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Preservação das espécies em zoológico: Arca de Noé do futuro

Em Londres, o mais antigo zôo do mundo se prepara para deixar de ser apenas um parque de exposição e se dedicar à recuperação genética de espécies ameaçadas.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h00 - Publicado em 31 Maio 1993, 22h00

Ivan Martins

Por Ivan Martins, de Londres

Quando se discute o problema da extinção de animais, duas opiniões costumam se destacar. A primeira é que o problema realmente não é sério, ou pelo menos não tão sério quanto dizem os ecologistas. A segunda é que o problema é sério e triste, mas que não há nada que se possa fazer a respeito — afinal, o progresso não deixa muito espaço para os animais. Recentemente, no entanto, o Zoológico de Londres anunciou uma novidade que pode relegar os dois pontos de vista à lista de idéias em extinção. Desde fevereiro passado, o mais antigo zoológico do mundo transformou a preservação das espécies em perigo no seu principal objetivo.

De agora em diante, mais do que engordar animais para exibi-los aos visitantes no domingo, como faz há 166 anos, o zôo londrino quer manter, estudar, reproduzir e devolver à natureza bichos ameaçados em seu habitat natural. “O conservacionismo é urgente porque as espécies estão desaparecendo. Muito mais urgente, por exemplo, do que a física das partículas, que são virtualmente eternas”, compara o zoólogo britânico Collins Tudge, autor do livro Last animal at the zoo (Os últimos animais no zoológico). “Só que, enquanto se investe pesado em pesquisas de física das partículas, o conservacionismo quase não dispõe de verbas.”

Os criadores do projeto, batizado Zoológico do Futuro, acreditam que um dia todos os zôos do mundo serão isso: incubadeiras da vida selvagem. A natureza sozinha, dizem, não é mais capaz de preservar os milhões de espécies do planeta, diante do avanço do homem. De 1640 até hoje, 88 das 9 000 espécies de pássaros existentes no mundo sumiram e outras 283 correm risco. Os grandes mamíferos, restritos à Ásia e África, mesmo lá já não estão seguros.

A lista é longa: tigres siberianos, rinocerontes indianos, pombas-rosadas da Ilha Maurício, sapos-bois, flamingos do Caribe, cobras-de-pescoço-negro da África, lobos-vermelhos, condores, pandas, antílopes, macacos…. Todos ameaçados por forças impiedosas: a caça e a eliminação dos habitats. A caça um pouco menos — até mesmo por falta de vítimas. A agressão aos habitats, no entanto, continua a avançar.

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“A extinção de algumas espécies faz parte de um processo natural. O alarmante é o ritmo que ganhou nos últimos anos”, diz Georgina Nace, pesquisadora do Instituto de Zoologia de Londres, que funciona junto ao zôo. Na sala de Georgina, dominada por computadores, percebe-se imediatamente que Noé era um completo amador e que a aventura da Arca só deu certo porque Deus quis. Hoje em dia, para salvar animais é preciso dominar a matemática da criação. Como Georgina, especialista em Genética populacional que tenta, com seu computador, manter saudáveis animais que parecem fadados a desaparecer.

Para cada espécie em risco, a primeira preocupação é responder a duas perguntas: qual o número mínimo de indivíduos necessários para garantir a vida da espécie por 200 anos e quais devem cruzar entre si para preservar 90% da diversidade genética do grupo? Os dois números — 90% de diversidade e 200 anos de sobrevida — não são aleatórios. Pelo contrário. Eles se apóiam em estudos teóricos de Genética. Graças a eles, os técnicos descobriram que manter 90% da variedade genética de uma espécie exige bem menos indivíduos do que seriam necessários para preservar 100% da herança dos genes.

Em termos ideais, para assegurar a diversidade genética total de uma espécie por 1 000 anos seriam necessários 500 indivíduos sem parentesco entre si. “Mas como acomodar em zoológicos 500 exemplares de cada espécie ameaçada?”, pergunta Georgina. Para resolver esse problema de ordem prática, chegou-se a 90% de diversidade e 200 anos de sobrevivência. Com essa meta, por exemplo, o tigre siberiano pode ser preservado a partir de uma população de 136 indivíduos não aparentados, o antílope árabe oryx, de 95, e o rinoceronte, de 53. Já pequenos roedores, de ciclo reprodutivo muito curto, exigem grupos maiores, de até 1 000 indivíduos.

