Supervírus: a nossa menor ameaça
Conheça as descobertas da ciência sobre micropredadores capazes de matar milhões de humanos em poucos dias e as armas criadas para combatê-los
Foi uma epidemia que teria exterminado milhares de pessoas se ocorresse trinta anos antes. Em novembro de 2002, um novo tipo de pneumonia capaz de matar rapidamente surgiu na China e se alastrou sem causar alerta. Quatro meses depois, a SARS (inglês para “síndrome respiratória aguda severa”) já estava em 16 países. Levava jeito de ser uma tragédia devastadora, mas não foi o que aconteceu. “Apesar de excepcional em termos de impacto, severidade e alcance internacional, a SARS foi apenas uma das cerca de 50 epidemias internacionais importantes que enfrentamos todos os anos”, afirmaram representantes da Organização Mundial de Saúde em um relatório sobre a doença.
Foi um vírus do século 21, uma época em que as doenças se espalham rápido, são fortemente combatidas e deixam um rastro de mortes, pesquisas e milhões de dólares e de dúvidas. E com uma importante diferença em relação às pestes do passado: os cientistas tinham novas tecnologias para combatê-la. Pela internet, os médicos coordenaram ações no mundo inteiro e uniram onze laboratórios em rede para estudar o vírus. Em pouco mais de um mês, eles identificaram o agente da doença e mapearam seu genoma. Era um coronavírus, que até então causava só um leve resfriado em humanos e que, por isso, era pouco conhecido. Nos meses seguintes, eles testaram a resistência do vírus e elaboraram testes diagnósticos, mas não precisaram colocar suas pesquisas em prática. No início de julho, a rede planetária de médicos derrotou o vírus com ferramentas bem antigas: higiene e quarentena. No total, 812 pessoas morreram.
O show dos pesquisadores não foi em vão. “Em poucos meses, os cientistas fizeram mais avanços na pesquisa desse vírus do que em um século”, afirma o virologista Celso Granato, da Universidade Federal de São Paulo. Se ele reaparecer – o que não é difícil – existirão tratamentos mais eficazes e, provavelmente, até vacinas em teste. Foi apenas mais uma batalha na longa guerra dos vírus contra todas as outras criaturas, uma das disputas mais antigas de que se tem notícia.
Perfil do assassino
Matar os vírus é uma tarefa complicada porque até hoje não se sabe se eles de fato têm vida. Ao contrário de bactérias, que possuem uma batelada de pequenos órgãos para produzir energia, o vírus nada mais é do que um monte de DNA e enzimas embrulhadas para presente em uma camada de proteína. Um presente de grego: para se replicar, ele precisa invadir outros seres e se apropriar dos instrumentos que eles dispõem. “Os vírus têm algumas características de seres vivos, como gerar descendentes, e não têm outras, como uma existência autônoma. Metade dos cientistas acha que são vida, metade acha que não”, afirma o virologista Herman Schatzmayr, da Fundação Instituto Oswaldo Cruz (Fiocruz).
De qualquer forma, eles reúnem uma enorme complexidade no minúsculo espaço que ocupam. Milhares de vezes menores que uma bactéria, só podem ser vistos com potentes microscópios eletrônicos. Não se sabe como surgiram. É provável que sejam bactérias que perderam várias organelas e a capacidade de viver por conta própria ou pedaços de células que se desprenderam. O fato é que são antigos a ponto de terem interferido na evolução de quase todas as espécies. Uma prova disso veio com o mapeamento do genoma humano, quando foram encontradas seqüências genéticas de vírus escondidas no nosso DNA. “Acredita-se que esses genes não têm nenhuma função para nós, mas é possível que eles se ativem em algumas circunstâncias e tragam problemas como câncer”, diz o biólogo Paul Turner, da Universidade de Yale, Estados Unidos.
De bactérias a plantas e elefantes, não existe ser vivo que esteja livre desses parasitas. Muitos tipos de vírus só atacam uma espécie. Outros, no entanto, não são tão seletivos assim. Os rotavírus – que todo anos matam em média 440 mil crianças de diarréia no mundo – passam diretamente de alguns animais para o homem. “Nunca vamos nos livrar deles. Para isso, precisaríamos adotar medidas absurdas, como vacinar todos os macacos do mundo”, diz o virologista José Paulo Leite, do Laboratório de Virologia Comparada do Fiocruz.
