Ricardo Arnt
Partes da Floresta Amazônica estão perdendo a umidade natural. Agora, em junho, quando começa a estação da seca, a resistência da mata contra o fogo vai diminuir ainda mais. Há risco de catástrofe. Torça para que chova.
Uma floresta tropical úmida dificilmente pega fogo. As chuvas e o que os ecólogos chamam de “evapotranspiração” (a água que a vegetação absorve do solo e devolve à atmosfera como se fosse “suor”) impedem folhas e galhos mortos de secar até o ponto de combustão. A mata virgem funciona como uma barreira corta-fogo natural. Mesmo em áreas devastadas, os bolsões originais sobreviventes detêm as queimadas.
Quer dizer, detinham. Um perturbador estudo realizado por pesquisadores brasileiros e americanos revela que até florestas intocadas estão pegando fogo. A interferência humana e estiagens excepcionais estão ressecando a vegetação antes úmida. Por sorte, a meteorologia garante que os efeitos nefastos do El Niño estão diminuindo. Mesmo assim, a Amazônia corre perigo. Veja, nas próximas páginas, porquê. E cruze os dedos.
O que os olhos não vêem mas a floresta sente
Os satélites que sobrevoam a Amazônia registram a diminuição das florestas virgens, ditas primárias, e sua transformação em pastagens e matas degradadas, secundárias, conhecidas como capoeiras. Só que enxergam de cima, não de baixo. Se pudessem ver sob o dossel verde da copa das árvores, a imagem mudaria.
Na áreas sob transformação econômica, ao longo da linha que desce do nordeste do Pará ao sudoeste do Maranhão e cruza o Mato Grosso até Rondônia e Acre – o arco do desmatamento (veja na página 89) –, há um rastro de cinzas. Aí, onde se concentram as queimadas, “a floresta primária está funcionando no limite mínimo do regime de chuvas necessário para manter as folhas”, diz à SUPER a bióloga Adriana Moreira, do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), de Belém.
Uma surpresa
Durante dois anos, oito pesquisadores estudaram os incêndios florestais, propositais ou acidentais, em 287 fazendas nessa área crítica. Do trabalho surgiu o livro Chamas na Floresta Tropical: Origens, Impactos e Alternativas, de Daniel Nepstad, Adriana Moreira e Ana Alencar, que será publicado nos Estados Unidos e no Brasil, em julho.
O estudo mostra que o fogo é uma ferramenta agrícola usada durante a seca para limpar pastagens e capoeiras e desmatar florestas. Mas revela que os incêndios acidentais, oriundos de queimadas intencionais que escapam do controle, devastaram – pasme – uma área maior do que todos os outros tipos de fogo analisados. No sul do Pará e no Mato Grosso, “a área queimada por fogo acidental foi maior do que a área dos novos desmatamentos”.
Os pesquisadores verificaram que a maioria das matas arrasadas por chamas acidentais teve, antes, as árvores valiosas extraídas por madeireiras. E constataram que mesmo “florestas primárias, que não sofreram extração seletiva de madeira, também foram atingidas por fogo acidental”. Isso, sim, foi uma grande surpresa. É como se a floresta estivesse doente.
“Não temos uma explicação conclusiva”, diz Paulo Moutinho, o ecólogo diretor do Ipam. “A resistência ao fogo não é homogênea. Certos tipos de mata, com clareiras naturais maiores e cipós, são mais suscetíveis. Esses incêndios indicam que a umidade decaiu muito. Basta uma mudança climática para a Amazônia entrar em risco de combustão.” Mais uma seca agravada pelo El Niño, por exemplo, pode detonar um inferno.
Teia de cicatrizes
A interferência humana também debilitou a floresta. Ao longo das estradas, os madeireiros abrem picadas e penetram fundo atrás das árvores valiosas. O corte seletivo rasga uma teia de clareiras de árvores derrubadas e toras arrastadas por tratores. Os raios solares penetram pelo teto furado das copas e aumentam a insolação do solo, secando folhas, cipós e tocos, que viram material de alta combustão. A umidade do microclima muda. Em florestas virgens, a sombra cobre 80% a 90% do chão; nas exploradas, só 50%.
Uma vez aberta a teia, o fogo usado para limpar pastagens vizinhas, que vem da borda das estradas, espalha-se com o vento e invade os bolsões de floresta pelas trilhas. A princípio, é um “fogo rasteiro”, que não mata as árvores imediatamente. Mas sua repetição vai minando a resistência da vegetação úmida, até que, um dia, tudo arde.
Dá-se, então, uma mudança de escala. Com bolsões de floresta primária cada vez menores e retalhados, as queimadas avançam sem obstáculo. Desgovernadas. Surgem, então, megafornalhas. Em 1988, no município de Ipixuna, nordeste do Pará, 1 000 quilômetros quadrados queimaram, de uma só vez, por acidente. Imagine o holocausto. Pior é que outros podem acontecer.
