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A polêmica dos adoçantes

A OMS disse que é melhor não usá-los. A OMS disse que tudo bem usá-los. O que está acontecendo? Entenda o que a ciência mostra de fato – e saiba se é ou não seguro consumir essas substâncias.

Por Bruno Garattoni e Rodrigo Oliveira
Atualizado em 14 mar 2024, 14h19 - Publicado em 17 ago 2023, 15h06

A“A OMS sugere que os adoçantes não sejam usados como forma de controlar o peso.” Com essa frase aparentemente simples, a Organização Mundial da Saúde acendeu o pavio da maior polêmica alimentar em uma década.

A manchete correu o mundo, mas pouca gente se deu ao trabalho de ler o documento (1), de 90 páginas, em que a entidade justifica sua decisão. Após analisar os resultados de 50 estudos (46 em adultos e 4 em crianças), ela afirma que os adoçantes emagrecem no curto prazo, mas não há evidências de que a perda de peso se mantenha, e existe uma associação entre o uso de adoçantes e maior incidência de diabetes e doenças cardiovasculares.

Só que essas conclusões, adverte a OMS, são de “baixa certeza geral”. E estão sujeitas, segundo ela, a um fenômeno chamado “causalidade reversa”: muitas das pessoas que consomem adoçantes têm obesidade ou sobrepeso, e é isso (não os produtos) que pode estar causando as doenças.

“A redução no consumo de açúcar deve ser implementada no contexto de uma dieta saudável”, recomenda o relatório. Óbvio, não? Claro que é melhor se alimentar direito do que comer mal e tentar compensar com adoçantes. Também é evidente que é difícil emagrecer e não voltar a engordar, mesmo trocando o açúcar por um desses produtos. Em suma: a OMS não falou nada demais.

Mas aí, dois meses depois, falou. Em 13 de julho, a International Agency for Research on Cancer (IARC), da OMS, anunciou que estava colocando o aspartame, um adoçante usado desde os anos 1970 em refrigerantes, sucos, sorvetes, iogurtes e outros itens, na sua lista de substâncias perigosas – ele foi enquadrado na categoria 2B, “possivelmente cancerígeno em humanos”.

A notícia caiu como uma bomba. Inclusive porque naquele mesmo dia outra agência da OMS, a Joint Expert Committee on Food Additives (JECFA), disse o contrário: o aspartame é seguro e pode continuar sendo usado.

Desde que você não ultrapasse a dose máxima diária, que é de 40 mg por kg de peso corporal (para uma pessoa de 60 kg, isso significa 2.400 mg de aspartame, quantidade presente em 8 a 12 latas de refrigerante, ou 75 sachês). A Food and Drug Administration, equivalente americana da Anvisa, foi na mesma linha – e reafirmou a segurança do produto.   

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E agora? Quem está com a razão? Você deveria riscar os adoçantes da sua vida? E a quantidade que já consumiu até hoje? Nos últimos anos, uma série de estudos começou a revelar que os adoçantes não são inertes como se acreditava – eles podem, sim, ter efeitos sobre o organismo. Mas, ao mesmo tempo, não dá para dizer que provoquem câncer. Vamos começar pelo que detonou toda a polêmica: a bendita lista da IARC.

Ilustração de alguns dos produtos citados na lista de risco da IARC, sendo eles uma xícara de chá quente, uma embalagem de hidratante, picles em conserva e o próprio adoçante. Algumas formigas andam em torno deles, e sobem na embalagem de adoçante.
A lista da International Agency for Research on Cancer (IARC) traz produtos comprovadamente tóxicos, mas também está cheia de elementos corriqueiros. E não avalia seu risco real. (Felipe Del Rio/Superinteressante)

Tudo dá câncer?

Chá quente. Luz solar. Picles em conserva. Aloe vera. Esses são alguns dos 1.111 itens presentes na “lista de classificações” da agência (2), que é dividida em quatro categorias. O grupo 1 reúne os piores agentes, que são considerados “cancerígenos em humanos”.

