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Um cemitério para o lixo atômico

Falta um lugar seguro para manter longe do homem os resíduos das usinas nucleares. É uma questão de vida ou morte: eles podem continuar radioativos durante milhões de anos.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h58 - Publicado em 31 ago 1990, 22h00

Lúcia Helena de Oliveira

Dentro de uma piscina cheia de água, numa ins-talação anexa à usina nu-clear Angra I, no litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, 15 toneladas de resíduos radioativos—o lixo venenoso que resulta da própria operação do rea-tor—repousam em tambores blinda-dos. Parece muito, mas é uma insig-nificância perto das 20 000 toneladas produzidas pelos reatores nucleares em funcionamento nos Estados Unidos, armazenados em tanques semelhantes. Essa, porém, é a única diferença. Por- que, no mundo inteiro, os cientistas nu-cleares enfrentam há muito tempo o mesmo desafio: encontrar quanto antes uma maneira definitiva de dispor do li-xo atômico, principalmente do chama-do material de alta atividade, proveniente do reprocessamento de elementos combustíveis, capaz de emitir radiações letais para os seres vivos durante milha-res ou até milhões de anos—uma eter-nidade, para todos os efeitos práticos. O fato de não se ter encontrado ainda a solução dessa charada, 36 anos depois da entrada em funcionamento da pri-meira usina nuclear destinada à produ-ção de eletricidade, na União Soviética, é um dos dois principais motivos pelos quais muita gente gostaria de banir tais reatores da face da Terra; o outro é o eterno risco de tragédias, como a da usina de Chernobyl, também na URSS, em 1986. Sendo pouquíssimo provável que os homens decidam dispensar os benefícios do uso pacífico da fissão nuclear—para não falar dos fins mili-tares—, os cientistas correm atrás, senão da fórmula ideal, ao menos de uma solução satisfatória para o problema do lixo. Até porque, mesmo se fosse possível aposentar por um passe de mágica os 431 reatores comerciais ligados no mundo, seus resíduos não se evaporariam. E há 123 outras usinas em construção e 37 em fase de projeto.

Nos reatores movidos a urânio, um átomo desse elemento é bombardeado por nêutrons. Seu núcleo então se divide, liberando enorme quantidade de energia, raios gama e mais dois ou três nêutrons que irão bombardear outro átomo e assim por diante. Dessa reação em cadeia brotam novas substâncias radioativas, como o plutônio, que serve para fazer bombas ou para alimentar outros tipos de reatores, e não existe na natureza. O processo gera ao todo mais de 1 000 substâncias altamente radioativas. O que não é reaproveitado no próprio reator ou para outras finalidades é o lixo atômico.

A piscina em Angra I foi projetada para acolher resíduos formados em oito anos de operação. Mas, na realidade, as 15 toneladas ali depositadas equivalem a um ano de funcionamento da usina brasileira, inaugurada em 1982. Mais lixo não se formou pela simples razão de que a usina ficou fora do ar a maior parte do tempo por causa dos intermitentes defeitos que acabaram lhe valendo o apelido vagalume, que acende e apaga, acende e apaga. “Sobra espaço na piscina, mas não devemos esperar sua capacidade se esgotar para então agir”, recomenda o físico carioca Luís Pinguelli Rosa, que integra a comissão organizada na Sociedade Brasileira de Física para estudar o assunto. Pinguelli é um dos maiores incentivadores da idéia de que o governo junte em volta de uma mesa os melhores nomes do ramo para que digam o que se pode fazer a respeito—e logo.

Os cientistas têm recomendado uma variedade de alternativas. Na França, por exemplo, 20 mil metros cúbicos de lixo radioativo estão aprisionados nos armazéns de concreto da instalação nuclear de La Hague, no noroeste do país, aguardando destino definitivo. Com planos de enterrar o material de grande radioatividade, os pesquisadores franceses investigam quatro tipos de sepulturas: solos de xisto, de sal, de granito e de argila. Mesmo que uma dessas formações rochosas tenha as características ideais—algo que será confirmado apenas em 1997—, o túmulo adequado só ficaria pronto dez anos depois. Enquanto isso, as centrais nucleares francesas, responsáveis por 70% da eletricidade gerada no país, lançam cerca de 40 metros cúbicos por ano de material radioativo, ou de radiação ionizante, como dizem os cientistas. “O Brasil não está numa situação melhor, porque aqui nem se decidiu onde depositar os rejeitos de baixa atividade”, critica Pinguelli.