Diversidade genética é a expressão que mais se ouve quando se discute preservação. Sem as diferenças hereditárias que fazem de cada indivíduo um ser distinto dos outros da espécie, não há esperança de vida a longo prazo, embora exista quem conteste essa afirmação. Populações geneticamente idênticas podem ser dizimadas por doenças. O que afeta um, afeta todos. Nessa situação, uma espécie é tão frágil quanto um time de basquete sem reservas: uma equipe assim não tem como repor jogadores exaustos, machucados ou expulsos, e qualquer imprevisto significa derrota.

Um coisa que os zoológicos podem fazer melhor que a natureza é justamente prover a diversidade na ausên-cia de grandes populações. Com exames de DNA, administradores de programas de procriação sacramentam acasalamentos que envolvem indivíduos sem parentesco, com o máximo possível de diferença genética.

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Às vezes, como no caso do antílope árabe oryx, isso é difícil. Os poucos remanescentes do grupo são parentes entre si. Além disso, entre os oryx, como manda a seleção natural, o macho mais forte fecunda quase todas as fêmeas. Em cativeiro, essa lei tende a ser mais drástica ainda e todos as crias acabam tendo um só pai e são, portanto, irmãs. “Para ampliar a variedade genética, fazemos com que todos os machos procriem, e todas as fêmeas tenham o mesmo número de filhos”, explica Georgina.

No subsolo do prédio onde Georgina trabalha, no entanto, há uma colônia de 300 roedores que desafia a lógica comum da diversidade. Pouco maiores que camundongos, cegos e sem pêlos, os ratos-toupeiras-pelados são uma espantosa anomalia entre os mamíferos. Eles vivem em comunidades subterrâneas e têm uma organização social igual à dos insetos. Há uma só fêmea fértil — a rainha — e dois machos viris. Os demais, machos e fêmeas, são operários assexuados, que trabalham na limpeza, alimentação e proteção dos filhotes da colônia. Todos irmãos, com a mesma herança genética. Como conseguem, então, sobreviver, já que a diversidade é totalmente estranha ao grupo? “Especialização”, responde Chris Falks, que estuda os bichinhos há cinco anos. “Eles são adaptados ao meio subterrâneo, que é protetor e estável”, explica o pesquisador. “Mas qualquer alteração no ambiente pode condenar seu futuro.”

Ratos-toupeiras são tão atípicos que, por si só, já justificam o interesse do Instituto de Zoologia londrino. Não que os pesquisadores estejam desesperados por novidades. Em meia hora de conversa com qualquer um deles, aprende-se logo que, no que diz respeito à reprodução, cada animal é diferente dos outros, tanto em termos biológicos como comportamentais.

Pegue-se o caso dos elefantes, objeto de estudo de Helen Shaw. Como não se conhece direito a fisiologia desses animais, Helen passou meses realizando testes químicos para determinar os períodos de fertilidade das fêmeas a partir das fezes. Ela não tinha idéia dos hormônios envolvidos e começou do zero. A pesquisa era importante porque elefantes têm apenas três ciclos reprodutivos por ano e é essencial detectá-los a tempo quando se quer preparar inseminação artificial. “Sabemos muito sobre a reprodução humana e quase nada sobre a de animais selvagens”, resume Helen.

No Zôo de Londres há um bom exemplo de acidente provocado por essa ignorância: uma fêmea de leopardo-nebuloso, que perdeu uma pata num namoro mal-sucedido no Zoológico de San Diego, nos Estados Unidos. Entre esses felinos asiáticos, o macho tem quase o dobro do tamanho da fêmea e — sabe-se agora — pode ser muito agressivo com ela. Não se conhece como é o acasalamento na selva, mas em cativeiro os animais agora ficam em “quarentena”: próximos, mas separados por grades até que o macho se familiarize com a companheira. “Hoje sabemos fazer a aproximação, mas na época do acidente, em 1986, fomos surpreendidos”, diz o veterinário Douglas Richardson, há dezessete anos envolvi-do com reprodução.

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Enquanto gente como Georgina teoriza e outros, como Helen, farejam hormônios, Richardson cuida para que as coisas “aconteçam” entre os animais. O que nem sempre é fácil. “Como as pessoas, eles às vezes não gostam um do outro, e não há quem os faça ir adiante.” Há pouco tempo, no Zôo de Londres, houve um caso desses. Ming-Ming, uma fêmea pan-da-gigante, não quer saber de Bao- Bao, seu candidato a consorte. Ming-Ming, a bem da verdade, deixou a China porque não queria nada com ninguém. Londres é sua última esperança de ser mãe. Mas a troca de ares e o namorado estrangeiro parecem não ter ajudado. “Ela é anti-social”, resume Richardson. “Vamos tentar agora a inseminação artificial.”

