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No aniversário de 70 anos, o desejo da ONU é continuar fazendo sentido num mundo tão diferente daquele em que a organização nasceu

Por Luiz Romero
Atualizado em 31 out 2016, 19h00 - Publicado em 17 dez 2015, 14h45

Em 2012, um plano de paz foi criado pela ONU para encerrar a guerra civil síria, iniciada um ano antes. As exigências incluíam cessar-fogo, retiradas de tropas de centros urbanos e permissão para a entrada de ajuda humanitária. O acordo foi tocado pelo ex-secretário-geral Kofi Annan, aprovado pelas potências mundiais e até pelo ditador sírio Bashar al-Assad. Mas não durou: meses depois, governo e oposição quebraram o pacto e voltaram a guerrear.

Hoje, além dos mais de 200 mil mortos, foram um milhão de feridos e quase 8 milhões de refugiados. O desenvolvimento da Síria regrediu 40 anos, a expectativa de vida diminuiu 13, a presença escolar caiu pela metade, três quartos da população está vivendo na pobreza e a economia encolheu 40%. Esse triste episódio resume a crise que a ONU vive do alto dos seus 70 anos: por que ela não consegue interromper a briga na Síria e em outros países? Será que ainda é uma organização relevante para o mundo?

Voto ou veto?

Em 1920, os líderes das grandes potências se uniram para evitar outro conflito global como a 1ª Guerra, encerrada havia dois anos. Assim nasceu a Liga das Nações, primeira organização política planetária, criada para que os países pudessem dialogar antes de guerrear. Só que não deu liga: ao longo dos anos 1930, países insatisfeitos com os rumos da entidade, como Alemanha, Japão, Itália e Rússia, abandonaram o barco. Esvaziada de potências, a liga falhou em apaziguar as brigas que surgiam na Europa. Além disso, livres do compromisso de conversar de forma pacífica, os desertores protagonizaram a 2ª Guerra, que matou entre 50 e 85 milhões de pessoas.

E foi sob estes escombros que a ONU veio ao mundo, há 70 anos. Só que, dessa vez, se protegeu contra o abandono das grandes potências oferecendo a elas um (super) trunfo: o poder de veto, reservado aos cinco países que são membros permanentes do Conselho de Segurança, sediado em Nova York. O conselho é o órgão que executa a principal função da ONU: impedir ou interromper conflitos entre nações. O veto funciona assim: se algum membro permanente discorda de uma decisão do conselho, em vez de pular fora (e minar a credibilidade da entidade), pode bloquear e extinguir a decisão. Esse direito é reservado aos “vencedores” da 2ª Guerra: EUA, França, Reino Unido, China e União Soviética – os outros dez países que integram o conselho, membros temporários, não têm esse superpoder. Mas, ao mesmo tempo em que o poder de veto mantém a ONU em pé, acaba por minar muitas das tentativas de resolver conflitos. A ineficiência é, em parte, fruto das quedas de braço entre americanos, franceses, britânicos, chineses e russos, que tendem a usar os vetos para defender seus interesses e seus aliados, mesmo que isso signifique proteger um presidente que bombardeia seu povo.

Nos últimos cinco anos, a Rússia (muitas vezes, junto à China) impediu que o conselho condenasse o conflito na Síria – parceira estratégica no Oriente Médio. Em maio de 2014, o conselho votou uma decisão que poderia pôr Assad em julgamento no Tribunal Penal Internacional, ligado à ONU. A decisão foi vetada por Rússia e China e o conflito continuou. Assim como os russos defendem a Síria no conselho, dezenas de vetos americanos já favoreceram Israel. O último deles, em 2011, bloqueou uma decisão que condenaria assentamentos construídos em território palestino. Enquanto Rússia e EUA protegem aliados no Oriente Médio, os conflitos seguem na região.

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“Como não há confiança entre os governos, nenhum deles abre mão de interesses nacionais em troca de ganhos em nível internacional”, esclarece Jamil Chade, correspondente do jornal O Estado de S. Paulo em Genebra, na Suíça, onde fica uma das sedes da ONU.

Parlamento do mundo

“Apenas cinco nações terem posição privilegiada dentro da ONU parece absurdo”, declara o finlandês Jussi Hanhimäki, professor de história internacional no Instituto Superior de Genebra. “Se os cinco países concordam num caminho, o conselho pode agir. Se discordam, fica paralisado.” Entretanto, existe um outro departamento da ONU, também em Nova York, em que os 193 países afiliados, dos minúsculos às potências, têm voto igual: a Assembleia Geral, um parlamento da humanidade.

