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À sombra do mosquito

A malária causa pelo menos 1,5 milhão de mortes por ano, uma a cada 21 segundos. O disseminador da tragédia, o mosquito anófeles, já foi identificado há um século. Mas só agora uma nova vacina, desenvolvida por brasileiros, pode ajudar no controle do mal.

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h35 - Publicado em 30 jun 1997, 22h00

Ivonete D. Lucírio

Em 1889, o Serviço Médico Britânico mandou uma expedição à África. Por sorte, o chefe da equipe, Ronald Ross, era, além de clínico, especialista em insetos. E talvez por isso tenha notado que as regiões onde havia malária estavam infestadas por um tipinho esquisito de mosquito, o anófeles. Como ele mesmo provou oito anos depois, o inseto carregava os quatro tipos de parasitas causadores da doença.

De lá para cá, até surgiram remédios que salvam parte dos infectados. “Mas a malária ainda mata entre 1,5 e 2,7 milhões de indivíduos por ano”, lamenta o infectologista Aafje Rietveld, da Organização Mundial da Saúde. O problema, portanto, não é remediar, é prevenir. Por isso, a esperança hoje se concentra em uma nova vacina, criada pelos brasileiros Ruth e Victor Nussenzweig, da Universidade de Nova York. Ela é a primeira que ataca o parasita em duas fases (veja o infográfico na página 46).

Aqui a malária persegue os garimpeiros

A malária ataca quando o homem invade a mata tropical, o endereço do anófeles. Nos anos 80, quando a mineração em Rondônia atraiu trabalhadores, ocorreram 200 000 casos nesse Estado. Hoje, com o fim das minas, eles caíram para 130 000. No Brasil, a contaminação vem diminuindo também com o uso de veneno contra o inseto. Em 1996 surgiram 450 000 infectados, 100 000 a menos que nos anos anteriores. Deles, 3% morreram. Só no Amazonas é que a malária ainda cresce. “Aqui, o governo federal investe em agricultura”, explica Wilson Alecrim, diretor do Instituto de Medicina Tropical do Amazonas. “Os trabalhadores vão para a floresta e ficam expostos”, diz.

Mas é na África que o bichinho pega. Lá estão os quatro tipos de parasitas: os plasmódios falciparum, malariae, ovale e vivax. No Brasil, ao menos não existe o malariae. Para piorar, a maio- ria dos africanos mora perto das florestas e cada um recebe em média 1 000 picadas por ano. Com o sistema de defesa acostumado aos ataques, o sujeito não desenvolve sintomas fortes, mas ajuda a contaminar outros. Pois só dentro do organismo humano o ciclo de vida do plasmódio se completa.

O Exército dos EUA derrotado pelo inseto

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“O Exército americano perdeu a Guerra do Vietnã para a malária, e não para os vietnamitas”, afirma o infectologista Marcos Boulos, do Hospital das Clínicas de São Paulo e consultor do Centro Rhodia de Doenças Tropicais. Os soldados nunca tinham entrado em contato com o mal e foram presa fácil do mosquito. Como não fica bem um exército se render a um plasmódio, os americanos estão sempre atrás de mais munição.

O novo tiro de canhão é a vacina que está sendo produzida pelo Instituto de Pesquisa Walter Reed, do Exército norte-americano, em colaboração com o laboratório belga SmithKline Beecham Biologicals. A nova arma se baseia na pesquisa da dupla Ruth e Victor Nussenzweig (veja infográfico ao lado). Os resultados por enquanto são os melhores já registrados, mas só os testes poderão comprovar a eficácia. “A dificuldade para se criar uma vacina é que o parasita está sempre se modificando”, diz Boulos, um felizardo que, em vinte anos de pesquisa de campo sobre a doença, não contraiu malária nenhuma vez. “O plasmódio sabe mudar seu disfarce e se defender muito bem do sistema imunológico dos seres humanos”.

Plasmódio muda de cara o tempo todo

Para desespero dos farmacêuticos, uma droga que, no início, diminui rapidamente os sintomas da malária em poucos anos torna-se ineficaz porque o plasmódio dribla o seu efeito. Foi o que aconteceu com a cloriquina, remédio desenvolvido pelo Exército americano durante a Segunda Guerra Mundial. “A partir dos anos 60, já havia plasmódios resistentes à cloriquina na América do Sul”, conta o parasitólogo brasileiro Luiz Hildebrando da Silva, que estudou a doença durante 33 anos no Instituto Pasteur, na França, e está de volta ao Brasil desde março, para atuar na Universidade de São Paulo.