Essa parte da lista traz elementos obviamente tóxicos, como benzeno, amianto e materiais radioativos, mas também inclui a exposição ao sol, bebidas alcoólicas, carne processada (embutidos) e pílulas anticoncepcionais.

Em seguida vem o grupo 2A, de coisas “provavelmente cancerígenas”: gás mostarda, glifosato, esteroides anabolizantes, infecção pelo vírus HPV, mas também o consumo de carne vermelha, bebidas quentes (acima de 65 graus) e até o risco ocupacional de trabalhar como cabeleireiro ou barbeiro – que a IARC atribui ao contato com os produtos usados, em especial as tintas (3).

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O picles e o extrato de aloe vera, um hidratante, entram na categoria 2B, a mesma do aspartame. Em 1991, o café também foi colocado nesse grupo – mas em 2016 a IARC resolveu mudá-lo para o grupo 3, “não classificável”.

Percebeu o problema? A lista da IARC é um grande balaio, que mistura substâncias comprovadamente tóxicas com coisas corriqueiras, e tempera tudo com uma boa dose de incerteza. A IARC só avalia se, em algum momento, foram publicados estudos relacionando a substância em questão a tumores – mesmo em contextos que podem não refletir a realidade.

Pegue o caso do aloe vera, por exemplo. O extrato dessa planta é usado há milhares de anos como hidratante natural, e também está presente em cosméticos industrializados. Quando a IARC o classificou como possivelmente cancerígeno, em 2016, ela considerou (4) três estudos em ratos. Em dois deles, os bichinhos beberam o extrato, e tiveram maior incidência de câncer de intestino.

Só que você não vai tomar aloe vera; vai passar na pele. E fazer isso, segundo a própria IARC, é seguro: no terceiro estudo, o aloe foi aplicado nas costas dos ratos, e não demonstrou qualquer efeito cancerígeno. As cobaias foram colocadas sob o sol por longos períodos sem nenhuma proteção e, como esperado, desenvolveram câncer de pele – mas a incidência disso foi a mesma com ou sem aloe.

Há diversos estudos mostrando que existe uma enorme diferença, no risco de câncer, entre comer carne vermelha de vez em quando ou traçar um bifão todos os dias. Você não precisa tirar a carne da sua vida; basta consumi-la com parcimônia (o que também evita problemas cardiovasculares).

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Não precisa, e não deve, deixar de tomar sol; basta usar protetor solar. Pode tomar chá quente – é só esperá-lo esfriar um pouco. E por aí vai. Em suma: a lista da IARC não deve ser encarada como uma referência absoluta. Ela contém pareceres que, se forem tomados ao pé da letra, podem levar a decisões totalmente equivocadas.

No caso do aspartame, a agência se baseou em três estudos que, segundo ela (5), apresentam “evidência limitada” relacionando o carcinoma hepatocelular (principal tipo de câncer de fígado) ao consumo do adoçante.

No maior deles, publicado em 2016, cientistas europeus acompanharam 500 mil pessoas ao longo de uma década – e descobriram que cada dose semanal de bebidas com aspartame aumentava em 6% a incidência desse tumor.

Isso significa que, se todo mundo tomasse uma lata de refrigerante por dia, todo santo dia, haveria 42% mais casos desse câncer. Ele acometeria três pessoas a cada 20 mil indivíduos (e não duas, como acontece hoje).

O problema, como a própria IARC destacou, é que não dá para dizer “com confiança razoável” que o aspartame foi o responsável pela maior incidência de câncer no estudo – o real motivo pode ter sido outra característica das pessoas que tomavam mais refrigerante, como sobrepeso ou obesidade (que sabidamente aumentam o risco de tumores).

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E os outros dois trabalhos têm esse mesmo problema: não conseguem estabelecer uma relação de causa e efeito. Ao se manifestar sobre a polêmica do aspartame, a Food and Drug Administration destacou justamente esse ponto. “Os cientistas da FDA revisaram as informações citadas pela IARC em 2021, quando elas primeiro ficaram disponíveis, e identificaram limitações significativas nos estudos em que ela se baseia”, criticou a entidade (6).

