presas e predadores, com uma rigorosa pirâmide ecológica estabelecida.

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A base está ocupada pelos seres microscópicos: protozoários, ciliados, hidras e os componentes do plâncton. E no vértice, os vertebrados como as rãs, salamandras e sapos, entre os anfíbios; patos e gansos, entre as aves, e alguns pequenos mamíferos. No brejo, cada espécie ocupa seu lugar preciso, da mesma forma que ocorre em qualquer outro habitat, como a floresta atlântica, a savana africana ou os oceanos.

Dos diversos segmentos em que se pode dividir a vida animal associada às áreas alagadas, o dos pequenos invertebrados é sem dúvida o mais apaixonante. Aqui se situa o reino dos insetos, quer sejam os adultos ou os que se encontram em forma larvária.

A rainha de todos eles é a libélula, que está completamente ligada a esses ecossistemas, onde encontra refúgio porque possui um ciclo de desenvolvimento coincidente com os charcos. Assim, durante o inverno, as Anax parthenope se encontram em estado larvário sob as águas.

Na primavera se metamorfoseiam à fase de imago, preâmbulo do estado adulto, a que chegam quando o verão já está bem avançado. Nesta estação vivem os adultos, que alcançam em média 40 dias.

A maioria das libélulas põe seus ovos sobre os talos das plantas, apesar de algumas espécies desovarem sobre o barro ou diretamente nas águas. O período de incubação é extremamente variável e oscila desde os quatro a cinco dias da Pantala flavescens aos 200 da Aeschna nigroflava, ainda que a maioria amadureça entre 30 e 40 dias. Nos dias quentes de verão as larvas começam a mover-se. Em seguida, ao longo de 13 etapas, mudarão de tegumento — a membrana que as envolve durante o processo de metamorfose — à medida que vão se desenvolvendo.

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As larvas são extremamente vorazes e se alimentam de larvas de mosquitos, pequenos invertebrados, girinos e, em suas últimas fases antes de sair da água, chegam a capturar pequenos peixes.

Quando alcançam a maturidade, as larvas sobem pelos talos das plantas e uma vez fora da água permanecem imóveis, firmemente agarradas a um ramo, até secarem o corpo. A troca, que na maioria das espécies acontece à noite, começa com o desprendimento do tegumento peitoral. Por eles saem em primeiro lugar o dorso e os volumosos olhos compostos, pouco depois surgem a cabeça completa e as patas e, por último, as asas e o comprido abdômen.

No mundo dos invertebrados dos mangues, além da libélula, outras duas espécies ocupam o posto de grandes caçadores: os nepídeos, um tipo de percevejo parecido com o louva-deus, e o escorpião aquático. De corpo estreito e comprido, com os olhos grandes e negros sobressaindo de uma das extremidades e pernas longas e finas, os nepídeos têm o primeiro par de pernas semelhante ao do louva-deus. Da parte final da barriga sai um tubo pequeno e fino, que emerge da água e pelo qual ele respira. É também um nadador exímio e rápido, capaz ainda de caminhar pelo fundo dos brejos, onde se torna um caçador infalível atacando presas que podem chegar a seu próprio tamanho.

O escorpião aquático prefere as águas com lodo ou barro no fundo, onde oculta seu corpo maciço e de cor parda. Dotado de grandes e poderosas patas anteriores, nada com vigor para aproximar-se de suas vítimas e depois as domina com facilidade.

Os ditiscos, besouros que se adaptaram à vida na água, são outros grandes predadores dos charcos. Escaravelhos que trocaram sua primitiva vida terrestre pela aquática, eles constituem mais de 2 000 espécies, divididas por diversos ambientes aquáticos, como as correntes de montanhas, águas subterrâneas e determinadas zonas litorâneas marítimas, embora demonstrem uma clara preferência pelas águas doces estagnadas.

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Habilíssimos caçadores, é freqüente ver um grupo de ditiscos devorando um alevino de peixe, um batráquio ou um caranguejo de rio. Por outro lado, possuem um surpreendente mecanismo de defesa, que consiste em uma série de orifícios que recobrem seu corpo longitudinalmente e através dos quais expelem um líquido fétido.

Sua adapatação à água é também curiosa: com relativa freqüência pode-se contemplar ditiscos carregando uma volumosa bolha de ar na parte traseira do abdômen enquanto mergulham. É a continuação da bolha de ar que guardam sob seus élitros — duas pequenas peças córneas que lhes recobrem as asas — e que lhes permite respirar como se levassem cilindros de mergulho.

Mas essa diversidade biológica é de extrema fragilidade, já que como um ecossistema quase completamente fechado em si mesmo e com espaço reduzido, qualquer mudança ambiental lhes afeta diretamente. Assim, os poluentes, esgotos e as variações das condições ambientais podem acarretar a destruição desses autênticos cadinhos biológicos que são as lagoas.

Assim é o mundo dos alagados, um universo cheio de vida ao alcance de nossa mão, porém tão extraordinariamente frágil que podemos destruí-lo com a mesma facilidade com que arrancamos um ramo de lírio-do-brejo de sua tranqüila superfície.

Para saber mais:

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Calendário dos animais

(SUPER número 2, ano 4)

A hora do pulo do sapo

(SUPER número 3, ano 7)

O gigante abissal

(SUPER número 6, ano 7)

Eles não querem saber de profundidade

(SUPER número 7, ano 10)

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