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Alerta vermelho da febre amarela

O Ministério da Saúde já afirmou: vivemos o maior surto em décadas de uma doença que já dizimou cidades no Brasil. Mas por que justo agora?

Por Felipe Germano Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 30 jun 2018, 22h03 - Publicado em 19 dez 2017, 17h03

Tudo começa com o zumbido de um mosquito. Você já ouviu milhares deles, mas com tanta coisa acontecendo por aí – dengue, zika, chikungunya – bate aquela preocupação. Você nem sabe se ele conseguiu te picar. Mas aí você mata o maldito, volta a ver Netflix e relaxa. No dia seguinte acorda com disposição. Consegue até ir à academia depois de tanto tempo. Ainda bem que não era nada, né? Calma. Três dias depois você está na cama. Sua cabeça dói, sente muito frio, vômito, diarreia. Não vai trabalhar, fica em casa um pouco, para ver se melhora. Mas só piora. Vai para o hospital e é encaminhado direto para a UTI. Hemorragia, rins em mau funcionamento, fígado comprometido – até o coração e o cérebro podem estar sendo afetados. As piores notícias vêm do médico que traz o diagnóstico: não há cura. A doença vai agir por cerca de 12 dias no seu corpo atingindo o que bem entender. O que o doutor do plantão pode fazer é te medicar para combater os sintomas e problemas que forem aparecendo. O resto é com seu corpo. E as chances não são das melhores. Se você chegou a essa fase, a probabilidade de sobrevivência não é muito maior do que de você ganhar no par ou ímpar: de acordo com o Ministério da Saúde, nos casos mais graves só 50% conseguem sair do hospital com vida. Boa sorte, você tem febre amarela.

(Leonardo Gomez/Reprodução)

Que zumbido é esse?

Calma. Não adianta se desesperar – muito menos enrolar uma SUPER para tentar acertar todo mosquito que você vê pela frente. Antes de mais nada, você tem que entender o que, de fato, é a tal da doença. A febre amarela é proveniente de um vírus do gênero Flavivirus febricis. E seus efeitos não poderiam variar mais de um paciente para outro. Enquanto alguns relatam apenas dores de cabeça moderadas, outros chegam ao quadro clínico que abre esse texto, com o vírus atacando principalmente o fígado. Na prática, o órgão lesionado não consegue cumprir uma de suas funções: eliminar a bilirrubina, uma substância que aparece em nosso corpo naturalmente, conforme nossas células vermelhas morrem ao envelhecer. A substância se acumula e começa a tingir nosso corpo com sua cor, o amarelo. É a chamada icterícia, diagnóstico para a pele e olhos amarelados. Daí que sai o sobrenome da febre.

Há duas formas de pegar febre amarela. A primeira, e mais comum, é conhecida como ciclo silvestre. O vírus aproveita que macacos e mosquitos das espécies Haemagogus e Sabethes habitam o mesmo local: copas de árvores. Ele se utiliza dessa proximidade para garantir sua reprodução. Um mosquito infectado pica um macaquinho, o bicho adoece, mas antes de morrer servirá de alimento para outras dezenas de mosquitos famintos, muitos deles não infectados. Nesse caso, o jogo vira: dessa vez, o macaco é que transmite o vírus para o inseto, que provavelmente passará a doença para outro símio daquela família. A coisa toda só chega na gente quando um mosquito silvestre acaba encontrando com um ser humano. Puro azar, que acaba fazendo dos símios vítimas mais uma vez. “Com medo do contágio, não é incomum que as pessoas matem macacos para se proteger”, explica Jessé Alves, coordenador do Núcleo de Medicina do Viajante do Instituto Emílio Ribas. Um tiro no nosso próprio pé. Os macacos têm um sistema imunológico muito mais simples que o nosso e por isso são vítimas quase sempre fatais do vírus. Encontrar corpos dos primatas em zonas próximas a centros urbanos, então, é um útil sinal de alerta. “Quando os primatas morrem e identificamos que a causa foi febre amarela, a gente sabe que precisa vacinar a população daquela região. Sem o macaco, perdemos essa indicação”, afirma Jessé.

A segunda forma de contágio é o chamado ciclo urbano. Seu método de transmissão funciona como o da dengue: você só precisa de um Aedes aegypti (sim, o mesmo mosquito da dengue) infectado para transmitir o vírus para um humano. O perigo, porém, é que, assim como o macaco, a pessoa pode virar foco de transmissão: um Aedes limpo pode se infectar ao picar o humano doente, e consequentemente passar o vírus para a frente. Em centros densamente povoados, como a cidade de Diadema (SP), onde há 12,5 mil pessoas a cada km², isso seria um problema.