A própria OMS tentou colocar as coisas em contexto. “As classificações da IARC são o primeiro passo para entender a carcinogenicidade de um agente […] mas não refletem o risco de desenvolver câncer”, declarou.

Quem determina esse risco é sua outra agência, a JECFA – aquela que disse que o aspartame é seguro. Ela tem um porém: 6 de seus 13 conselheiros possuem ou já possuíram algum vínculo com o International Life Sciences Institute, grupo de pesquisas financiado pelas multinacionais de alimentos – que são grandes usuárias de adoçantes, e possuem óbvio interesse em afirmar que eles são seguros.

Isso não significa que os cientistas da JECFA estejam mentindo ou distorcendo dados, mas é um conflito de interesses relevante, e coloca em perspectiva as recomendações dessa agência. “Precisamos de estudos melhores, com acompanhamento mais longo”, contemporizou Moez Sanaa, diretor de ciência alimentar da OMS.

 

Ilustração de alimentos de plástico enquanto formigas andam em volta deles, junto com um botão de “Clique aqui” que redireciona para o infográfico completo da linha do tempo dos adoçantes.
Os estudos em que a IARC se baseou mostram uma associação entre o consumo de adoçantes e câncer de fígado. Mas não é possível afirmar, segundo a própria agência, que eles causam a doença. (Felipe Del Rio/Superinteressante)

 

A desconfiança com os adoçantes é quase tão antiga quanto eles. Em 1907, a FDA decidiu fazer uma investigação do primeiro adoçante artificial, a sacarina [veja no quadro acima]. Em 1911, ela classificou como “adulterados” os produtos contendo essa substância – mas no ano seguinte, em 1912, decidiu que ela era inofensiva.

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A sacarina foi inventada acidentalmente pelo químico russo Constantin Fahlberg, durante suas pesquisas na Universidade Johns Hopkins, nos EUA. Fahlberg licenciou a patente para o empresário John Francis Queeny, que em 1901 montou uma fábrica para produzir o adoçante.

Queeny batizou a nova empresa de Monsanto Chemical Works (“Monsanto” era o sobrenome de solteiro da esposa dele, Olga). Essa mesma Monsanto se tornaria uma gigante dos agrotóxicos e transgênicos, e acabaria comprada pela Bayer em 2018.

Mas, durante suas primeiras décadas, ela não mexeu com isso: fabricava aditivos alimentares, como a sacarina e a vanilina (essência de baunilha), alguns remédios, como a aspirina, e reagentes para processos industriais.

 

Ilustração de linhas de formigas caóticas, junto com um botão de “Clique aqui” que redireciona para o infográfico da intensidade do sabor dos adoçantes.
O aspartame causou ansiedade em cobaias de laboratório. Também alterou uma região do cérebro e a atividade de três genes. O efeito passou para os descendentes – mesmo sem que eles consumissem o adoçante. (Felipe Del Rio/Superinteressante)

 

A maioria das pessoas preferia açúcar, e nem pensava em usar adoçantes. Mas em 1917, os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra Mundial, e essa hegemonia alimentar foi desafiada pela primeira vez.

Num cartaz produzido e distribuído em 1918, o governo orientava a população: “Coma menos trigo, carne, açúcar e gorduras para poupar para o Exército e nossos aliados”. O açúcar foi o primeiro a ser racionado: cada família americana só podia comprar 350 gramas por semana. Os adoçantes começaram a ganhar popularidade.

Na Segunda Guerra Mundial, aconteceu a mesma coisa: o açúcar, por ser rico em calorias, foi tratado como item essencial pelo Exército americano. Novamente o açúcar foi racionado, e quem ficou em casa teve de apelar aos adoçantes.