De fato, 98% do lixo radioativo brasileiro compõe-se de rejeitos que precisam ficar isolados do contato humano durante dois ou três séculos apenas. Isso por causa do fenômeno que os físicos chamam meia-vida: o tempo necessário para que a radioatividade de uma substância caia pela metade. O césio- 137, por exemplo, material usado em equipamentos de radioterapia e que contaminou uma série de pessoas em Goiânia, em 1987, tem uma meia vida de trinta anos. Ou seja, passado esse período, restará metade da radiação inicial: depois de mais trinta anos, um quarto; após outros trinta, um oitavo; e assim por diante. Além de provir de aparelhos desativados, que mexeram com material nuclear, e da água usada para controlar a temperatura nos reatores—que tende a ficar contaminada por partículas radioativas—, o lixo de baixa e média atividade é também engordado por materiais comuns, como luvas e aventais, usados na manipulação de substâncias radioativas.

Segundo o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), do governo federal, cerca de 10 000 brasileiros lidam diariamente com elementos radioativos. “Basta que uma gota dessas substâncias respingue na roupa e o tecido passa a ser pequena fonte de radiação”, informa a física chinesa, naturalizada brasileira, Cecil Chow Robilotta, da USP. Segundo ela, embora a energia nuclear seja cada vez mais usada pela Medicina para diagnosticar ou tratar doenças, a tendência é diminuir o volume do lixo radioativo dos hospitais. “Os novos exames clínicos usam substâncias que emitem radiação durante um curto período, como o tecnécio-99m, cuja meia-vida é de seis horas apenas”, explica Cecil, dentro da “sala quente” do Instituto do Coracão em São Paulo, onde assessora médicos no serviço de radioisótopos. Ali, cestos de lixo revestidos de chumbo e tambores de resfriamento guardam material contaminado—aventais, seringas, pinças, chumaços de algodão—em processo natural de decaimento, a diminuição gradativa da radioatividade.

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Quando a meia-vida é maior, porém, os rejeitos tanto de hospitais como de indústrias seguem para armazéns especiais. No Estado de São Paulo, o depósito fica na Cidade Universitária, na zona oeste da capital, no lugar onde funciona o IPEN. Ali se acumulavam, até o último mês de julho, 104,9 toneladas de lixo, distribuído em 615 tambores. Antes de ser armazenado, esse volume passou por um ritual, praticamente idêntico nos centros de tratamento de rejeitos radioativos do mundo inteiro. “O primeiro passo se assemelha a uma triagem, para extrair os resíduos, ou seja, a parte do lixo que ainda pode ser aproveitada”, descreve o físico nuclear Achilles Suarez, responsável pela equipe que pesquisa rejeitos radioativos no IPEN. “As bombas de césio-137, quando não se prestam mais para tratar tumores, ainda podem ser aproveitadas em aparelhos de gamagrafia, que servem para fazer diagnósticos”, exemplifica.

A conseqüência mais óbvia dessa, reciclagem é que o volume do lixo diminui. Também para reduzir o volume, aquilo que de fato é rejeito deve ser ainda compactado, sempre que possível. “Não faz sentido guardar 1 litro inteiro de água, se apenas poucos mililitros estão contaminados”, argumenta ele. “Por isso, criamos uma espécie de concentrado radioativo.” O fluído em seguida é misturado a algum tipo de sólido, como cimento ou betume, para evitar toda e qualquer dispersão durante a manipulação do material. Em outros locais, os rejeitos líquidos de alta atividade são transformados em vidro, também para impedir derramamentos. Quando o rejeito é sólido, muitas vezes é possível prensá-lo. Assim. um tambor com 0,5 metro de altura, recheado de lixo atômico, termina compactado numa pastilha de cerca de 10 centímetros de altura.

Quando Achilles Suarez entrou na faculdade, em 1957, um veterano pendurou-lhe no pescoço um cartaz: “Hoje, estudante de Física, amanhã l ixo atômico”. O trote foi profético: depois de ter trabalhado mais de dezesseis anos na área de proteção radiológica do próprio IPEN, o físico acabou assumindo o setor de rejeitos em 1983. No fundo, as duas áreas têm a mesma finalidade: interpor o maior número possível de barreiras entre a fonte de radiação e o homem; A rigor, qualquer corpo serve de obstáculo para a radiação —o problema é que, conforme a fonte radioativa, o obstáculo pode se tornar menos ou mais eficiente. Quando, na reação de fissão, um átomo é bombardeado até romper o núcleo, a energia pode ser liberada por quatro tipos de radiação —alfa, beta, gama e ainda de nêutrons —que devem ser bloqueados por materiais com características diferentes. “Se o lixo for enterrado sem maiores informações sobre a sua radiação, poderá no futuro distante ficar sob os pés de quem não terá a devida noção do perigo”, imagina o físico Giorgio Moscatti, da USP.

