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Uma fazenda no fim do mundo

De invernos brutais à pressão por mais tecnologia, acompanhamos o dia a dia de um camponês que luta para manter sua pequena produção de alimentos orgânicos em uma ilha remota no Círculo Polar Ártico

Por Lívia Aguiar
Atualizado em 31 out 2016, 19h06 - Publicado em 8 set 2013, 22h00

 

Mesmo no verão, o céu estava cinza. E era o auge da estação. Com uma geleira a oeste e uma montanha a leste, eu era a última passageira do barco, a única a desembarcar no ponto final: a ilha de Hestmona, um pedaço de terra cortado pelo Círculo Polar Ártico, no norte da Noruega. À minha espera, um homem baixo, encurvado, com uma indefectível barba branca, farta e sem bigode, boina, galochas, macacão surrado e uma bicicleta. Kurt Randeker, 64 anos, parecia o Mestre, dos Sete Anões. Sobrava simpatia, faltavam dentes. Alemão radicado na Noruega, o camponês é um ex-socialista, ex-sindicalista e um grande professor em assuntos de cultivo de alimentos orgânicos (“a única forma de agricultura possível”, dizia). Eis minha principal companhia por dez dias.

Kurt e sua mulher, Marie Louise, fazem parte de um movimento de volta à terra, que prega o uso do campo por pequenos fazendeiros com agricultura de subsistência. Mas nem sempre eles foram assim. No final da década de 1960, largaram o movimento sindicalista, o emprego na Mercedes-Benz e a casa em Stuttgart, no sudoeste da Alemanha, para se instalar em uma chácara que produzia queijo pecorino na cordilheira do Jura. Não tinham mais do que dez ovelhas. Em 1999, pressionados por grandes fazendeiros na região, venderam a terrinha e se mudaram para essa ilha remota no mar da Noruega, na esperança de trabalhar com a terra do jeito deles. Até morrer.

E assim eles seguem, aqui na Hestmonvågen, a pequena fazenda onde vivem. E para onde Kurt me trouxe para viver e trabalhar de graça. O lugar é do tamanho de uns dois campos de futebol, não tem televisão nem internet. Mas tem energia elétrica, que alimenta aquecedores, rádio, chaleira, chuveiro e a máquina de fazer manteiga. Não há geladeira. Nesse canto do mundo, um quarto frio do lado de fora é o suficiente para conservar queijo, leite e sobras do jantar. Mesmo no verão.

Tudo bem ficar sem luxos tecnológicos, eu já sabia o que me esperava. Cheguei ali por meio da organização Wwoof (“oportunidades de trabalho em fazendas orgânicas ao redor do mundo”, na sigla em inglês). É uma rede presente em 99 países (inclusive o Brasil) que conecta fazendas orgânicas e pessoas que querem trabalhar nelas. Soa nobre, mas Kurt não gosta do rótulo. “Não faço isso pelo planeta. Estou muito velho para ligar para o planeta.”

Além de um ou outro trabalhador voluntário (“geralmente mulheres intelectualizadas da cidade”, diz Kurt, me fazendo vestir a carapuça), quem trabalha ali é o próprio casal, que conta com uma égua e um trator da década de 1950. A Hestmonvågen tem também duas vacas leiteiras. O que não é consumido na produção diária vira manteiga e ricota. A alimentação do casal segue a premissa da fazenda, ou seja, consumo responsável, agricultura sustentável e pouco desperdício. Tudo é pensado para otimizar a produção sem a necessidade de aditivos químicos, fertilizantes etc. As frutas colhidas no verão viram geleia para o resto do ano. Já as batatas, por exemplo, são armazenadas junto com as maçãs, que têm hormônios que ajudam na conservação mútua. Tudo muito simples. Mas Hestmona não é toda assim. Da janela de casa, Kurt vê a fazenda do vizinho, o maior proprietário da ilha e seu antagonista declarado. “Coitadas das vacas, presas o dia inteiro”, lamenta. Em grandes fazendas, normalmente há um padrão industrial a se cumprir, com metas e pressão por produtividade. Na propriedade vizinha, o gado fica confinado por nove meses. Máquinas ordenham as vacas, e o leite já sai da fazenda pasteurizado para ser envasado e vendido. Em Hestmonvågen, as vacas ficam no curral só em dias de tempestade. Quem tira o leite é o próprio casal, na mão. E os voluntários. Bem, quando acordam na hora certa…

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É com vergonha que admito que nunca consegui acordar para a ordenha das vacas, às 5h. Mas não fiquei à toa. Fiz queijo e manteiga e, especialmente, cuidei do pasto: cortei, empilhei e sequei capim para servir de comida aos animais no inverno. O clima úmido da Noruega impede que o feno seque sozinho, mas um varal de aço resolve o problema. Basta pendurar o capim cortado, que seca entre uma e duas semanas e aí então fica pronto para ser armazenado. Em anos de dificuldade extrema e muita chuva, Kurt engole o orgulho e compra algumas das bolas de feno embaladas em plástico do vizinho, que, amparado pela tecnologia, não fica tão sujeito às intempéries do clima. Adaptar-se à natureza e tentar tirar vantagem disso é o que guia fazendeiros como Kurt. Por mais que às vezes ele precise dos “antagonistas”.