Mas eles só decolaram de vez nos anos 1950 e 1960, com a explosão do consumo de alimentos industrializados nos EUA. Altamente calóricos e bastante acessíveis, eles aumentaram muito a incidência da obesidade no país – que se tornou um problema de saúde pública. Como resposta, surgiu todo um novo mercado de produtos dietéticos.

Ele foi dominado pelo ciclamato de sódio, que custava 1/10 do preço do açúcar e passou a ser usado, entre outras coisas, em geleias, molhos e refrigerantes – o primeiro se chamava No-Cal, tinha sabor de gengibre e chegou ao mercado em 1952. Fez um certo sucesso.

Em 1958 foi a vez da Diet-Rite Cola, e em 1963 veio o Tab, lançado pela Coca-Cola. Em 1968, os EUA já consumiam mais de 7.700 toneladas de ciclamato por ano, uma quantidade impressionante (se toda essa produção fosse usada em refrigerantes, daria para fazer 25 bilhões de latas).

O ciclamato estava em cada vez mais alimentos. Mas aí, já no ano seguinte, estourou uma grande crise. Em outubro de 1969, o ministério da Saúde dos EUA anunciou que a substância seria banida. Motivo: um estudo liderado pelo bioquímico Bernard Oser, da FDA, apontou que ela aumentava o risco de câncer de bexiga em ratos.

A descoberta causou furor, mas não era bem o que parecia ser. No estudo, os ratos foram alimentados com uma dose estratosférica de ciclamato, 2.500 mg por kg de peso. Isso seria o equivalente, em uma pessoa de 60 kg, a tomar 500 latas de refrigerante por dia.

Se você conseguisse fazer isso, morreria imediatamente – não por causa do adoçante, e sim por intoxicação hídrica (beber mais de 4 litros de qualquer líquido num curto período de tempo reduz demais o nível de sódio no sangue e pode causar inchaço cerebral, provocando convulsões, coma e óbito).

O estudo foi tão mal interpretado que o próprio Oser, alguns anos depois, publicou um artigo explicando isso (7). “A decisão de interromper o uso do ciclamato não se justificava”, disse na época.

Mas assim foi, e até hoje esse adoçante é proibido nos EUA. Ele é permitido e usado quase no mundo inteiro, incluindo a Europa e o Brasil. O ciclamato tem um porém: ao contrário dos demais adoçantes, cuja “dose diária aceitável” costuma ser altíssima [veja no infográfico abaixo], o limite seguro dele é bem mais baixo.

Uma lata de refrigerante diet contém de 100 a 240 miligramas de ciclamato (8). Os refrigerantes de cola são os que menos têm; os cítricos, os que mais têm. Isso significa que, dependendo do sabor de refri que estiver tomando, uma pessoa de 60 kg pode ultrapassar o nível seguro (que é determinado por estudos em cobaias) após beber três latas de refrigerante por dia.

Uma criança com a metade do peso, 30 kg, poderia cruzar essa fronteira após uma lata e meia. E esses cálculos consideram o limite de consumo adotado pela OMS. A norma europeia é mais rigorosa: determina um limite 40% mais baixo. Ou seja, o ciclamato pode sim ser um problema, especialmente em refrigerantes de limão ou laranja. É bom ficar atento a isso.    

 

Ilustração de 6 latas de refrigerante com diversas formigas subindo nelas, junto com um botão de “Clique aqui” que redireciona para o infográfico do limite aceitável de cada adoçante.
(Felipe Del Rio/Superinteressante)

 

Se usados dentro dos limites estabelecidos, os adoçantes são considerados seguros. Mas isso não significa que sejam inofensivos. Alguns estudos têm mostrado que eles podem ter efeitos surpreendentes, que incluem até o grande mal do mundo moderno: a ansiedade.

Os genes e o cérebro

Os adoçantes são doces porque suas moléculas se conectam às papilas gustativas presentes na língua. Eles não têm calorias (ou apresentam um teor ínfimo) porque não são digeridos pelo corpo. Mas atravessam o sistema digestivo, caem no sangue (9) – e podem alcançar todos os órgãos, com efeitos diferentes em cada um.