Novas drogas surgiram, algumas bem recentes, mas todas acabam caindo nas armadilhas do pa-rasita. A indústria farmacêutica tem que buscar algo muito diferente, capaz de surpreender o inimigo. Só que o investimento para desenvolver um remédio desses é altíssimo e o lucro, quase zero (veja quadro abaixo). Por isso as indústrias não se entusiasmam. E, passados 100 anos da descoberta de seu agente transmissor, a malária continua quase imbatível.

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Para saber mais

NA INTERNET:

Instituto de Medicina Tropical do Amazonas: imtam@pop_am.rnp.br

A viagem destruidora do parasita

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O mosquito anófeles carrega o transmissor da malária na saliva. Quando morde alguém, começa o ciclo da doença no corpo.

A turma do bolinha

O parasita mais comum é o Plasmodium falciparum (na foto, as bolas azuis). No mosquito, antes de ir para a saliva, ele habita a parede do estômago.

1 – É o fim da picada

Só a fêmea do anófeles gosta de beber sangue humano. E, ao enfiar o ferrão na pele da vítima, injeta o plasmódio, que cai na corrente sanguínea.

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2 – A favor da correnteza

Quando caem nos vasos, os parasitas têm uma única intenção: chegar rápido ao fígado. Para isso, eles se deixam levar pela corrente do sangue.

3 – Atrás das trincheiras

Os plasmódios ficam 10 dias alojados dentro das células do fígado. Ali, eles se multiplicam para enfrentar a etapa seguinte.

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4 – Ataque em massa

Os parasitas saem do fígado com uma estrutura feita sob medida para invadir os glóbulos vermelhos do sangue, onde em 24 horas eles se multiplicam assustadoramente.

5 – A batalha final

Durante até dois anos, os plasmódios ficam rompendo as células sanguíneas. Entre eles estão os parasitas que, sugados pelo mosquito, se reproduzem dentro do inseto e perpetuam o ciclo nefasto.

A explosão da doença

Os sintomas surgem quando o parasita arrebenta os glóbulos vermelhos. Eles são: febre alta, calafrios, tremores, dores por todo o corpo. Aí o indivíduo tanto pode morrer, na maior parte das vezes por coágulo cerebral, como reagir e se curar. Vai depender dos remédios e da resistência de cada um.

A solução na ponta da agulha

As três soluções em teste para proteger quem mora nas regiões de risco ou viaja para as terras do anófeles.

Ataque em duas frentes não deixa parasita prosseguir

Os cientistas brasileiros Ruth e Victor Nussenzweig, da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos, apostaram que a vacina eficaz estaria bem na casca do inimigo. Bingo! Mas faltava alguma coisa. Pois, só com isso, a vacina era inócua quando o mal atingia o fígado. Ali, sua fórmula passava batido ou era destruída. O casal decidiu experimentar uma versão híbrida, metade proteína da casca do plasmódio e metade proteína que reveste o vírus da hepatite B. Afinal, o vírus da hepatite está acostumado a se dar bem no fígado e poderia ser o segredo do sucesso. Parece que foi mesmo: mais de 85% de 46 voluntários do Exército americano foram imunizados. “Agora estamos testando a vacina em Gâmbia, na África”, diz Ruth. “Os resultados sairão no início de 1998.”

1 – Compasso de espera

A vacina é injetada na corrente sanguínea e prepara o organismo para ser acionado quando o mosquito jogar lá dentro os parasitas que devem ser atacados e destruídos.

2 – De cara com o inimigo

A vacina induz o sistema imunológico a produzir moléculas defensoras, os anticorpos. Quando os plasmódios caem na corrente, esses defensores os atacam impiedosamente.

3 – Ataque aos fugitivos

Mesmo assim, alguns plasmódios escapam para o fígado. Mas nem ali têm sossego. Outros anticorpos explodem as células do fígado que escondem os parasitas fujões.