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O fato, porém, é que há muito tempo não temos que nos preocupar com a febre amarela urbana. No Brasil, o último caso registrado desse tipo aconteceu em 1942, após campanhas de vacinação e saneamento básico se espalharem pelos principais focos de contágio do vírus no País. O ciclo silvestre, no entanto, nunca cresceu tanto. Em maio de 2017, o Ministério da Saúde disse que este é o maior surto de febre amarela das últimas décadas. Não foi exagero. Nos primeiros cinco meses do ano, tivemos confirmados 792 casos da doença espalhados por 130 municípios. Entre junho de 2014 e dezembro de 2016, o Brasil tinha registrado um número 56 vezes menor: 14 casos. Pior ainda, a doença está sendo fatal: entre janeiro e maio de 2017 foram 274 óbitos. De lá pra cá, a situação melhorou, mas não muito. Entre 1º de julho de 2017 e 23 de janeiro de 2018, o Brasil registrou 53 óbitos por causa da doença, e confirmou 130 casos de infecção (outros 162 pacientes continuam sendo analisados).

Matar macacos não freia a doença. Pelo contrário: eles indicam quando o vírus está perto demais. (Leonardo Gomez/Superinteressante)

Se você está se perguntando o porquê desse surto atual, as respostas divergem. A primeira diz respeito simplesmente à natureza. O Ministério da Saúde informa que os mosquitos infectados tendem a ficar restritos à região amazônica, mas de tempos em tempo eles se movimentam e acabam parando em outras partes do País. O problema, de acordo com o órgão, é que desta vez os insetos foram para áreas diferentes, onde a população não estava vacinada. “Desde o período de monitoramento 2014/2015, o vírus passou a circular em áreas onde não era registrado há tempos e encontrou espaço favorável para sua transmissão e dispersão”, afirma Márcio Garcia, diretor do Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis do Ministério da Saúde. “Desde então, a ocorrência de casos de febre amarela em primatas não humanos (PNH) e em humanos se estendeu do Centro-Oeste ao extremo leste brasileiro, afetando municípios dos Estados do Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e, mais recentemente, São Paulo, principalmente entre Campinas e a capital”, completa. Mas essa não é a única explicação. O erro também é humano. “O desmatamento tem um papel fundamental nisso. Você acaba mudando a dinâmica de macacos e mosquitos, que passam a habitar outras áreas, mais próximas a humanos. Isso se soma ao fato de que, em Minas Gerais, por exemplo, a gente teve uma cobertura vacinal muito baixa”, explica Jessé.

O próprio Ministério assume que errou na distribuição e divulgação das vacinas. Em um relatório publicado em março, o órgão diz que o baixo número de pessoas vacinadas pode ter contribuído para a rápida expansão da doença em áreas sem recomendação de vacinação, principalmente em municípios dos Estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo.

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Mas, espera, se para darmos origem ao ciclo urbano só precisamos de humanos infectados e Aedes aegypti, por que ficamos sem registros da doença em áreas urbanas por mais de 50 anos? As coisas não são simples assim. Para que a doença se espalhe para as grandes cidades é preciso o acúmulo de alguns fatores. Como o ciclo urbano só acontece via Aedes, você precisa de um grande número de pessoas infectadas, ou de muito azar, para que um mosquito encontre especificamente um paciente com o vírus e consiga passar isso adiante para um número significativo de pessoas. Mas, sim, com o aumento de casos nos entornos de grandes cidades com forte presença do Aedes (casos de febre amarela foram registrados em Belo Horizonte, que teve mais de 135 mil casos de dengue em 2016), potencializa-se o risco do ressurgimento do ciclo urbano. E a história nos diz que, se isso acontecer, os efeitos podem ser desastrosos.

Meu passado me condena

Campinas talvez seja nosso maior exemplo disso. Em 1889, enquanto D. Pedro 2º brigava para se manter no poder, a cidade a 90 km de São Paulo vivia um cenário de guerra. Estima-se que, dos 12 mil então moradores dali, 5 mil morreram vitimados pela doença. Outros 3 mil fugiram de medo. “O número de mortos era tão grande que os cemitérios não deram conta. Os coveiros começaram a dar vazão aos corpos no meio da rua. Cogitou-se até abandonar a cidade, para reconstruí-la em outra região, longe dali”, conta Jorge Alves de Lima, membro do conselho científico do centro de memória da Unicamp e autor do livro O Ovo da Serpente – 1889, que conta a história dos efeitos da doença em Campinas. Os números se comparam, em suas proporções, aos de catástrofes epidemiológicas históricas – um terço dos habitantes da Europa também foram mortos pela Peste Negra, por exemplo. Se algo parecido acontecesse hoje em São Paulo, a cidade perderia, no período de um ano, 8 milhões de vidas. É a população da Irlanda e da Nova Zelândia juntas. Em Campinas não foi um número continental, mas serviu para selar o destino da cidade. “O campineiro tinha esperança de que, por ser o principal polo agrícola e econômico do Estado, sua cidade pudesse se tornar a capital com as mudanças que estavam acontecendo no País. Esse sonho acabou ali.”

É DOSE
O Brasil tem a maior fábrica de vacinas contra febre amarela no mundo, que quase quadruplicou o número de doses no último ano.