Em 2021, cientistas da Universidade de Cambridge analisaram os estudos já publicados sobre o efeito dos adoçantes sobre a fertilidade – e constataram que houve queda na contagem de espermatozoides em ratos que receberam aspartame, sacarina ou estévia (10).

“Imagine um casal que não está conseguindo ter filhos. Ninguém vai suspeitar que pode ser porque o homem usa adoçante”, diz o endocrinologista Márcio Mancini, diretor do grupo de obesidade do Hospital das Clínicas da USP.

Não há como cravar que essa é a causa da infertilidade (humanos, ao contrário de ratos de laboratório, estão sujeitos a diversos outros fatores). Mas esse exemplo mostra como a investigação científica pode revelar conexões impensáveis à primeira vista.

Sabe aquela crença popular de que comer muito açúcar deixa as crianças agitadas? Tem fundamento: vários estudos em animais de laboratório apontaram que uma dieta rica em açúcar pode causar alterações neurológicas (11), desencadeando ansiedade. E os adoçantes também podem provocar isso.

Uma experiência feita por cientistas da Universidade Estadual da Flórida e publicada na Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), uma das revistas científicas mais respeitadas dos EUA, revelou (12) que camundongos alimentados com aspartame desenvolveram comportamentos ansiosos.

As cobaias receberam aspartame equivalente a um ser humano beber 6 a 8 latas de refrigerante por dia. Após seis semanas com essa dieta, os bichos passaram a se comportar de modo diferente: evitavam áreas abertas e ficavam mais tempo escondidos, em cantos protegidos. “Foi um comportamento de ansiedade muito robusto, que não estávamos esperando. Geralmente você vê mudanças sutis”, declarou uma das autoras, a bióloga Sara Jones.

Ao final do estudo, os ratos foram sacrificados, e os cientistas analisaram seus cérebros. Descobriram que o alto consumo de aspartame havia modificado a amígdala, região cerebral relacionada à ansiedade e ao medo.

Ela apresentava mais receptores de glutamato, um neurotransmissor excitatório, e menos receptores de GABA, um neurotransmissor inibitório. A amígdala havia se tornado hiperativa – o que explicava as mudanças no comportamento das cobaias.

Mas houve algo ainda mais impressionante: as alterações comportamentais e cerebrais também foram encontradas nos descendentes daqueles ratos, mesmo sem que os filhotes (ou suas mães) tivessem consumido aspartame.

Isso aconteceu porque a atividade de três genes, chamados GRIN2D, GRM4 e Gabarap, havia sido modificada. Ou seja, o adoçante provocou uma alteração epigenética (que envolve ativação ou desativação de genes), e ela foi transmitida de pai para filho.

“O estudo mostra que precisamos olhar para os fatores ambientais, porque o que vemos hoje não é apenas o que está acontecendo, mas o que aconteceu duas gerações atrás, e talvez até mais tempo”, disse o neurocientista Pradeep Bhide, outro autor da pesquisa.

Será que o amplo consumo de aspartame pela sociedade, nas últimas décadas, pode estar relacionado ao aumento nos casos de ansiedade? Não dá para cravar isso – inclusive porque, em estudos anteriores, os adoçantes não causaram alterações de comportamento em animais. Mas é algo que, à luz dessa nova descoberta, merece ser mais estudado.

O mesmo vale para outra possível consequência dos adoçantes: alterações no microbioma, a população de bactérias que vive no intestino e desempenha um papel fundamental na digestão. Um estudo (13) liderado pelo imunologista Eran Elinav, do Instituto Weizmann de Ciência, em Israel, analisou os efeitos de quatro adoçantes: sacarina, sucralose, aspartame e estévia.

