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Tem uma esponja aqui dentro

No subsolo da América do Sul há um imenso reservatório de água pura, com mais líquido do que o existente em todos os rios do mundo. Essa fonte valiosa precisa ser protegida para servir ao futuro.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 19h00 - Publicado em 30 jun 1999, 22h00

Denis Russo Burgierman, de Araraquara

Não parece, mas a pequena pedreira nos arredores da cidade de Araraquara, no interior do Estado de São Paulo, é bem mais do que uma jazida de arenito para a fabricação de lajotas. O chão poeirento é um afloramento – uma porta através da qual a chuva é absorvida terra adentro para formar, lá embaixo, o maior reservatório de água do planeta: o Aqüífero Guarani.

Não se trata exatamente de um mar subterrâneo, ou de um lago, mas sim de uma vasta camada de pedra porosa encharcada de água – uma espécie de esponja rochosa. A pedreira é uma ponta dessa massa. Com uma área maior que a da França, Espanha e Portugal juntos, e uma profundidade entre 50 e 1 500 metros, o aqüífero contém 50 quatrilhões de litros de uma das águas mais puras do planeta. O suficiente para abastecer a população do mundo inteiro por uma década. Para se ter uma idéia do exagero, por todos os rios do globo correm, ao longo de um ano, 43 quatrilhões de litros.

Só que essa preciosidade pode estar sendo contaminada pelos agrotóxicos aplicados nas lavouras. Por isso, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) começou a mapear todas as lavouras existentes sobre o reservatório no território brasileiro e nas nações vizinhas. “Se os riscos forem grandes, algumas áreas poderão até ser proibidas à agricultura”, afirma o geólogo Marco Antônio Ferreira Gomes, chefe do projeto. A reserva tem de ser preservada.

Dinossauros tomaram banho aqui

Quando você aperta um pedaço de arenito na mão, ele se esfarela. Resta só uma poeira fina feito talco. Uma olhada pelo microscópio explica por quê. A rocha é areia compactada e seus grãos são redondos, sem as quinas naturais da areia das praias. Por isso, escorregam fácil. “Imagine uma caixa cheia de bolinhas de gude”, compara o geólogo aposentado Fernando Almeida, de 83 anos, um dos pioneiros no estudo do Guarani, na década de 50. “As esferas são os grãos e o espaço entre elas, os poros do arenito.”

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É exatamente porque esses poros existem que o aqüífero tem tamanho poder de absorção. A água que entra escorre lentamente e permanece lá no fundo por eras e mais eras, até vazar para os rios. Nas partes mais fundas, que estão 1 500 metros abaixo da superfície, o líquido acumulado chega a ter mais de 100 milhões de anos – o que significa que, antes de mergulhar na terra, banhou os dinossauros da região de Araraquara.

Essa esponja natural só existe porque, um dia, a região foi um deserto. “Há 200 milhões de anos, não havia um pingo de água lá”, conta Almeida. “Toda a área era ocupada por dunas castigadas pelos ventos, como o Saara de hoje.” Foram justamente os ventos desse deserto que empurraram os cristais de areia, fazendo com que eles se chocassem entre si e se lapidassem até ficarem redondos. Mais tarde, o areal foi sepultado por lava lançada em sucessivas erupções vulcânicas, num dos maiores eventos geológicos da história do planeta. A lava secou, virou basalto, e os grãos de areia esmagados sob a pesada lápide se agregaram. Sobraram apenas alguns afloramentos, como a pedreira de Araraquara, por onde o líquido entra (veja o quadro na página ao lado).

Os mesmos locais por onde o aqüífero é alimentado pelas chuvas podem servir de entrada para poluentes clandestinos. “Esses pontos devem ser protegidos”, diz Ferreira Gomes. Felizmente, “as partes do Guarani mais profundas e mais distantes dos afloramentos estão seguras”, garante o hidrogeólogo Aldo Rebouças, da Universidade de São Paulo. Antes de conseguir descer 100 metros de rocha, os agrotóxicos se degradam e perdem o poder de veneno. “Mas precisamos saber o que pode acontecer em quarenta ou cinqüenta anos”, adverte Ferreira Gomes. Essa água pode ser preciosa no futuro.