Os cientistas do setor se preocupam não só com qual seria o melhor cemitério para o lixo atômico, mas também com a necessidade de ser ele mantido sob controle constante. Por isso, não apreciam particularmente a alternativa clássica de jogar os rejeitos no mar. “Nunca se saberá direito como a embalagem estará resistindo debaixo drsquo;água, nem se poderá ter certeza de que os tambores não acabarão flutuando até alcançar uma praia”, adverte o físico Vito Vanin, da USP. O mar, na verdade, foi o primeiro lixão radioativo: o Mediterrâneo recebeu 50 toneladas de rejeitos produzidos na Itália; as águas do Atlântico engoliram nada menos de 126 000 toneladas de tambores repletos de lixo dos reatores de seis outros países europeus. Os Estados Unidos despejaram no Oceano Pacífico 370 metros cúbicos (os países nem sempre adotam as mesmas unidades de medida) de material radioativo. A título de comparação, uma piscina olímpica tem 1890 metros cúbicos.

O empesteamento só cessou em 1986, quando um acordo internacional determinou que o mar só poderia ser usado quando ficasse provado que a água é capaz de diluir os elementos radioativos, sem prejuízo para a fauna e a flora marítimas. O estudo a respeito, a cargo de pesquisadores americanos, ingleses e japoneses, deverá estar pronto no início do próximo ano. É claro que o terreno ideal para a construção de um depósito subterrâneo de lixo atômico precisa ser estável—um terremoto seria capaz de rasgar os tambores recheados de matéria radioativa. Mas a impermeabilidade da rocha é ainda mais importante. Caso partículas ionizantes escapem pela embalagem do lixo, elas podem levar até 1 milhão de anos para alcançar a superfície. Já um lençol de água poderia trazer o mal à tona em alguns meses, abrindo-lhe as portas para a cadeia alimentar dos seres vivos.

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“O sal é extremamente impermeável, por isso os alemães fazem bem ao depositar o lixo em minas de sal desativadas. Só que a rocha é muito plástica e talvez não suporte pesos grandes”, pondera o geólogo gaúcho Gérson Dornelles, que organiza na Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) a busca de um solo adequado para enterrar o lixo nuclear brasileiro.”O granito, muito mais resistente, tem a desvantagem de possuir fissuras que facilitam o escoamento de água.”

A CNEN já apontou duzentas áreas de interesse para depósitos de lixo de baixa e média atividade no país. A maioria se localiza em solos argilosos, com camadas horizontais que dificultam a migração de partículas radioativas rumo à superfície, como em São Fidélis, no Rio de Janeiro, e Trindade, em Goiás. A decisão, quando vier, terá provavelmente a forma de uma lei votada pelo Congresso a partir de um projeto encaminhado pelo Executivo. Está prevista para este mês a entrega à Presidência da República de uma avaliação, elaborada por uma equipe da Secretaria Especial do Meio Ambiente, de projetos já existentes sobre rejeitos radioativos, como o de autoria do governo anterior, de junho de 1989, que já recebeu dois pareceres negativos de comissões da Câmara dos Deputados. Enquanto isso, em tambores deixados a céu aberto, cobertos precariamente e que já começam a se estragar pela corrosão, 3 460 metros cúbicos de lixo atômico aguardavam há três anos em Abadia, a 20 quilômetros de Goiânia, a decisão de Brasília sobre o seu destino.

Esse lixo se originou em um ferrovelho, quando foi violada uma cápsula de césio-137 de não mais de 3 centímetros cúbicos—o tamanho de uma borracha de lápis—, matando quatro pessoas e contaminando mais de duzentas outras. “É preciso criar um depósito, que eu chamaria de intermediário, para abrigar os rejeitos gerados em acidentes como o de Goiânia”, alerta o físico José Goldemberg, secretário de Ciência e Tecnologia do governo federal. “Na época do acidente, cientistas sugeriram levar os rejeitos para a Serra do Cachimbo, no Pará, onde já existem buracos de 300 metros de profundidade, recobertos de concreto. Seria a solução perfeita”, lembra ele. “Mas um grupo de índios fez uma manifestação diante do Palácio do Planalto e o governo resolveu voltar atrás. Um absurdo. Enterrado ali, o lixo não ofereceria nenhum risco.”

