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Isto sim é civilização

Se você acha que as sociedades humanas são complexas e organizadas, talvez seja hora de olhar para os formigueiros. Temos muito o que aprender com eles

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h02 - Publicado em 31 dez 2000, 22h00

Mariana Mello

Nestes dias que correm, em que até nos Estados Unidos ninguém sabe quem é que manda, a humanidade está precisando de um bom modelo de democracia. Talvez seja o caso de começar a procurar pelo chão. Veja aquela fila de formigas, andando organizadamente, sem atropelos, trabalhando pelo bem comum. O cidadão desinformado pode até pensar que, por trás dessa ordem toda, há algum tirano, algum ditador dizendo aos insetos oprimidos o que fazer. Nada mais longe da verdade. “Entre as formigas, ninguém manda em ninguém”, afirma a entomologista Deborah Gordon, que, há 17 anos, acorda todas as manhãs, veste chapéu, botas e calças compridas, e se agacha sob o sol do Arizona para passar o dia observando formiguinhas.

Deborah é autora do recém-lançado livro Ants at Work (Formigas Trabalhando), ainda inédito no Brasil, no qual procura desmentir a idéia corrente de que a sociedade desses insetos é um tipo de monarquia absolutista. Pegue o caso da rainha, por exemplo. Apesar do imponente título de nobreza que os biólogos lhe conferiram, ela manda menos no formigueiro que Elizabeth II na Inglaterra. E trabalha muito mais. A coitada passa a vida presa num quarto escuro do formigueiro pondo ovos sem parar. É claro que tem algumas mordomias – está sempre cercada por uma escolta de soldadas vigilantes e as operárias nunca deixam que lhe falte comida –, mas isso é mais uma compensação pela vida miserável que ela leva do que uma regalia vinculada a seu sangue azul. E a rainha não dá ordens para ninguém, cada formiga simplesmente sabe o que tem que fazer pelo bem da comunidade, sem precisar de um chefe. É um trabalho tão sincronizado e organizado que é quase como se as formigas fossem células de um grande organismo: o formigueiro .

Há, por exemplo, as que se aventuram para fora do formigueiro. São operárias especializadas em buscar comida. Se você olhar de perto para uma delas enquanto sobe numa folha, verá como ela usa a mandíbula, que mais parece uma tesoura, para picotar o vegetal. Em seguida, suas patas ágeis seguram com força o pedaço e o guardam numa bolsinha na barriga, chamada gáster, que lembra a dos cangurus. Com a mesma tesoura, ela pega outra folha e a coloca nas costas, para aproveitar a viagem. E corre para a fila de volta para casa.

No caminho, as operárias esfregam a barriga no chão, deixando um rastro com o cheiro da colônia a que pertencem, para que ela mesma e as companheiras não se percam. Formigas não falam, mas os feromônios, que são as substâncias que carregam odores, substituem com eficiência as palavras. No caminho para o formigueiro, a operária pára na frente de outra formiga. As duas esfregam suas sensíveis anteninhas e, pelo cheiro, percebem que são da mesma colônia. Antes de seguir em frente, a operária divide um pouco da folha que leva para casa e avisa, com outro feromônio: “Ali na frente tem algo que nos interessa”.

Mas, se você acha que conhece as formigas apenas de olhar as que passeiam por aí, está redondamente enganado. “Apenas 10% da população sai para buscar comida. As outras 90% ficam na colônia o tempo todo”, diz a pesquisadora Ana Eugênia de Campos Farinha, do Instituto Biológico de São Paulo. É que, em casa, todas juntas, elas conseguem se defender. Lá fora, espalhadas em frágeis batalhões, as pequenas são presas fáceis para predadores famintos como tamanduás, lagartos e besouros.