Esponja de pedra

Veja como o arenito tem alto poder de absorção.

A SUPER recolheu este pedaço de arenito do afloramento em Araraquara, interior de São Paulo. Repare como, mergulhada num pote, ela chupa quase toda a água. É assim com a chuva.

Como usar bem para usar sempre

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O incrível é que, reconstituída pelas chuvas, a reserva não vai jamais secar. “O volume absorvido em um ano daria para abastecer trinta vezes os 15 milhões de cidadãos que moram sobre o Guarani”, vibra o geólogo Gerôncio Albuquerque Rocha, do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo (DAEE).

Por ora, pouca gente se beneficia desse dilúvio natural. Existem 15 000 poços artesianos cavados em todo o aqüífero. É pouco, se comparado com as 7 000 perfurações existentes só na cidade de São Paulo. De todos os municípios que estão sobre ele, apenas um com mais de 500 000 habitantes utiliza exclusivamente a água do Guarani: Ribeirão Preto (SP).

Não é à toa que seus moradores se gabam de produzir uma das melhores cervejas do Brasil. A vantagem são os jorros do aqüífero, tão puros que dispensam qualquer tratamento à base de produtos químicos. Neles não existem bactérias, simplesmente porque elas não têm nada para comer lá embaixo. Isolado do restante do solo pela rocha arenosa, nem sais minerais o líquido tem. Enquanto a água tratada que você bebe tem, em média, 1 grama de sais por litro, 1 litro do manancial profundo tem no máximo 200 miligramas – um quinto do normal.

Em outros lugares, o depósito é fonte de lazer. As cidades de Salto, no Uruguai, Francisco Beltrão, no Paraná, e Araçatuba, em São Paulo, abriram poços com mais de 1 000 metros de profundidade para encher piscinas quentes de balneários. Até os lavradores das zonas ameaçadas de desertificação, como o oeste do Rio Grande do Sul e o cerrado goiano, podem usufruir do aqüífero. “Ali, onde os rios estão lentamente secando, vítimas das agressões ao ambiente, os poços poderão garantir safras maiores”, sonha Ferreira Gomes, da Embrapa.

Ah, em tempo: a água de Araraquara, que também sai do Guarani, é realmente deliciosa. A SUPER foi lá, bebeu e aprovou. “Sob o perímetro urbano, temos o suficiente para mais de 500 anos de abastecimento”, conta José Luiz Galvão de Mendonça, geólogo do DAEE local. A não ser, é claro, que o reservatório seja carregado de agrotóxicos.

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Para saber mais

O Grande Manancial do Cone Sul, Gerôncio Albuquerque Rocha, Revista Estudos Avançados, volume 30. Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1997.

Balanço do desequilíbrio

O desperdício de quem tem demais.

Uns com tanto, outros com tão pouco. No planeta, 97,3% da água está nos oceanos, 2% nas calotas polares e no vapor d’água da atmosfera, inacessíveis, e os 0,7% restante nos rios, lagos e aquíferos que nos abastecem. Enquanto os povos do Oriente Médio penam por algumas gotas, o brasileiro tem 20% do total de volume de água disponível na Terra. E não corre o risco de esgotamento. Isto é, desde que o Brasil adquira a competência necessária para preservar suas fontes murmurantes e aprenda a manejar a abundância com parcimônia. O nosso desperdício chega a ser criminoso: na Região Sudeste, as companhias de abastecimento perdem em média 30% da água já tratada em vazamentos. No Nordeste, a perda chega a 60%!“Se isso não mudar, pode haver muita água no país, mas um dia vai faltar na torneira”, diz o geólogo Aldo Rebouças.