Se El Niño fizer outra pirraça, vai ser fogo
De agosto de 1997 a março de 1998, 14% do Estado de Roraima pegou fogo. Choveram protestos. Vieram bombeiros da Argentina. Até a Polônia e a Rússia ofereceram ajuda. O biólogo Reinaldo Barbosa, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), estima que 24 000 quilômetros quadrados de savanas e pastagens (o equivalente ao território de Sergipe) queimaram, junto com mais 9 000 quilômetros quadrados de floresta densa. O pavio foi aceso pelo El Niño, que, no ano passado, antecipou para julho a seca do hemisfério norte, que vai de setembro a novembro). O enorme déficit hídrico acumulado (veja infográfico) detonou o flagelo.
Advertência
Mas Roraima pode ter sido só um prenúncio. “Uma área pelo menos dez vezes maior do que a incinerada em Roraima está ameaçada”, adverte o ecólogo Daniel Nepstad, do Woods Hole Research Center, nos Estados Unidos.
Com sorte, o pior não virá. O efeito El Niño está diminuindo, diz o meteorologista Carlos Nobre, diretor do Centro de Previsão do Tempo e Estudos Climáticos (Cepetec), em Cachoeira Paulista: “Em dezembro, o Oceano Pacífico, no Peru, estava 4 graus Celsius mais quente que o normal. Em março, 2,1 graus. Em junho, 0,5 graus. Em agosto, estará normalizado. Essa não será a maior seca do século. Já choveu bem, em abril, no Acre, Rondônia e Mato Grosso”. Nobre, entretanto, recomenda ao governo manter-se alerta. “Não acredito em ‘bola de fogo’ na Amazônia. Mas não dá para descartar a hipótese de catástrofe.”
Não dá para relaxar, sobretudo porque, no leste do Pará, continua a chover muito pouco. E, justamente aí, são intensas a atividade madeireira e o desmatamento para a pecuária. Se a seca de junho for muito forte, como já foi em 1997, o cenário será péssimo.
Déficit acumulado
No município de Paragominas, Nepstad descobriu que boa parte da floresta depende de raízes longas, de 8 a 12 metros de profundidade, para atingir a água armazenada no solo e manter-se verde. A vegetação suga a água e devolve-a à atmosfera por meio da evapotranspiração, formando nuvens de chuva que reabastecem o estoque subterrâneo. “As raízes profundas mantêm a resistência à inflamabilidade”, explica. “Um terço das árvores da floresta usa água de mais de 1 metro de profundidade para conservar o dossel.”
O problema é que, no leste do Pará, o déficit dos lençóis profundos não foi resposto. A floresta vai entrar na seca com menos umidade. Vai perder as folhas mais cedo e acumular mais material seco no chão, que se tornará combustível ainda mais rapidamente. É assustador. “Há catorze anos”, conta o ecólogo, “estudo a mesma floresta, na Fazenda Vitória, em Paragominas. Fiz minha pesquisa de doutorado lá. Por anos ela resistiu aos testes de fogo. Em 1997, os lençóis secaram 1 metro, as folhas desabaram e tudo entrou em ignição. Se a gente não apagasse o fogo, ele ia embora.”
No Pará, a exploração predatória da madeira e as queimadas reduziram as manchas de floresta saudável a fragmentos. E partes da Amazônia viraram reféns do humor do El Niño. “A questão do fogo não pode mais ser ignorada pelo governo e pela sociedade”, insiste Nepstad. Se as matas do arco do desmatamento virarem savanas, a região perderá a defesa contra incêndios. O sul e o leste da Amazônia virarão um vasto território de pastos e capoeiras combustíveis. Sob sol ardente.
Para saber mais
Floresta Amazônica: Dinâmica, Regeneração e Manejo. Claude Gascon e Paulo Moutinho. Ministério da Ciência e Tecnologia, Manaus, 1998.
Na Internet: https://www.cepetec.inpe.br
Questão de método
Como depredar e como explorar racionalmente uma floresta .
Exploração predatória
0 ano – Floresta intacta.
1 ano – Extração de madeira de lei (ipê, jatobá, freijó) abre clareiras aleatórias.
10 anos – Extração de madeira branca (jarana, cajuaçu, currupixá) fura a cobertura da copa.
20 anos – Extração de madeira fina (diâmetro inferior a 30 cm) agrava a insolação do solo.
30 anos – Floresta empobrecida, aberta à invasão do fogo. Regeneração em 70 anos.
Exploração sustentável
0 ano – Elaboração do inventário de espécies.
1 ano – Planejamento de picadas e do abate de árvores. Preservação da cobertura.
10 anos – Purificação. A incisão de “anéis” nos troncos mata as árvores indesejadas.
20 anos – Técnicas de corte diminuem rachaduras e mantém o solo úmido.
30 anos – Floresta produtiva. Regeneração a cada 30 ou 40 anos.
O arco da catástrofe
Veja a fronteira do desmatamento.
O El Ñiño inverte a circulação de vento no Oceano Pacífico, transferindo chuvas e águas quentes da Austrália e das Filipinas para a costa do Peru. A mudança climática perturba o mundo todo. Produz seca na Oceania e calor na Austrália e no Japão. No Brasil, provoca seca no Norte e no Nordeste, calor no Sudeste e enchentes no Sul.