Gilberto Stam
De todas as 16 medalhas de ouro que deram à Austrália o quarto lugar nos Jogos Olímpicos, de longe a mais festejada foi a da corredora Cathy Freeman nos 400 metros rasos. O estádio olímpico (com lotação recorde de 112 124 espectadores) veio abaixo e o país inteiro vibrou. Mas nenhum coração bateu mais forte que o dos aborígines, que há 60 000 anos habitam a Austrália e fascinam o mundo com suas 80 línguas, suas superstições e seus instrumentos curiosos, como o bumerangue. Na comemoração de encerramento dos jogos mesmo no interior remoto da Austrália, onde parte deles ainda vive , grandes grupos deixaram os arbustos e se aglomeraram na frente das TVs, nos bares e em outros locais públicos, para celebrar a vitória de Cathy.
Filha de pai e mãe aborígines, ela teve sua avó seqüestrada, quando criança, por ocidentais que a criaram achando que a estavam salvando da barbárie como era costume pensar no país até os anos 60. Agora, Cathy transforma-se em uma heroína vibrante dessa gente sem lar. Tirados de suas terras no século passado, transformados quase todos em moradores pobres das cidades e alvo de um preconceito discreto, hoje eles dão passos decisivos para reconquistar a dignidade dentro da sociedade australiana. Somos cidadãos de terceiro mundo num país do primeiro, diz o líder aborígine Trevor Close, fundador da entidade tribal Githabul. Até 1967, nenhum aborígine tinha direito de cidadania australiana. Era como se não existissem, embora seu número estivesse crescendo depressa e hoje seja de 420 000 pessoas, 2% da população total do país.
Cathy não foi alçada ao Olimpo por acaso. Sem se envolver diretamente na política, ela não esconde o orgulho que tem por sua origem. Desde que pisou pela primeira vez em pistas internacionais e conquistou a primeira medalha de ouro, aos 16 anos de idade (agora tem 27), Cathy se esforça para apressar a reconciliação entre seu povo e os demais australianos. Este ano, ela acendeu a tocha olímpica na abertura dos jogos, cerimônia durante a qual o público viu uma encenação do Tempo dos Sonhos, nome que os aborígines dão ao seu mito da criação do mundo. É sinal de que a Austrália talvez esteja começando a se orgulhar do seu passado aborígine que o colonialismo inglês por pouco não apagou da história no século passado.
Para saber mais
https://www.aaa.com.au/hrh/aboriginal/A Z/atoz1.shtml
fdieguez@abril.com.br
Radiografia tribal
Quem são os aborígines, onde moram, que línguas falam e quais são suas condições de vida em comparação com o resto dos australianos
As quatro maiores
Os aborígines falam 80 línguas. Aqui estão as mais comuns e o número de falantes
Mabuiag
8 000 [Ilhas Torres]
Bidjandjara
4 000 [Deserto do Oeste]
Arrente
3 468 [Austrália Central]
Dhuwal-Dhuwala
3 219 [Terra de Arnhem]
À margem do tempo
Eles têm menos emprego, salário inferior e escolaridade mais baixa que o australiano médio
Aborígines
Austrália
População
420 000
20 milhões
Crescimento anual da população
2,3%
1,2%
Escolaridade
73,3%
91,5%
Taxa de desemprego
22,7%
9,2%
Renda média (semanal, em dólares)
190
292
O segundo nascer do sol
Quando os europeus chegaram à Austrália, em 1788, havia 750 000 aborígines espalhados pelos manguezais, pelas florestas da região costeira e pelas áreas desérticas, cobertas de arbustos, do interior do país. Sua diversidade cultural era espantosa reunia 600 tribos, que falavam 250 línguas. Acredita-se que são descendentes de povos vindos da África, de onde teriam saído, mais de 60 000 anos atrás, para ocupar o sul da Ásia. Daí uma parte desceu para a Austrália e outra migrou para o norte, chegando às tundras geladas da Sibéria Oriental, há cerca de 23 000 anos. Quase dez milênios depois, seus primos atravessaram o Estreito de Bering e entraram na América. Um desses aventureiros pode ter morrido em Lagoa Santa, Minas Gerais, deixando para a posteridade parte do crânio. Esse fóssil, batizado de Luzia pelo antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo, USP, tem inúmeras características semelhantes à dos aborígines australianos. Os quais contam a história de um outro jeito. Para eles, tudo começa no tempo dos sonhos, quando espíritos, animais e seres humanos transformavam-se uns nos outros e se esforçavam para criar os territórios e as leis tribais. O céu, então, ficava muito próximo da Terra e a envolvia na escuridão. O sol finalmente se ergueu ajudado pelas aves e seu brilho marcou o início dos tempos. Deve ter sido essa a imagem que os aborígines viram na medalha de ouro de Cathy Freeman um segundo nascer do sol. Não é um sonho impossível, afirma o antropólogo Alan Thorne, da Universidade Nacional Australiana.
Os próprios australianos ocidentais começam a sentir que os aborígines são a verdadeira base da nossa sociedade. As crenças e valores criados por eles ao longo de milênios são a nossa ligação com a terra.