O modo como os vírus passam de uma espécie para outra é um tema quente para os cientistas. Apesar de o mecanismo ser muito pouco compreendido, sabe-se que essa é a principal forma pela qual novas viroses chegam aos seres humanos. Supõe-se que a Aids, por exemplo, era uma doença de primatas. A SARS provavelmente veio de um tipo de gato apreciado como comida no sul da China, a região de onde surgiram todas as grandes epidemias de gripe que se conhecem. O Influenza, o principal causador da gripe, possui dezenas de variações a mais nas aves do que nos seres humanos, mas elas quase nunca nos infectam. Porcos, no entanto, são bastante suscetíveis aos parasitas das duas espécies e atuam como intermediários no contágio de influenza. Dois tipos de vírus trocam genes dentro dele e geram um nova linhagem capaz de infectar humanos. O sul da China é especialmente propício para que isso aconteça por ser um região populosa em que patos, porcos e gente vivem muito próximos.
A facilidade com que os vírus mudam e trocam genes permite que eles evoluam rápido e se multipliquem em diferentes grupos. Ninguém sabe dizer quantas doenças eles causam. O que se conhece são algumas maneiras com que eles causam tanto estrago. Uma é usurpar as funções vitais das células até que elas morram. Outra é se multiplicar dentro delas a ponto de estourá-las. Outra ainda, como no o caso das hepatites B e C e do papiloma (HPV), é mudar o material genético da célula e fazer com que ela se multiplique sem controle – entre 10% a 20% dos casos de câncer estão relacionados a vírus.
O único objetivo do vírus, no entanto, é se reproduzir. A maioria deles produz muitos descendentes em pouco tempo – causando uma forte doença – e passando para outros indivíduos antes que matem o hospedeiro ou sejam eliminados por ele. Vírus como o da herpes, no entanto, conseguem driblar as defesas imunológicas e permanecer em estado latente para o resto das nossas vidas. O truque é se esconder em células do sistema nervoso, normalmente pouco atacadas pelo sistema imunológico, e permanecer lá até que fatores como desgaste físico ou excesso de sol os façam voltar à ativa. O sucesso da estratégia é evidente – a família de vírus da herpes é extremamente antiga e espalhada na natureza. Até ostras têm herpes.
Arma contra o mal
Até vinte anos atrás, os únicos remédios contra uma infecção viral eram canja de galinha e repouso. “Havia a idéia de que eles não eram um grande problema”, diz Celso Granato. A principal linha de defesa contra esses agentes eram as vacinas, feitas a partir de vírus mortos ou atenuados que despertam o sistema imunológico contra o invasor. Assim, os médicos conseguiram erradicar a varíola e colocar a poliomielite perto da extinção – as poucas vítimas restantes estão no Paquistão e na Índia. A situação parecia ser administrável até o surgimento da Aids. Matando milhões em todo o mundo, o HIV desafiava qualquer tratamento existente. Nem toda a canja de galinha e repouso do mundo poderia vencê-los.
A dificuldade imposta pelo HIV fez surgir estímulo e recursos para atacar os vírus. Uma conseqüência foi o desenvolvimento de diagnósticos mais precisos. “Como antes não havia remédio, o médico poderia simplesmente dizer que o problema era uma virose qualquer. Agora a identificação tornou-se importante”, afirma Celso. Além disso, a biologia molecular teve um enorme avanço, o que permitiu mapear o DNA de vários vírus e procurar ali pontos vulneráveis. A junção das novas biotecnologias com a necessidade de um remédio para a Aids causou uma revolução no modo de lidar com viroses.