Trabalhar com a terra na Noruega é bem diferente do que no nosso tropical país. Em Hestmona, o termômetro no verão fica entre 10 ºC e 25 ºC. No inverno, pode cair para uns -15 ºC. Com tanto frio, aqui não cresce trigo, soja, milho, mandioca. Nem chuchu, que dá na serra e em qualquer cerca brasileira, dá as caras por aqui. Mesmo assim, Kurt nem pensa em mudar de vida. “Gosto de ficar longe dos problemas do capitalismo.”

 

 

O casal planta cenoura, rúcula, rabanete e outros vegetais, que vende a compradores de outras ilhas da região. O resto da produção segue o sistema de rotação de terra. Isso significa que o terreno é dividido em lotes que revezam ciclos de aveia, batata e capim com trevo. A rotação é feita para que o solo se recomponha dos nutrientes absorvidos por cada uma das espécies plantadas e, assim, esteja sempre fértil. Isso, por sua vez, fortalece as plantações, que dispensam agrotóxicos e aditivos químicos. A rotação caiu em desuso nas últimas décadas, com a mecanização e industrialização do campo. Dá mais trabalho e geralmente o retorno financeiro é mais instável. Kurt não dá a mínima. Ele tem problemas mais triviais. Mas coube a mim limpar a merda com ele. Literalmente.

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Uma imensa poça de lama, entre o curral e o pasto, é problema recorrente da fazenda. As vacas passam por ali, se sujam e acabam se machucando. Isso porque muitas vezes sobram grãos de areia nas tetas, que ficam raladas com o esfrega-esfrega diário da ordenha. Por mais que Kurt as limpe com uma pomada especial, o jeito é secar a poça. A lama tem muita bosta de vaca. Muita! Vesti botas e luvas, deixei o nojinho no quarto e pus a mão na massa com um mantra na cabeça: “Se você ama o leite, tem de amar a bosta”. Afinal, ela também faz parte do ciclo da fazenda. Tirei o cocô da poça e o coloquei em montinhos de algas marinhas e outros restos orgânicos. Toda a gororoba viraria compostagem, que seria usada como um fertilizante natural (e essencial) na horta.

Felizmente, exerci funções mais aprazíveis, como guiar a égua Brownie. Tive de seguir um ritual matinal de amizade que imita a troca de afeto equina. Funciona assim: primeiro você faz carinho na base do pescoço, onde acaba a crina. Depois, abraça sua cabeça e assopra as narinas. Diversas vezes. Brownie adora isso e, se ela decide ser sua amiga, funga de volta. Nojento? Talvez, se o focinho dela não fosse a coisa mais macia do mundo. Dá vontade de fazer carinho para sempre. Mas tínhamos de arar o campo de batatas. Então, de volta ao trabalho.

Nós, da cidade, nos afastamos tanto da natureza que esquecemos de onde vêm o leite, o macarrão, a carne que é vendida cortada e temperada. Nosso dia a dia tem químicos que turbinam vegetais, alteram o crescimento de animais e conservam a comida por mais tempo. E nos acostumamos a isso. Mas tudo começa ali, com um pé na água, outro no cocô, as mãos ásperas, os braços cansados e os animais como companheiros do dia a dia. A vida pode ser mais simples, embora o simples nem sempre seja fácil. “É mais desafiador. Você tem de prestar atenção no que a terra está falando”, diz um filosofal Kurt. “É mais inteligente que só comprar fertilizante e máquinas que fazem tudo por você.”

E o que a fazenda fez por mim? Bem, é difícil adotar uma vida como a que levam Kurt e Marie Louise. Mas hoje penso mais nas pessoas que fazem nossa comida. E nos animais, que também são seres com suas particularidades. Urbana que sou, paro mais para escutar o silêncio. Observo a chegada da chuva no horizonte sem pensar só no trânsito para voltar para casa.

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PARA SABER MAIS
https://www.wwoof.org

 

 

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