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A hora da fome: por que precisamos comer?

O organismo humano tem necessidade contínua de energia. Pode ficar até dois meses em abstinência porque, além de certo ponto, passa a se nutrir de si mesmo

Por Flávio Dieguez e Marcelo Affini
Atualizado em 18 jan 2017, 19h33 - Publicado em 31 Maio 1993, 22h00

Nos três primeiros dias, a sensação é terrível. A vontade de comer, persistente e angustiante, alia-se ao aumento de saliva na boca, à secreção de sucos gástricos e roncos do aparelho digestivo. É sinal de que este recebeu o alerta geral do cérebro, informando que há falta de combustível nas artérias, e se coloca em estado de prontidão — totalmente inútil, pois não há o que digerir. “De imediato, os sentidos ficam muito mais aguçados, como a visão, a audição e principalmente o olfato”, diz a fisiologista Naomi Shinomiya Hell, da Universidade de São Paulo (USP). “Como um radar, ele tenta captar o cheiro de alguma coisa para comer. Isso vale tanto para o homem como para os outros animais, domésticos ou selvagens.”

Mas, apesar do sentimento de alarme, o organismo está longe de correr perigo. Por incrível que pareça, um indivíduo adulto e saudável pode ficar até dez ou vinte dias em completa abstinência de comida sem risco de sofrer danos irreversíveis — desde que beba água. É o que diz o anatomista Edson Liberti, professor do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (o ICB, onde também trabalha Naomi). Isso acontece, em primeiro lugar, porque o corpo sempre guarda alguma reserva energética — algo em torno de 6 000 calorias, o suficiente para três ou quatro dias em repouso e em circunstâncias normais.No caso de grande necessidade, diz Liberti, esse estoque pode durar bem mais de uma semana.

Em seguida, começa uma forma suave de canibalismo interno: o organismo consome suas próprias proteínas, obtidas à custa de “desmontar” tecidos e órgãos, para suprir a inadiável necessidade de energia. Trata-se de um recurso extremo, empregado apenas quando as perdas já ocorridas ameaçam parar a máquina viva. Afinal, após meros dez dias sem comer, um indivíduo emagrece na proporção de até 10% do total de seu peso, ou cerca de 7 quilos num homem de 70 quilos. Os batimentos cardíacos caem em taxa ainda maior — de 74 para 61 por minuto — e a própria temperatura do corpo pode oscilar de alguns décimos de grau.

Esses números aparecem num livro clássico, adotado há décadas em muitas escolas de Medicina — Fisiologia Humana, do cientista argentino Bernardo A. Houssay (1887-1971), ganhador do Prêmio Nobel de 1947. Ele lembra fatos curiosos — como o de que o organismo “desaprende” a gerar energia pela via costumeira do aparelho digestivo, e se receber comida, adoece. Há um aumento da quantidade de açúcar no sangue, apresentando pressão alta e sintomas semelhantes aos do diabete — como o de verter o açúcar glicose junto com a urina. Conta também que a fome intensa dos primeiros dias logo desaparece e é substituída por uma gradual debilitação física e mental.

Seja como for, num estágio mais avançado de privação alimentar, a pessoa certamente morrerá de indigestão se receber um farto prato de comida, porque suas vilosidades, ou reentrâncias da parede dos intestinos, já foram destruídas. Na Somália e no Sudão, as pessoas submetidas a prolongada insuficiência alimentar precisam passar por extenso tratamento médico antes que possam receber comida. Os técnicos da Organização das Nações Unidas recomendam grande cuidado ao se socorrer qualquer flagelado pela fome. É óbvio que a essa altura o corpo já não se encontra apenas debilitado, mas começa a sofrer consequências que podem ser irreversíveis.