Mas, se o jogo é tão democrático, por que decisões que resolveriam a situação na Síria não são aprovadas? “As resoluções da assembleia não são mandatórias. Não tem como impor pela força, cobrar o cumprimento das decisões”, diz Antonio Patriota, ex-ministro de Relações Exteriores e representante do Brasil na ONU. Isso quer dizer que, mesmo que a assembleia puna uma nação, como fez com a África do Sul em 1962 pelo regime de segregação racial, a condenação é simbólica e pode ser que nada aconteça – o apartheid, no caso, ainda durou mais de 30 anos.

“Mesmo assim, eu não subestimaria o poder da assembleia, cuja força é a capacidade de reunir toda a comunidade internacional”, explica Patriota. Porque mesmo que nunca saiam do papel, as resoluções “podem transformar a realidade”, segundo o embaixador. Como aconteceu com a recomendação para que os EUA reatassem com Cuba, aprovada anualmente, ao longo dos últimos 20 anos, pela assembleia. Água mole em pedra dura, em dezembro de 2014 os presidentes Barack Obama e Raúl Castro anunciaram uma reaproximação mais a reabertura da embaixada americana em terras cubanas e vice-versa.

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Mas constrangimentos raramente resolvem crises humanitárias. Em 2012, mesmo com votos contrários da Rússia e de outros aliados da Síria, a assembleia aprovou uma condenação pesada ao conflito, que já incluía armas químicas, mísseis e bombas de fragmentação. Mas a guerra continuou e piorou.

Missão: Impossível

Em teoria, seria função do conselho impedir essa e outras guerras. Para fazer isso, o departamento age como negociador, conselheiro, investigador e juiz. Nos anos 1990, o órgão julgou o Iraque por invadir o Kuwait, a Líbia por cometer atos terroristas e a Iugoslávia por não interromper conflitos étnicos que mataram 140 mil. Como punição, entre outras sanções específicas, a Iugoslávia foi banida de eventos esportivos, voos vindos da Líbia foram impedidos de sobrevoar o espaço aéreo dos 193 países afiliados à ONU e o Iraque sofreu um boicote comercial – não podia importar ou exportar nada. O resultado dessas sanções, que servem para isolar uma nação do resto do planeta, podem ser devastadores: no Iraque, a média salarial caiu de US$ 3.500 para US$ 500 e a mortalidade infantil duplicou. Mas, quando as sanções não funcionam, a outra opção do conselho é pegar em armas. O que não é garantia de paz e resolução de conflitos. Além dos entraves causados pelo poder de veto, Hanhimäki sugere que o conselho não consegue impor suas decisões por não ter uma força militar própria.

Planos para um exército “da paz” existem desde a fundação da ONU, em 1945. Essas forças armadas especiais teriam bases pelo mundo, com soldados providos pelos filiados para intervir em conflitos assim que começassem. “Uma ideia ambiciosa, que poderia ter transformado a natureza da política internacional”, escreve o historiador britânico Paul Kennedy em seu livro Parlamento do Homem, sobre a história da ONU. Mais uma vez, a ideia não foi para o front por causa de americanos e russos – a Guerra Fria impedia a colaboração entre EUA e União Soviética, as potências do pós-guerra. Além disso, a ONU não podia contar com a Europa, destruída depois da 2ª Guerra, para enviar soldados. Desarmadas, as Nações Unidas tomam exércitos emprestados, como o Exército do Brasil, que está no Haiti desde 2004 em nome do conselho. Mas a ONU também trabalha longe das trincheiras.

O preço da paz

Para complementar a missão do conselho evitando conflitos, surgiram órgãos para manter a estabilidade econômica e social dos países-membros: Unicef, Unesco, Organização Mundial da Saúde (OMS) e Fundo Monetário Internacional (FMI), entre outros. O diplomata brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro destaca o trabalho da Agência para Refugiados. Esse braço da ONU tem 9,3 mil funcionários em 123 países, acolhendo quem deixa suas casas devido a conflitos. Atualmente, a agência, vencedora do Nobel da Paz em 1954 e 1981, cuida de 14,4 milhões de pessoas em campos de refugiados.

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É por trabalhos como esse que a ONU continua essencial. Mas especialistas apontam que esta senhora de 70 anos precisa de reformas. Enquanto o conselho se distrai com brigas políticas, multidões de refugiados fogem da Síria diariamente. “O problema é passado do conselho, que não atinge um consenso, para o braço humanitário da ONU”, diz Chade. Além dessa falta de atitude, a própria estrutura do conselho precisa ser atualizada. O mundo mudou muito desde 1945. Novas potências ganharam relevância (incluindo a então derrotada Alemanha, que nem membro permanente é) e o órgão não atualizou a lista de privilegiados. “É consenso que a composição do conselho não representa o cenário internacional”, explica Patriota.