Um dos primeiros campos a se desenvolver foram as vacinas. As antigas funcionavam para a varíola porque ela é causada por um agente com um incrível controle de qualidade, capaz de fazer cópias bastante fiéis de si mesmo. Isso não acontece os vírus da Aids, da influenza e da hepatite. “A replicação deles não é como uma fábrica de automóveis. Para cada vírus bom, são feitos outros 50 ou 100 defeituosos”, diz Herman, do Fiocruz. Pode soar contraditório, mas esse modo tosco de produção é sua principal força. Ele gera uma enorme quantidade de material para distrair o sistema imunológico enquanto o vírus perfeito infecta outras células. E ainda gera mutações rápidas no parasita, o que torna qualquer vacina obsoleta em minutos. “Uma pessoa com Aids tem vários tipos de vírus no sangue. Todos são HIV, mas todos são diferentes”, diz Herman.
Uma solução para esses casos – que levou à vacina contra a hepatite B – é encontrar uma proteína na superfície do vírus que mude pouco e que possa ser reconhecida pelos nossos anticorpos. Essa substância, injetada no organismo, confere imunidade de modo mais seguro que as vacinas tradicionais, pois não coloca vírus inteiros para dentro do organismo. A estratégia pode levar no futuro a malabarismos ainda mais impressionantes: é possível, por exemplo, injetar um gene da dengue no DNA de um vírus atenuado de febre amarela e, assim, conferir imunidade às duas doenças com a uma só vacina.
A vacina contra a gripe usou outra estratégia. A OMS montou uma rede de vigilância com 112 laboratórios em 83 países que mapeam as estirpes que circulam pelo planeta. Os dados são enviados para a OMS, que faz uma estimativa dos linhagens mais prováveis para o inverno seguinte e prepara uma vacina que durará apenas um ano. “Precisamos saber rapidamente as estirpes que estão surgindo para preparar vacinas adequadas”, diz Teresinha Maria de Paiva, do Laboratório de Virus Respiratórios do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo.
A evolução do remédios foi ainda mais impressionante. Além de medicamentos capazes de anular as enzimas do vírus – já utilizadas no coquetel de remédios contra a Aids – surgiram várias novas propostas para parar esses agentes em todos os seus estágios. Com os remédios existentes, os médicos conseguem eliminar 99,9% do HIV em alguns pacientes. O problema é que os poucos que sobram são suficientes para recomeçar a infecção e, para piorar, eles ainda voltam mais fortes. “Os vírus são extremamente bons em criar variantes para escapar de novas drogas. Eles evoluem mais rápido do que a nossa habilidade de criar terapias”, diz o biólogo Paul Turner.
Quem leva a melhor
Ganhar a guerra contra os vírus é tão impossível quanto vencer a luta contra o terrorismo. Por outro lado, não serão eles que eliminarão os humanos desse planeta. Pequenas diferenças entre as pessoas garantem a alguns uma proteção maior a certas doenças. Graças a essa diversidade, não existe um só vírus capaz de infectar todos os seres humanos do planeta. Por mais forte que seja a epidemia, sempre sobrarão alguns de nós para repovoar o planeta com pessoas mais resistentes à doença. Vírus quase iguais ao da gripe espanhola, que mataram milhões, até hoje circulam na população causando gripes muito menos violentas.
Mas os vírus deverão trazer cada vez mais prejuízos. Estamos modificando o ambiente e nos aproximando cada vez mais de novas espécies – seja no aquecimento global, na derrubada de florestas, na abertura de estradas ou na domesticação de animais silvestres – o que nos coloca em contato com novos reservatórios de parasitas. Essas mudanças forçam os vírus a se adaptar e, às vezes, buscar novos hospedeiros como o ser humano. Para completar a tragédia, a população mundial se tornou extremamente numerosa e reunida em centros urbanos. “Quando há uma grande concentração de hospedeiros, a evolução tende a favorecer vírus de ação rápida e devastadora. A nossa situação automaticamente seleciona agentes mais virulentos”, diz Paul Turner. E, como a SARS provou, hoje em dia é muito fácil para um parasita pegar um avião e aparecer em outro lugar do mundo. Portanto, não fique surpreso se outras grandes epidemias se alastrarem pelo mundo nos próximos anos.