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Portanto, para entender mesmo como são esses insetos, o ideal é seguir a fila e entrar com uma delas pelo buraco do formigueiro. Logo abaixo do nível do solo há uma multidão de formigas, umas indo, outras vindo. Nenhuma pára para dar passagem, elas simplesmente sobem umas nas outras sem se incomodar em pedir licença (não, não há um feromônio para isso). Começam a surgir bifurcações, ruas mais largas, que dão em grandes buracos, cheios de larvas. Lá há mais funcionárias dedicadas.

Algumas passam o dia lambendo e manipulando, com as patinhas, as larvas das futuras formiguinhas que vão nascer. Também são operárias, mas trabalham como babás: ai de quem chegar perto sem o cheiro certo (que funciona como um crachá). Quando o quarto onde estão os futuros bebês fica muito quente, elas se organizam e abrem novos dutos de ar condicionado, zanzando pelo meio da terra para que o ar circule.

Em algumas espécies de formigas, como as saúvas, esses berçários são freqüentados também pelas cortadeiras, operárias especializadas em picar as folhinhas que as coletoras trazem. As maiores delas dividem, com as mandíbulas-tesouras, os grandes pedaços de folha em várias pequenas partes. Daí chega uma formiga menor, que corta cada pedaço em pedacinhos. E assim por diante, como se fossem as enzimas do nosso sistema digestivo quebrando os alimentos em pequenos componentes. Uma perfeita linha de (des)montagem. Até que sobram fragmentos vegetais tão minúsculos que podem ser absorvidos pelas larvas.

As folhas picotadas servem também de adubo para os fungos que crescem nos berçários. “As formigas podem ser consideradas as verdadeiras inventoras da agricultura”, afirma a ecóloga Flávia Medeiros, especialista em comportamento de formigas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Não é exagero. Há operárias no formigueiro que cultivam uma horta de fungos e depois colhem para alimentar a colônia inteira.

Comida é importante, mas não é tudo. Para que um formigueiro funcione, vários tipos de formigas precisam trabalhar, cada uma fazendo o que sabe sem ambicionar uma promoção ou invejar o emprego alheio. Há, por exemplo, as faxineiras, que alegremente levam cada resíduo de comida ou de larvas para algum porão vazio nas fronteiras do formigueiro, onde as bactérias que o lixo atrai não são ameaça para ninguém. Outras limitam-se à tarefa burocrática de organizar estoques de comida, cuidando para que não falte nada e decidindo o que deve ser consumido antes. Há algumas ainda mais especializadas: passam a vida a quebrar sementes ou a cavar túneis. “Sozinhas as formigas não são nada. Sua sociedade é o exemplo perfeito de como várias partes simples podem executar tarefas elaboradas juntas”, afirma Deborah, que gosta de comparar o formigueiro a um cérebro. Em ambos os casos, um componente isolado – formiga ou neurônio – é incapaz de grandes feitos. Mas o conjunto impressiona pela eficiência e pela complexidade.

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O engraçado é que uma única formiga – assim como um único neurônio – não faz idéia de que seja parte de algo tão complicado. “Essa é uma das mais recentes e incríveis descobertas sobre as colônias”, diz Deborah. “As formigas só percebem as companheiras mais próximas. Nem sabem o tamanho de seu formigueiro.” Ou seja, uma cidadã do maior formigueiro do mundo, que fica na ilha de Hokaido, Japão, e abriga, em seus três quilômetros quadrados, 300 milhões de operárias e 80 000 rainhas, nem imagina que sua casa é diferente de uma colônia do gênero amblyotoni, a menor do mundo com apenas 12 habitantes, encontrada na Austrália.

E, já que estamos falando de recordes, toque o hino: a maior formiga do planeta é brasileira. Trata-se da tocandira, que habita o Estado de Goiás. Ela mede 4 centímetros e tem uma ferroada tão doída que virou rito de passagem para índios locais: “Quando o menino se tornava um guerreiro, era obrigado a colocar a mão numa luva cheia de tocandiras”, diz Ana Eugênia.