Depois de no máximo quinze dias de jejum, as proteínas dos músculos passam a ser queimadas para gerar energia; a musculatura perde o relevo e se atrofia. E isso não vale apenas para os músculos estriados, ou voluntários (os responsáveis pelos movimentos externos do corpo): também podem ficar comprometidos alguns músculos involuntários, como os existentes nas paredes do estômago, veias e outras vísceras. Entre os somalis, muitos já não têm as contrações do aparelho digestivo e há exemplos de vasos dilatados, o que provoca problemas cardíacos. Em animais com dois meses de jejum, verifica-se degeneração das fibras do coração. O pulmão e o cérebro são outros órgãos prejudicados.

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É espantoso, portanto, que muitos homens passem trinta ou cinqüenta dias ingerindo apenas água. Houssay conta que a Medicina registra inúmeros casos assim, e cita pelo menos um grevista — o irlandês Mac Swiney — que resistiu até os 74 dias sem comer. De maneira geral, porém, se considera que a morte é inevitável após sessenta dias, mais freqüentemente em quieto coma e às vezes em convulsões. A ciência ainda não descobriu a gênese da fome, ou seja, exatamente o que faz o organismo buscar e ingerir alimentos. Os pesquisadores afirmam que essa sensação está prioritariamente ligada à glicemia, a quantidade de glicose dissolvida no sangue.

Até meados dos anos 80, acreditava-se que a fome crescia à medida que a glicemia caía. “Mas não é assim”, diz o fisiologista César Timo-Iaria, do Laboratório de Neurologia Experimental da Faculdade de Medicina da USP. A fome, diz ele, é um sintoma de que o fígado está trabalhando demais para manter a concentração normal de glicose na corrente sanguínea. Não é difícil entender isso, já que esse órgão é o responsável pelo patrimônio de glicose — o principal combustível usado pelas células — disponível no sangue. Normalmente, há cerca de 1 grama de glicose para cada litro de sangue, o que dá perto de 5 gramas dissolvidos nesse líquido contido em todo o sistema cardiovascular, de acordo com o livro de Houssay. Ele diz que o corpo dispõe de mais 15 gramas de glicose dissolvida nos líquidos entre as células, os chamados líquidos intersticiais.

Parece pouco, mas 1 grama de açúcar, depois de queimado com 0,75 litro de oxigênio, gera nada menos que 3 750 calorias, e aquelas quantidades se referem apenas à glicose pronta para chegar às células. O mais importante é que o fígado armazena perto de 200 gramas daquele combustível, numa forma compactada, denominada glicogênio. Assim, ele controla o suprimento de glicose no corpo, transformando glicogênio em glicose sempre que necessário. Para isso, conta com células chamadas glicorreceptoras, que funcionam como sensores e indicam a todo momento a concentração de glicose na circulação.

Segundo Timo-Iaria, foram encontrados glicorreceptores em três partes do organismo: “Os mais potentes estão no hipotálamo, mas também estão presentes no fígado e na região denominada núcleo do trato solitário, localizados na parte mais caudal do encéfalo, sob a nuca”. Tudo isso funciona mais ou menos como o sistema hidráulico de um edifício, compara o cientista. Em cima do prédio há uma caixa, dotada de bóia que indica o nível de água, e no subsolo, um imenso reservatório. Quando a caixa se esvazia além de um ponto crítico, repõem-se as perdas por meio de uma bomba que capta água do reservatório. A bóia, com isso, volta a mostrar que o nível de água está normal. “Os glicorreceptores correspondem à bóia. A bomba de água e o reservatório correspondem ao fígado”.

Num organismo sem alimentos, o intestino não fornece ao fígado matéria-prima para produzir a glicose, mas a concentracão de açúcar no sangue não chega a cair devido ao contra-ataque acionado pelas células glico-receptoras. No edifício, seria a hora em que a bomba de água começa a funcionar. No corpo humano, o fígado entra em hiperatividade e passa a gastar suas reservas. Não é à toa que existe tão complicado sistema de controle e de alarme para garantir o suprimento de energia. É que ela é absolutamente essencial — a ponto de o corpo se autodestruir para evitar sua falta. Proteínas e vitaminas também são importantes, e sua carência, a longo prazo, cria distorções terríveis, como atrofia muscular, cegueira e outros males. Mesmo assim, o organismo corre o risco, apenas porque não pode parar sequer por um momento.