Nesse estágio, convocam-se os talentos de Bill Holt, especialista em preservação de sêmen e inseminação. Em seu laboratório, ele tem congelados a 196 graus negativos amostras de 30 espécies, entre elas orangotangos, papagaios e elefantes. Holt fala com desenvoltura em espermas ou impressionantes e diferentes volumes de ejaculação: o elefante ejacula 600 centímetros cúbicos, o porco 200, o boi 10, o leopardo 0,5.

Seu laboratório é uma verdadeira clínica da fertilidade. É dali que se esperam soluções técnicas que permitirão, no futuro, o congelamento permanente de óvulos e espermas, a forma mais segura e barata de garantir diversidade genética por longos períodos. “Cada tipo de esperma reage ao congelamento de forma diferente”, diz o cientista. “Alguns saem intactos, outros inutilizados.” Explicar e contornar essa dificuldade é parte de suas obrigações a longo prazo.

A curto prazo, ele cuida das inseminações e testes. Em março, Holt participou da coleta de sêmen de um leão asiático suspeito de ser estéril. Não era. Esses animais, dos quais há menos de 300 vivos, são iguais ao leão africano, mas comportam-se como tigres: os machos se isolam e caçam sozinhos, enquanto as fêmeas vivem em bando. Pe-la sua posição geográfica, eles podem ser o elo evolutivo entre o tigre e o leão africano. Há quatro deles em Londres, considerados preciosidades.

A rigor, aliás, não há animais sem valor entre as espécies ameaçadas. Tanto que já não se negociam mais esses bichos. Eles são emprestados de um zoológico para outro e sua reprodução visa elevar ao máximo a diversidade. Sarah Christie é a coordenadora, em Londres, de doze desses programas internacionais. “Os animais não se movem sem que eu saiba”, garante. Há pouco mais de dois meses, ela festejava o nascimento de um macaco-aranha-de-cara-vermelha, o primeiro dessa espécie sul-americana ameaçada nascido em Londres. Quando crescer, ele estará participando dos programas de intercâmbio de Sarah, cujo objetivo é assegurar que um dia os animais preservados em cativeiro sejam devolvidos à vida selvagem com o arsenal genético intacto, prontos para lutar pela sobrevivência. Feito a Arca de Noé, os zoológicos do presente sonham atracar no futuro exatamente como na narrativa bíblica: com carga suficiente para repovoar o mundo.

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Para saber mais:

O livro da vida, edição integral

(SUPER número 6, ano 2)

Toda a vida do mundo

(SUPER número 7, ano 4)

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Família unida

(SUPER número 12, ano 6)

A arte de enganar

(SUPER número 10, ano 7)

O ano novo da onça

(SUPER número 12, ano 8)

Veloz, vulnerável e teimoso

Nos últimos anos, o guepardo ganhou fama como um dos seres mais vulneráveis do mundo, que já não apresenta nenhuma diversidade genética em sua minguada população de 15 000 indivíduos. Recentemente, no entanto, a importância do gene diversificado para a sobrevivência foi contestada por dois pesquisadores do Zoológico de San Diego, nos Estados Unidos. Uma bomba que mereceu a primeira página do caderno de ciência do jornal New York Times. Embora reconheçam a ausência de variedade genética nesses felinos, para o dr. Donald G. Lindburg e seu parceiro, o imunologista Michael B. Worley, eles não estão inexoravelmente condenados.

Na opinião deles, ainda não se provou que modelos laboratoriais funcionem com animais selvagens. “Os cientistas pensam o guepardo como se fosse um ratinho de laboratório”, argumenta Lindburg, que não encontrou entre os guepardos as marcas típicas de degeneração genética: ninhadas com menos filhotes, infecundidade e defeitos congênitos. “Eles estão atacando preceitos científicos comprovados”, respondeu irritado o americano Stephen J. O‘Brien, maior autoridade mundial em estudos moleculares de espécies ameaçadas.

Foi O‘Brien quem, há dez anos, alertou o mundo para o problema, depois de uma série de transplantes de pele entre guepardos: a demora do sistema imunológico para reagir ao corpo estranho demonstrou que os animais eram praticamente clones um do outro. Para ele, a expansão do homem pelo mundo, após a última glaciação (10 000 anos), exterminou a espécie, ilhando-a em bolsões da África, onde passou a prevalecer o cruzamento entre parentes.

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