Mercosul molhado

O Aqüífero Guarani ocupa uma área maior que a da França, Espanha e Portugal juntos.

O manto de rocha porosa embebida em água tem 1,3 milhão de metros quadrados. Ela corre por baixo de oito Estados brasileiros e mais três nações vizinhas: Paraguai, Uruguai e Argentina.

Uma bacia cheia e gigantesca

Empurrado pelo peso das rochas vulcânicas, o centro do aqüífero afundou.

Além do Guarani, sob a superfície de São Paulo, há outro reservatório, chamado Aqüífero Bauru, que se formou mais tarde. Ele é muito menor, mas tem capacidade suficiente para suprir as necessidades de fazendas e pequenas cidades.

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O líquido escorre muito devagar pelos poros da pedra e leva décadas para caminhar algumas centenas de metros. Enquanto desce, ele é filtrado. Quando chega aqui está limpinho.

Nas margens do aqüífero, a erosão expõe pedaços do arenito. São os chamados afloramentos. É por aqui que a chuva entra e também por onde a contaminação pode acontecer.

A cada 100 metros de profundidade, a temperatura do solo sobe 3 graus Celsius. Assim, a água lá do fundo fica aquecida. Neste ponto ela está a 50 graus.

De deserto a oceano

Foi assim que o Guarani se formou.

200 milhões de anos atrás

A região era um imenso areal, com 2 milhões de quilômetros quadrados. Na época, América do Sul e África eram um só continente.

130 milhões de anos atrás

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Quando nos soltamos da África, abriram-se fissuras no chão por onde subiu muita lava. Ela recobriu e compactou a areia até formar a rocha arenito.

120 milhões de anos atrás

A lava endureceu e virou a rocha basalto, cujo manto chega a ter 1 quilômetro de espessura em alguns pontos. Ele começou a afundar a crosta terrestre.

Hoje

O arenito está espremido debaixo do basalto. Só as bordas, corroídas pela erosão, aparecem na superfície, na forma de afloramentos. É por eles que a água da chuva entra.

Uma reserva para o futuro

Receita para utilizar e proteger a bênção fluida.

Afloramentos

Para impedir a contaminação pelo derrame de agrotóxicos, um dia a agricultura que utiliza fertilizantes e pesticidas poderá ser proibida nestas regiões.

Aquecimento

Em regiões onde o aqüífero é profundo, as fazendas poderão aproveitar a água naturalmente quente para combater geadas. Ou para reduzir o consumo de energia elétrica em chuveiros e aquecedores.

Irrigação

Usar água tão boa para regar plantas é um desperdício. Mas, segundo os geólogos, essa pode ser a única solução para a lavoura em áreas em risco de desertificação, como o sul de Goiás e o oeste do Rio Grande do Sul.

Aqueduto

Transportar líquido a grandes distâncias é caro e acarreta perdas imensas por vazamento. Mas, para a cidade de São Paulo, que despeja 90% do seu esgoto nos rios, sem tratamento nenhum, o Guarani poderá, um dia, ser a única fonte.

Invasão das profundezas

Veja como os poços artesianos são construídos e como devem ser protegidos para não poluírem o reservatório subterrâneo.

A boca do poço deve ser tampada. Isso evita contaminação por cima, em caso de enchente.

O revestimento das paredes, feito de metal, não dura mais que trinta anos. Depois disso, o poço é abandonado. Mas, antes, deve ser vedado.

A parte mais difícil é perfurar o duro basalto. Abrir um buraco de cerca de 1 000 metros de profundidade, com brocas de aço, exige quase um ano de trabalho.

Ao longo do duto são instalados filtros para retirar grãos de areia que por acaso escapem da rocha. Quanto mais fundo o poço entrar no arenito, maior será a vazão d’água.

O peso da camada de basalto que está sobre a esponja subterrânea é tão grande que o líquido é espremido para cima. Quando se cava um poço, a água pode jorrar até sem a ajuda de bombas.

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