Tropa de choque fecha as portas das células do sangue

O médico colombiano Manoel Patarroyo achou uma vacina que impede o ataque dos parasitas às células do sangue. Nos testes realizados até 1991 com 23 000 voluntários na Colômbia, Venezuela e Equador, os resultados foram 80% positivos. “Mas, no Brasil, sua eficiência foi quase zero”, conta o infectologista Marcos Boulos. Os parasitas da malária são mutantes como o vírus da Aids e, talvez, o parasita que aqui ataca não ataque como os de lá, sendo irreconhecível para a vacina. O Instituto Walter Reed, em Washington, procura somar outras proteínas do parasita na formulação colombiana. Eles esperam ter a sorte de achar uma proteína comum em todos os parasitas mutantes, do Brasil, da Colômbia e de outros cantos da Terra.

1 – De molho no sangue

Depois de aplicada, a vacina fica boiando na corrente sanguínea, preparando as defesas para contra-atacar o inimigo instalado no fígado.

2 – Estado de alerta

Quando o parasita sai do fígado e cai no sangue, milhares de anticorpos de bloqueio já estão à sua espera.

3 – Barrados no baile

Os anticorpos formam uma barreira, impedindo a invasão das células sanguíneas e a proliiferação dos bichos.

Investida contra o namoro dos plasmódios

Uma terceira forma de vacina não protege exatamente quem a recebe, ou seja, quem contraiu um dos parasitas da malária. Pesquisada em diversos laboratórios do mundo, ela é chamada de vacina altruísta porque pretende evitar que o mal faça novas vítimas. Geralmente, ao picar alguém infectado, o mosquito suga parasitas sexuados que irão se reproduzir em seu organismo. Por isso, o que os cientistas querem é impedir o namoro de plasmódios machos e fêmeas. As fórmulas em teste funcionam como um anticoncepcional de parasitas. De todas as soluções em testes, é a menos avançada.

1 – Convivência pacífica

No sangue da vítima infectada, a vacina se finge de morta e convive pacificamente com os parasitas sem atacá-los.

2 – Mosquito em ação

O anófeles pica o indivíduo e suga parasitas, que usam seu intestino para se reproduzir. Mas, junto, vai também a vacina.

3 – Sexo, nem pensar

A vacina atrapalha o namoro dos parasitas e eles não conseguem se reproduzir. O ciclo da doença acaba aí.

A lenta busca da cura

Desenvolver um novo remédio custa 250 milhões de dólares e leva tempo. E o preço alcançado pela droga é baixo.

1 – Caçadores de moléculas

Busca-se, a partir de plantas ou moléculas já conhecidas, uma que cure a malária. Enquanto isso, o laboratório determina se o remédio será injeção, cápsula ou comprimido. No final, 90% das moléculas descobertas vão para o lixo por serem ineficientes ou tóxicas. Duração: 5 anos

2 – Primeiro, as cobaias

Os testes começam com camundongos, que procriam rápido. Assim, é possível ver logo os efeitos do futuro remédio no organismo. A dosagem aumenta até se descobrir qual é a tóxica. Depois verifica-se o efeito em animais maiores, mais próximos do homem. Duração: 3 anos.

3 – A reação humana

Os primeiros testes com seres humanos são feitos em voluntários saudáveis. O interesse é saber se o medicamento é tóxico. Determinado o grau de toxicidade, começam os testes em pacientes doentes. No total, cerca de 3 500 pessoas recebem a medicação. Duração: 4 anos

4 – Rumo à prateleira

O remédio tem que ser aprovado pelo governo do país responsável pelo seu desenvolvimento. Depois disso vai para o mercado. Geralmente seu preço final é baixo porque os consumidores têm baixo poder aquisitivo. Duração: 6 meses, em média

Quando o remédio engana o parasita

Drogas extraídas da planta artemísia agem dentro das células vermelhas do sangue. Mas o plasmódio tende a ficar resistente.

Viagem até o alvo

O remédio ruma para os glóbulos vermelhos onde o parasita se multiplica.

Imitador de proteína

O novo parasita precisa de proteínas, que ele mesmo produz, para formar sua casca. Só que, antes que elas se fixem ao redor do plasmódio, o medicamento finge ser uma proteína e ocupa seu lugar. O parasita morre e a doença não avança. Mas os parasitas que sobram se tornam mais fortes.

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