Não é a Grécia que tem de sair do euro. É a Alemanha
Enquanto a Europa cai pelas tabelas, a Alemanha se dá bem. Não é só competência: é porque o euro trabalha a favor dela, e contra os países pobres do continente
Dinheiro só vale dinheiro se tiver como lastro aquela coisa que vale mais do que dinheiro. Ouro não: PIB. Produção. Interna e bruta. Uma nota de R$ 50 só não é um mero pedaço de papel porque carrega em si valor das coisas que o Brasil produz. O dólar só é o dólar porque tem por trás os US$ 18 trilhões em produtos e serviços que brotam dos EUA. Quanto maior for a produção de um país, então, mais forte tende ser a moeda dele.
Mas tem outro lado nessa moeda. Quando o câmbio de um país fica forte demais, a indústria dele começa a tossir. A gente conhece bem essa história. O real hipervalorizado foi bom. Para a China: nossas construtoras e montadoras passaram a importar aço chinês, porque a defasagem do yuan em relação ao real deixou o aço oriental mais barato que o da Gerdau. Em outra frente, nossas sacoleiras invadiram Miami e esvaziaram os outlets de lá, aproveitando o dólar barato. De quebra, ajudaram a derrubar o faturamento da nossa indústria têxtil.
Pois é: uma moeda forte às vezes revela as fraquezas de um país. Foi o que aconteceu aqui. E na Grécia também.
O lastro da moeda grega não é o PIB da Grécia. É o da zona do euro, que conta com 19 países. Junte todos e você tem um PIB de US$ 10 trilhões, igual ao da China (e cinco vezes maior que o nosso).
Mas esse pibão não tem nada de uniforme. A Alemanha responde sozinha por 40% do bolo. Se juntar ela e a França, dá quase 70%. É uma desigualdade brava: o PIB da Grécia, estacionado em US$ 237 bilhões, é menor que o da região metropolitana de São Paulo. Mesmo assim, ainda é um pouquinho mais gordo que o de Portugal e o da Irlanda, outros dois membros do infame PIIGS, o cordão de endividados da Europa (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia, Espanha).
Antes do euro, os cinco porquinhos tinham histórico de inflação alta, gastança estatal e, consequentemente, pouca moral no mercado financeiro. Então eles tinham de pagar juros altos sempre que precisassem de moeda forte para importações. Por “moedas fortes”, entenda dólares e marcos alemães.
E aí chegou o euro, na virada do século. Na prática, era como se o marco alemão mudasse de nome para “euro” e passasse a suprir o resto do continente (a maior parte dele, pelo menos). Parecia bom para todas as partes. Os governos dos países menos pibados passariam a receber os impostos dos seus cidadãos em euros, uma moeda garantida pelo PIB alemão. Impostos servem para pagar as dívidas dos governos – além da lagosta dos governantes. E agora os contribuintes pagavam em euros. Resultado: o mercado passou a emprestar para os países bagunçados da Europa a juros baixíssimos.
Aí choveu euro na periferia da Europa. A economia ali cresceu como nunca, mas os governantes gastaram como sempre. Além disso, não perceberam a arapuca em que tinham se metido: seus países eram pequenos demais para suportar o peso de uma moeda forte.
Grécia, Portugal e cia. têm indústrias miúdas, incapazes de concorrer com a da Alemanha. Cheios de euros nos bolsos, os gregos e portugueses correram a comprar BMWs, ó pá. Isso e tudo o mais que a Alemanha se desse ao trabalho de produzir, já que agora, sob a moeda única, os itens germânicos tinham ficado com preço de outlet. Os alemães também passaram a consumir mais produtos dos periféricos. Mas se o seu país faz azeite e o país do outro, Audis, a balança comercial nunca vai pender para o seu lado. Foi o que aconteceu com Grécia e a rapa.
A indústria dos países europobres também não aguentou a concorrência com a dos euro-ricos, e teve o mesmo fado da nossa: encolheu, dispensou funcionários. Os desempregados passaram a consumir menos… Recessão.
Com os PIBs dos europobres caindo, a arrecadação deles diminuiu. Menos arrecadação, mais problemas para pagar dívidas. Aí tome mais dinheiro emprestado para ir rolando a pendura, só que agora a juros menos fofos. E não deu outra: dívidas equivalentes a mais de 100% do PIB viraram carne de vaca. A do Brasil, para você ter uma ideia, é de 60%, e não chega a ser uma maravilha. E se mais de 100% já roça no limite do impagável, imagina na Grécia, que passou a dever 175%. Era o caos.
A escalada da pendura a um grau insustentável deixou os bancos europeus a perigo, já que eles são os credores dos europobres. Um eventual calote em massa causaria uma quebradeira igualmente massiva no sistema financeiro todo. Para evitar um colapso, então, o Banco Central Europeu (BCE) “imprimiu” 1,1 trihão de euros e emprestou para os bancos. É do jogo: não fosse isso, a crise europeia poderia ter feito com que a americana, de 2008, parecesse uma marolinha.
Mas os gastos do BCE têm ajudado mesmo os países que menos precisam: em especial, a Alemanha. Explico. Se você aumenta sua produção de dinheiro num ritmo maior que o da sua produção de coisas de verdade, sua moeda enfraquece. Perde valor em relação ao dólar. Foi o que aconteceu com o euro depois que o BCE ligou suas impressoras a todo vapor.
Nisso, os produtos alemães ficaram mais baratos do que nunca fora da zona do euro. Tanto que, no ano passado, a Alemanha exportou US$ 246 bilhões a mais do que importou – um superávit comercial que só perde para o da China.
A maior parte dessas exportações foi para fora do continente, já que o resto da zona do euro continua definhando. E a culpa aí não é só do endividamento dos europobres. É do próprio euro, porque a moeda única cria uma situação surreal. O superávit alemão deveria fortalecer a moeda alemã, caso o país tivesse uma. Isso deixaria os produtos dos europobres mais baratos para os germânicos. A Alemanha passaria a importar mais de seus vizinhos. E isso traria um gás novo para as economias de todos eles. Mas não.
A moeda única impede esse reequilíbrio natural, e coloca a Alemanha num reino da fantasia: o de ser ser uma economia forte com moeda fraca. Um país livre para exportar à vontade – o oposto do Brasil, que agora é uma economia fraca com moeda proporcionalmente forte o bastante para atrapalhar o nosso comércio exterior. Aí fica fácil para Angela Merkel.
A Alemanha não está bem só por conta de sua tão alardeada produtividade – nem pela suposta superioridade ética frequentemente atribuída aos germânicos, que valorizariam mais o trabalho que gregos, portugueses, espanhóis. Não. A Alemanha virou uma ilha de prosperidade naquele mar de lama porque vive num sistema que a favorece, na alegria ou na tristeza, na saúde ou na doença. Diante disso, a única saída talvez seja mesmo o fim desse casamento monetário, com a Alemanha saindo do euro. E voltando para a realidade.
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