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Basta pensar no coração, um músculo fortíssimo, que mantém sob pressão constante algo como 5 litros de sangue. Quando se reflete um pouco, percebe-se quanto movimento existe num organismo, mesmo quando todas as suas partes externas estão imóveis. O pulmão precisa bombear oxigênio e gás carbônico sem cessar; os intestinos e o estômago realizam contrações complexas; o suor é outra óbvia fonte de movimento, pois representa água quente bombeada para fora, através da pele, de modo a manter constante a temperatura. É claro que, se uma pessoa se alimenta mal, todas essas funções ficam potencialmente prejudicadas. Mas tudo se faz para que não cessem, porque isso seria o fim.

O fato de o organismo se agarrar à vida por longo tempo depois de ter sido privado de combustível só pode ser motivo de profunda admiração. Ainda mais quando se pensa que ele é formado por um condomínio de simples células microscópicas, organizadas em número inimaginável — o corpo humano contém 60 trilhões delas. Em conjunto, diz Naomi Hell, elas se tornam a mais formidável e perfeita máquina existente no planeta.

 

A trilha da energia

Em várias etapas, o corpo humano retira de tudo o que ingere as matérias-primas para a sua existência

Boca

É só pensar em comer e ela se enche de saliva, que dá início à digestão

Estômago

Transforma o alimento num líquido viscoso, fragmentando-o quimicamente para facilitar a absorção pelo intestino

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Fígado

Armazena, sob a forma de glicogênio, toda a glicose não utilizada pelas células periféricas da circulação. Isso faz as pessoas não sentirem fome a toda hora.

Célula

Captura a glicose em circulação e, por meio de uma reação com o oxigênio, a transforma em energia.

Cérebro

Agrega os mais potentes sensores que medem continuamente a concentração de glicose no sangue, pois é o órgão que mais a utiliza.

Suco gástrico

Composto de ácidos que quebram as longas cadeias de átomos que compõem os alimentos em pequenas moléculas

Intestinos

Onde se completa a digestão: proteínas são fragmentadas em aminoácidos, carboidratos em glicose e frutose, e a gordura torna-se hidrossolúvel. Tudo isso cai na corrente sanguínea.

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Energia na medida certa

Tudo que o corpo humano ingere — seja um pedaço de lasanha, um sanduíche, doces, sorvetes, pipoca ou refrigerantes — é tratado por ele, indistintamente, como alimento. Um organismo plenamente desenvolvido utiliza esse alimento como matéria-prima para regenerar boa parte de suas células e para gerar a energia que o conserva vivo. Em repouso absoluto, ele tem a potência de uma lâmpada: consome 100 watts de energia, o correspondente a 2 100 quilocalorias por dia. Cerca de 20% dessa energia é utilizada pela musculatura esquelética, 5% pelo coração, 19% pelo cérebro, 10% pelos rins e 27% pelo fígado e pelo baço.

Dependendo do tipo de atividade que exerce, o organismo gasta mais ou menos energia, diz a nutricionista paulista Flora Spolidoro. Ela deve saber, pois criou a dieta mais adequada para o aventureiro Amyr Klink realizar suas proezas pelos oceanos. “O corpo de um atleta precisa de muito mais energia que o de uma recepcionista. Um operário de construção tem muito mais chance de ser magro que um executivo.”

Quando Klink atravessou o Atlântico a remo, a partir da África até a América do Sul, seu consumo de energia era grande durante as oito horas diárias que remava. Mas nas outras 16 horas, ele ficava muito mais parado que qualquer cidadão, pois tinha os movimentos limitados pelo pequeno barco, diz a nutricionista. “A dieta teve que ser balanceada de forma que o gasto energético fosse reposto sem excessos.” Flora conta que o essencial era a cota de calorias, e acabou fixada de acordo com o há-bito de Klink: 2 900 por dia, embora 4 000 fosse o número teórico. De resto, ele comeu de tudo, do macarrão ao bife grelhado e leite.

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