Durante duas semanas, 120 voluntários receberam um desses adoçantes, dentro do limite diário recomendado e sem que cada pessoa soubesse o que estava consumindo (parte dos voluntários tomou placebo). Todos os quatro adoçantes afetaram o microbioma. A sacarina e a sucralose foram além: pioraram a resposta glicêmica dos participantes, ou seja, fizeram com que houvesse mais glicose circulando no sangue deles – um fator de risco para o diabetes tipo 2.

Foi consequência das alterações no microbioma. Os cientistas comprovaram isso transplantando amostras do microbioma dos voluntários para ratos – que logo desenvolveram aquele mesmo desvio glicêmico. “As descobertas sugerem que os adoçantes não são metabolicamente inertes, como muita gente acreditava”, diz Elinav.

Estudos recentes, publicados de um ano para cá, apontaram que a sucralose e o ace-K podem atrapalhar o funcionamento normal do fígado (14), o aspartame pode interferir nos ovários (15), e a sucralose reduz a atividade (16) das células T, um componente essencial do sistema imunológico.

São trabalhos preliminares, com limitações (os dois primeiros avaliaram o efeito em células, não no organismo como um todo, e o último foi realizado em ratos, não em humanos). Mas eles sinalizam que a visão científica sobre os adoçantes pode estar mudando.   

Alheios a isso, seguimos consumindo esses produtos – porque o gosto moderno por alimentos doces parece insaciável. Uma análise publicada em 2022 por cientistas brasileiros, que analisaram 4.805 alimentos industrializados à venda no país (17), constatou que 66,7% deles continham o chamado “açúcar livre” (acrescentado para deixar o sabor mais doce) ou algum adoçante.

Cada brasileiro consome em média 80 g de açúcar por dia, o equivalente a 18 colheres de chá. Isso dá 30 kg por ano. A recomendação da OMS é que o máximo seja de 50 g diários. “Temos um paladar muito doce e muito salgado. A gente gosta dos extremos”, diz a nutricionista Eliana Bistriche Giuntini, do Centro de Pesquisa em Alimentos da USP.

E isso está diretamente ligado à evolução da espécie. Nosso paladar evoluiu para nos alertar sobre o amargo dos venenos e o azedo dos alimentos estragados. Nossos instintos entendem que o sabor doce sinaliza a presença de um grande número de calorias, necessárias à sobrevivência.

Ilustração de uma embalagem de adoçante proporcional ao tamanho das formigas.
O gosto por sabores doces é um instinto evolutivo, presente até em bebês e animais. Foi o mundo moderno que o transformou em problema. (Felipe Del Rio/Superinteressante)

Os bebês têm uma propensão natural a gostar de sabores doces (18), e esse instinto também está presente em animais. Em 1952, o agrônomo americano Max J. Plice demonstrou isso (19) de um jeito divertido: conseguiu fazer vacas comerem plantas que elas normalmente detestavam.

Bastava borrifar um pouco de açúcar ou melaço nelas. “Em várias vezes”, relatou ele, “o gado rapidamente percebeu o que estava acontecendo e seguiu a lata de spray com entusiasmo.” A resposta foi a mesma quando ele borrifou sacarina e ciclamato nas plantas – sugerindo que os animais gostavam de qualquer coisa doce, mesmo se ela não tivesse valor nutricional.

O mundo moderno deu um curto-circuito nesse instinto. Se você olhar os rótulos dos produtos, vai encontrar adoçantes até onde menos espera, como molhos para salada, pão de forma, barrinhas de cereais e certos sabores de macarrão instantâneo. “Se há evidências de potenciais problemas, por que inundar o mercado de alimentos com adoçantes?”, questiona a Allison Sylvetsky, pesquisadora da Universidade George Washington e autora de vários estudos sobre essas substâncias.

A indústria continua apostando nesses compostos químicos porque eles reduzem o teor calórico dos alimentos, o que agrada aos consumidores – e, também, porque sua presença pode ser difícil de notar.