Uma outra reforma refere-se à filiação dos países. No livro Tower of Babble (“torre da baboseira”, um trocadilho com Torre de Babel), o ex-embaixador israelense Dore Gold critica a inclusão de membros com governos totalitários, que agridem suas populações e atacam outras nações. Mas banir todos esses países esvaziaria a entidade: entre os 167 países avaliados pelo Índice Democrático, compilado pelo grupo que publica a revista britânica The Economist, só 76 são democracias.

Outra crítica, feita em 2005 pelo então secretário-geral Kofi Annan, diz respeito à amplitude de assuntos tratados pela assembleia – de tráfico de animais selvagens ao direito à privacidade em tempos digitais. A sugestão de Annan é que o órgão se concentre em assuntos de grande relevância. Entre todas essas mudanças, focar em manter a segurança do planeta talvez seja o mais importante. “Enquanto o pilar de segurança não funciona, é difícil dizer que a organização cumpre seu papel”, diz Chade. A solução, no entanto, envolve mais do que reformas: especialistas concordam que a ONU funciona como espelho do mundo. Ou seja, não funciona se a comunidade internacional está desunida.

Monstro burocrático

A ONU começou com 300 empregados. Hoje, tem dezenas de milhares. O trabalho se concentra em Genebra e Nova York, mas também há escritórios em Viena, Santiago, Addis Ababa, Bangkok, Nairobi e outras cidades. Apenas em Genebra, um ano de trabalho rende 10 mil reuniões e 220 mil páginas de documentos.

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Com tanta repartição, idiomas – são seis línguas oficiais -, funcionários e sedes, alguns departamentos perdem tempo com trabalho dobrado. Um brasileiro exportando para a Europa, por exemplo, pode ter que seguir regulações de quatro entidades: Comissão Econômica Europeia, OMS, Programa da ONU para o Meio Ambiente e Organização para Alimentação e Agricultura. Segundo Chade, “as burocracias de todos os países se cristalizam na ONU”, resultando numa organização “pesada, lenta e ineficiente”. Essa lentidão pode resultar em tragédias. Não raro, há demora para agir e ineficiência diante de crises. Nos anos 1990, isso ocorreu no massacre em Ruanda, que deixou 800 mil mortos apesar de haver uma missão da ONU no país. Mais recentemente, na epidemia de ebola, entre 2013 e 2014, a reação demorou meses. Por essas e outras, desde 2005, a ONU tenta otimizar a ajuda humanitária, inclusive centralizando a fonte de dinheiro para países em necessidade. Isso porque, com verbas saindo de vários órgãos, é fácil desviar. “A ONU está consciente de que os departamentos precisam se integrar para evitar sobreposições de trabalho e para diminuir gastos”, comenta Pinheiro. Enquanto isso, a organização fundada para manter o planeta em paz completa sete décadas sem clima para comemorações, já que várias guerras também fazem aniversário pelo mundo: um ano na Líbia e na Ucrânia, três na República Centro-Africana e quatro na Síria.

5 reformas polêmicas

Ex-funcionários e representantes das Nações Unidas sugerem reformulações drásticas na entidade. Veja aqui embaixo:

Um novo conselho
Os membros permanentes são os mesmos há 70 anos, desde a fundação. De lá para cá, o mundo mudou muito e países como Japão e Alemanha ganharam relevância e ainda estão fora do clube. Só que a inclusão teria que ser aprovada por dois terços da assembleia – essa é a parte fácil – e depois passar pelo próprio conselho, sem veto.

Fim do poder de Veto
EUA, Rússia, França, Reino unido e China teriam poder reduzido no conselho. As propostas variam desde limitação do veto a assuntos específicos até necessidade de dois países vetando para ele valer. A mais radical é a abolição do veto. Mas os membros permanentes dificilmente aprovariam essa perda de poder.

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Assembleia focada
O ex-secretário-geral Kofi Annan sugere mais foco para os assuntos debatidos pelo parlamento da ONU. O órgão cobre temas demais, de proteção a crianças contra o bullying a efeitos da radiação nuclear, passando pelos direitos das nações indígenas. A proposta é que a assembleia restrinja a pauta aos temas mais relevantes.

Menos afiliados
O ex-embaixador de Israel na ONU, Dore Gold, defende que governos totalitários, como o da Coreia do Norte, não deviam ser aceitos como afiliados. Mas a ONU ficaria vazia: de acordo com o Índice Democrático, que avaliou 167 países, 76 são democracias – os outros 91 são misturas de democracia e ditadura ou regimes opressores completos.

Fim da Burocracia
São Tantos departamentos que pode haver esforços e gastos duplicados na mesma direção. Desde 2005, a ONU tenta corrigir ineficiências na ajuda humanitária, incluindo a centralização do envio de dinheiro a países em necessidade. Verbas saindo de vários órgãos (como fundos para desenvolvimento, refugiados e crianças) facilitam desvio

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