É possível aplicar golpes duros nos vírus. Podem vir a surgir, por exemplo, drogas milagrosas que derrotem variedades hoje consideradas imbatíveis. Também existem projetos de mapear os tipos de parasitas que circulam em outras espécies para saber qual é a chance de contágio humano. Além disso, podemos mudar alguns dos nossos costumes para interromper os canais de proliferação – usar preservativos ou redes contra mosquitos já resolve muita coisa. Só não podemos ter esperanças que um dia os vírus desaparecerão. Nessa guerra, o único resultado possível é o empate.
A ação do vírus
O passo-a-passo da infecção por HIV
1. A infecção começa quando uma molécula no exterior do vírus se liga a outra na superfície da célula – o receptor. No corpo humano, as células que possuem os receptores apropriados para o HIV são um tipo específico de glóbulo branco, as células-T auxiliares
2. Ao se ligar à célula, o vírus inicia uma série de reações que fazem sua superfície se fundir à da célula e jogar uma cápsula de proteína (chamada cápside) dentro dela. A cápside se desfaz e libera enzimas e material genético na forma de RNA
3. Com a ajuda da enzima transcriptase reversa, o material genético do vírus se converte de RNA para DNA, tornando-se parecido com o material genético de nossas próprias células. O estágio seguinte é ir para o núcleo
4. O DNA viral funde com o nosso graças à ação de uma enzima chamada integrase. A partir desse momento, a célula produzirá material dos vírus toda vez que tentar fazer nossas próprias proteínas
5. A protease divide as proteínas em cadeias menores, que resultam nos ingredientes do vírus. A célula, com seu maquinário dedicado à produção dos parasitas, não consegue cumprir suas funções vitais e começa a morrer
6. As partes se juntam, formam novos vírus e saem da célula. O processo é bem ineficiente. Os agentes produzidos são bastante diferentes entre si e, para cada vírus perfeito, são produzidos dezenas de defeituosos
A destruição do vírus
Novas formas de eliminar a doença
Inibidores de enzimas
São as principais drogas do atual coquetel contra a Aids. São substâncias que ocupam o mesmo lugar de enzimas como a protease e a transcriptase reversa, mas não exercem a mesma. Assim, bloqueiam a replicação do vírus em vários estágios
Bloqueadores de fusão
Substâncias que se ligam aos receptores do vírus e impedem que eles ganhem acesso ao interior da célula. Existem ainda drogas em teste que impedem a fusão da cápsula de proteína do vírus com a membrana
Moléculas Anti-sentido
São substâncias que se encaixam com precisão no RNA do vírus e impedem que eles produzam novas proteínas. É como se a molécula conseguisse “desligar” um dos genes do vírus sem danificar o resto da célula
Vacinas
Umas das novas propostas é modificar geneticamente um vírus inofensivo e dar a ele a mesma capa de proteínas do HIV. Ele estimularia defesas contra a doença sem causar infecções
Injeção de interferon
É uma substância que estimula a produção de HLA (antígeno leucocitário humano), uma proteína que vai para a membrana da célula e sinaliza para o sistema imune que a célula foi infectada
Inibidores de dedo de zinco
As moléculas da núcleocápside são mantidas juntas por substâncias chamadas “dedo de zinco”. Remédios em teste conseguem inibir essa proteína e evitar que um novo vírus se forme
Tragédia contagiosa
As maiores epidemias causadas por vírus
Ano – 1519 – 1520
Doença – Varíola: a doença chega ao México e encontra nativos totalmente vulneráveis
Número estimado de mortes – 5- 8 milhões
Ano – 1918
Doença – Influenza: a gripe “espanhola” surge na Ásia e mata mais do que a Primeira Guerra Mundial
Número estimado de mortes – 20 – 40 milhões
Ano – 1968
Doença – Influenza: o vírus muda uma de suas proteínas e dá origem à gripe de Hong Kong
Número estimado de mortes – 700 mil
Ano – 1981- hoje
Doença – AIDS: transmitida sexualmente, até hoje causa cerca de 3,5 milhões de mortes por ano
Número estimado de mortes – 26 milhões
Para saber mais
NA LIVRARIA:
A História e Suas Epidemias, Stephan Cunha Ujvari, Editora Senac, 2003
The Invisible Enemy, Dorothy H. Crawford, Oxford University Press, Inglaterra, 2000
NA INTERNET;