Mas tamanho nem sempre é documento. Outra formiga daqui da terrinha, a minúscula lavapé, de 2 milímetros, está entre as mais bem-sucedidas do mundo. Tanto que acabou desembarcando na América do Norte, de carona em algum navio brasileiro na década de 30, e transformou-se numa das mais terríveis pragas dos Estados Unidos, onde não tem inimigos naturais.

Uma das razões de tanto sucesso é a implacável estratégia militar das lavapés. Elas invadem as colônias inimigas e vão espirrando ácido fórmico, um veneno que já matou muita gente de alergia, nos olhos das inimigas. Quando encontram a rainha, seguram-na com a boca e cravam o ferrão no abdome, pela lateral da carcaça. Vencida a batalha, as soldadas copiam o cheiro da rainha morta e, em pouco tempo, são aceitas pelas formigas órfãs. Os biólogos chamam as colônias conquistadas de “escravas”.

Do outro lado do mundo, na Austrália, há uma formiga que também se destaca pelas capacidades guerreiras. É a buldogue-australiana, que tem um ferrão de meio centímetro e salta até 30 centímetros. Já as formigas argentinas adotam uma tática menos ortodoxa de defesa. Em vez de picar as inimigas, exalam ácido fórmico pelo ânus, produzindo um odor tão horrível que afasta qualquer adversário.

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Mas, embora sejam boas de briga – todas estão dispostas a morrer, se for preciso, para defender a rainha –, as formigas sabem também a hora de fugir. Quando a família cresce demais, a comida acaba na região, alguma bactéria indesejada contamina o formigueiro, ou rivais mais fortes ou mais numerosas tomam posse da vizinhança, é hora de arrumar as malas e mudar de casa. As soldadas comunicam a rainha, procuram um novo lugar debaixo da terra e organizam a mudança e o transporte do estoque de comida. As adultas carregam as pequenas nas costas e, com muito cuidado, levam a rainha e as larvas quando a nova casa já está segura.

Uma espécie que entende de mudanças é a mexicana correição, que não tem olhos. Apesar da cegueira, elas são estrategistas incríveis – uma sabe onde a outra está apenas pelo cheiro. Como num arrastão carioca, se dividem com precisão geométrica, varrendo o terreno sem deixar um milímetro descoberto. No caminho, vão devorando tudo o que encontram. Quando cansam, fazem uma roda e colocam a rainha e as larvas no centro. Depois sobem umas nas outras entrelaçando as pernas e formam um globo para protegê-las de ameaças aladas. Quando desmontam o acampamento, escolhem outra direção e dão prosseguimento à vida nômade. Tudo isso sem ninguém para dar as ordens.

Pois é. Temos muito o que aprender com as formigas, não só no que se refere ao trabalho em equipe, mas também em termos de técnicas agrícolas, distribuição da comida, sistema político e cuidados ambientais. Quem sabe, com a ajuda delas, não possamos nos tornar mais civilizados?

mamello@abril.com.br

O bicho-formigueiro

Cada formiga faz um pouco do trabalho para manter o todo funcionando. É como se elas fossem as células de um organismo vivo. O sauveiro abaixo é um exemplo disso

Braços

As soldadas são formigas maiores e mais fortes. Elas fazem o papel de braços, pernas e olhos. Diante de qualquer ameaça, como outra rainha invasora, avisam as demais e dilaceram o inimigo com mordidas

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Sistema imunológico

As formigas produzem uma substância bactericida que mata todo tipo de germe, protegendo a saúde das habitantes

Circulação

Os corredores permitem o transporte de nutrientes e ajudam a manter a temperatura num nível agradável. Mais ou menos como veias e artérias

Estômago

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Algumas operárias não digerem alimentos sólidos. Por isso, as larvas recebem folhas picotadas e as regurgitam como substância líquida, que alimenta as soldadas

Reprodução

A rainha está sempre escondida, pondo ovos. Ela equivale aos órgãos reprodutores

Excreção

Dentro da colônia, há uma galeria específica para jogar o lixo. Fungos mortos ou formigas falecidas são carregadas pelas companheiras até lá

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