Para saber mais:

A sujeira nossa de cada dia

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(SUPER número 7, ano 7)

Agentes da desordem

No organismo humano, a cada minuto, cerca de

250 000 átomos se desintegram, emitindo radiação. Além disso, uma pessoa recebe do ambiente uma média de 100 milirems (mR) por ano— rem (de Roentgen equivalent man) é a unidade usada para medir a dose de radioatividade absorvida pelo homem. Uma chapa de pulmão expõe o paciente, em média, a 17mR. Nas células, a radiação produz os chamados radicais livres, moléculas que tumultuam as funções orgânicas, ao reagir com tudo que encontram pela frente. A energia da radioatividade também pode perturbar o DNA, a molécula da hereditariedade, que programa o trabalho das células.

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Estas, então, correm o risco de se tornarem cancerosas ou, no caso da célula sexual, de transmitir anomalias aos descendentes. De modo geral o organismo lida satisfatoriamente com esses agentes da desordem. “Já nos acidentes atômicos, a enorme radiação provoca mais estragos do que o organismo consegue corrigir”, explica a física paulista Emico Okuno, da Universidade de São Paulo. Quando esse material radioativo penetra no organismo, causa nas células estragos 25 vezes maiores e transforma a própria vítima em fonte de radiação.

Barreiras sob medida

As embalagens para lixo atômico combinam materiais diferentes porque existem radiações e radiações. Um núcleo radioativo está sobrecarregado de energia, da qual tenta se livrar, emitindo, por exemplo, partículas idêntica ao núcleo do gás hélio constituído por dois prótons e formam as partículas alfa. São tão pesadas que se deslocam em linha reta, trombando com a primeira molécula que encontrarem pela frente: assim, uma folha de papel ou mesmo uma peça de roupa podem barrá-las. Mas, para liberar energia, o átomo também pode emitir elétrons. É a radiação beta. Bem mais leves, os elétrons caminham zanzando e se desviam de eventuais obstáculos: para barrar os raios beta é preciso, no mínimo, uma folha de alumínio; na pele, dependendo da energia, eles penetram até 0,5 centímetro.

Em busca da estabilidade, um átomo emite ainda ondas eletromagnéticas um milhão de vezes mais energéticas do que a luz, os raios gama, capazes de atravessar o corpo humano; apenas materiais muito densos, como aço e chumbo, conseguem segurá-los. Finalmente, existem os nêutrons. Embora muito penetrantes, reagem com materiais ricos em hidrogênio, sendo barrados pela água, pela parafina ou pela grafite.

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Os lixões de cada um

Como vários países tentam livrar-se dos resíduos de suas instalações nucleares:

Estados Unidos – Até 1982, os rejeitos eram depositados na superfície ou jogados ao mar. Em 1983, o lixo de alta atividade foi levado para uma mina de sal no Estado do Novo México, desativada em seguida por falta de segurança. Hoje esse material está guardado no deserto de Nevada, enquanto 600 000 metros cúbicos de rejeitos de meia-vida curta se encontram espalhados por diversos depósitos.

União Soviética – Existem 35 depósitos superficiais de cimento revestido com chumbo.

Inglaterra – Desde 1986, com a proibição de lançar o lixo ao mar, procura-se um lugar para enterrar o lixo de alta atividade. Para os rejeitos de baixa atividade, construíram-se depósitos de cimento próximos a usina nuclear de Windscale Sellafield, no nordeste do país.

França – Todo o lixo está nos armazéns da usina de La Hague, no noroeste do país; estuda-se o solo de quatro regiões para construir até 2007 um depósito de grande profundidade.

Alemanha – O material de alta atividade é tratado na França e depois transportado para minas de sal no norte do país. Só os rejeitos da usina nuclear de Niederaichbach, desativada em 1983, foram enterrados a 1 200 metros de profundidade, numa mina de ferro desativada.

Suécia – Em 1988, inaugurou o primeiro depositário subterrâneo do mundo, a 140 quilômetros de Estocolmo, um conjunto de câmaras construídas em rochas de granito, com paredes revestidas de cimento e chumbo.

Japão – No ano passado, cientistas começaram a estudar a possibilidade de construir depósitos no fundo do mar, aproveitando o fato de que os sedimentos marinhos são muito pouco permeáveis.

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