Em outubro de 2022, entraram em vigor novas regras para as embalagens de alimentos no Brasil. A principal novidade está no rótulo frontal, que traz uma lupinha e informa se há altos teores de açúcar, gordura ou sódio. Só que os adoçantes não estão sujeitos a essa regra.

“Isso acaba sendo um incentivo para a indústria caprichar um pouco mais nessas substâncias”, diz o endocrinologista Márcio Mancini, da USP. Ele revela outro truque das empresas de comida com os adoçantes. “O uso deles serve de apoio para que o fabricante não ultrapasse o limite de açúcar permitido pela legislação”, afirma.

Mas não é só a indústria; os consumidores também abusam. Na tese de doutorado da nutricionista Ana Paula Gines Geraldo, da Universidade Federal de Santa Catarina, 15% dos entrevistados disseram que não pingam, e sim esguicham adoçante nas bebidas.

O trabalho também mostrou que é comum o consumo de alimentos diet, light ou zero para tentar “economizar” calorias. É o clássico caso de comer um cheeseburguer com fritas e pedir refrigerante zero.

“As pessoas pensam na ideia de compensação, mas o que emagrece mesmo é reeducação alimentar”, diz ela. “Nenhum alimento pode ser considerado saudável simplesmente porque não tem caloria”, reforça a nutricionista Tarcila Ferraz de Campos, da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD). De fato. Contar calorias não é comer bem.

Os adoçantes podem ajudar a reduzir o uso de açúcar. E, mesmo à luz dos estudos mais recentes, não precisam ser banidos da dieta. Mas quanto menos  você puder ingerir, melhor – até porque eles estão presentes em alimentos industrializados, nada saudáveis.

Com moderação e bom senso, a paixão humana por sabores doces pode deixar de ser um problema de saúde pública. E voltar a ser o que sempre foi: um legado poderoso, e delicioso, da evolução.

***

Fontes (1) Use of non-sugar sweeteners – WHO guideline. OMS, 2023. (2) IARC List of Classifications. Disponível em monographs.iarc.who.int/list-of-classifications. (3) IARC Monographs – Volume 57. 1993. (4)  IARC Monographs – Volume 108. 2013.

(5) Carcinogenicity of aspartame, methyleugenol, and isoeugenol. E Riboli e outros, 2023. (6) FDA Response to External Safety Reviews of Aspartame. 14/7/2023.

(7) Chronic toxicity study of cyclamate: Saccharin (10 : 1) in rats. B Oser e outros, 1975.
(8) Teor de ciclamato de sódio e perfil do consumidor de bebidas dietéticas. M Egea e outros, 2019.

(9) Plasma concentrations of sucralose in children and adults. K Rother e outros, 2016. (10) The impact of non-caloric sweeteners on male fertility: a systematic review in rodent models. M Kearns e outros, 2021. (11) The impact of sugar consumption on stress driven, emotional and addictive behaviors. S Bartlett e outros, 2019.

(12) Transgenerational transmission of aspartame-induced anxiety and changes in glutamate-GABA signaling and gene expression in the amygdala. P Bhide e outros, 2022. (13) Personalized microbiome-driven effects of non-nutritive sweeteners on human glucose tolerance. E Elinav e outros, 2022.

(14) Non-Nutritive Sweeteners Acesulfame Potassium and Sucralose Are Competitive Inhibitors of the Human P-glycoprotein/Multidrug Resistance Protein 1 (PGP/MDR1). L Danner e outros, 2023. (15) Aspartame Consumption, Mitochondrial Disorder-Induced Impaired Ovarian Function, and Infertility Risk. Y Chen e outros, 2022. 

(16) The dietary sweetener sucralose is a negative modulator of T cell-mediated responses. F Zani e outros, 2023. (17) Packaged foods containing non-nutritive sweeteners also have high added sugar content: A Brazilian survey. R Proença e outros, 2022. (18) Innate and learned preferences for sweet taste during childhood. A Ventura e J Mennella, 2011. (19) Sugar Versus the Intuitive Choice of Foods by Livestock. MJ Plice, 1952. 

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