(Pedro Botton/Superinteressante)

Em Campinas, o principal problema foi a falta de conhecimento. Àquela época, pouco se sabia, de fato, sobre a doença – em especial sobre sua forma de transmissão. A saída foi tentar se proteger de todas as formas: queimava-se açafrão em praças públicas, numa tentativa de purificar o ar, e piche era jogado nas vias para impedir que o solo deixasse as pessoas doentes. A coisa só mudou de figura em 1896, quando Emílio Ribas, então diretor do Serviço Sanitário do Estado, foi à cidade instaurar um programa de saneamento básico na região. Menos lixo, menos focos de água parada, menos mosquitos. Deu um jeito mesmo sem a vacina que, apesar de ter sido desenvolvida 13 anos antes, ainda não havia se popularizado.

De volta para o futuro

Hoje as coisas mudaram: apesar de a febre amarela ainda não ter cura, ao menos sabemos combater a doença. Mas isso não torna as coisas tão mais fáceis. Primeiramente, porque ela nunca vai sumir. “Vivo dizendo que, enquanto houver mosquito e enquanto houver macaco, vai haver febre amarela. Talvez até depois disso – pesquisas recentes investigam se o vírus pode se reproduzir em animais não primatas também. Ainda não se conhecem casos assim, mas tudo indica que pode acontecer”, explica Jessé. A outra razão é a própria busca pela extinção da doença. As vacinas causam efeitos adversos graves (alergias, infecção generalizada e até meningite) em 0,00042% dos vacinados. O número é extremamente baixo, mas quando colocado em grande escala, como no Brasil, os casos começam a surgir na prática. Se todos os 208 milhões de brasileiros tomassem a vacina, num cenário hipotético, teríamos 870 novos infectados pelas vacinas. O que pode ser um problema muito mais social do que epidêmico. Um número alto de casos decorrentes da vacina pode criar uma desconfiança populacional sobre o medicamento. Quem desconfia não toma, quem não toma fica vulnerável ao vírus. O ciclo recomeça. Por isso, o Ministério recomenda que só tome a vacina quem está no grupo de risco: moradores e viajantes que habitam áreas endêmicas.

O governo estima que R$ 1,96 bilhão tenha sido investido na febre amarela em 2017, entre doses de vacinas e estudos para analisar focos e áreas de risco. O Ministério pretende instituir, a partir de 2018, a vacinação contra a febre amarela no calendário nacional para crianças de 9 meses de idade.

Em meio a todo esse cenário, é nosso o maior laboratório de vacinas contra febre amarela no mundo. Só em 2016, exportamos mais de 5 milhões de doses para países africanos que estão com crises de ciclo urbano. O laboratório Rio-Manguinhos, braço da Fundação Oswaldo Cruz, produziu em 2017 mais de 60 milhões de doses de vacina contra o vírus, quase quatro vezes o volume das mais de 16 milhões de doses produzidas ano passado. Para isso, o laboratório está trabalhando com sua produção máxima. “Um novo laboratório está sendo construído em Santa Cruz (RJ), isso vai dobrar nossa produção”, afirma Luiz Lima, vice-diretor de produção da Fiocruz. A maior inovação, no entanto, será química. “Estamos desenvolvendo uma nova vacina que teria a mesma potência da atual, mas que utilizaria só meia dose.” A ideia é que a nova vacina chegue ao mercado já em 2019. Prazo curtíssimo quando se pensa que o simples processo de produção de uma vacina comum pode levar até cinco meses – estamos a dois ciclos da nova fórmula. Um maior volume de vacinas, juntamente com uma análise sobre quais são, de fato, as áreas de risco, pode controlar o vírus. Se tudo der certo, na próxima vez que você ouvir um mosquito, não vai ser bom, mas vai ser melhor.

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Corpo a corpo

A febre amarela tem o potencial de atacar diversos órgãos do corpo, e devastá-los

FÍGADO
Principal alvo do vírus, é onde ele se multiplica para partir para o resto do corpo. O vírus destrói as células do órgão, causando diversas condições: desde hepatite a coma hepático, quando o cérebro perde funções por conta das toxinas que o fígado não consegue mais eliminar.

RINS
Conforme a infecção se espalha, nosso sangue reage: nossa pressão sanguínea cai, alguns vasos se rompem, e isso tudo afeta diretamente o rim. Essas fatores fazem com que ele não consiga filtrar mais todo nosso sangue. O órgão fica tão comprometido que nem mesmo urina consegue produzir depois de um tempo.

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OLHOS E PELE
A febre ganhou o apelido de “amarela” porque causa a icterícia, condição que deixa a pele e os olhos com tons amarelos – um reflexo dos problemas no fígado, que não consegue mais eliminar a bilirrubina, substância de tom amarelado, presente naturalmente no nosso corpo.

CORAÇÃO
Em alguns casos, o vírus ataca o coração, inflamando o miocárdio do paciente. Essa condição, conhecida como miocardite, pode resultar em uma parada cardíaca.

CÉREBRO
Outro órgão que pode sofrer inflamações, causando delírios, convulsões e até a morte.

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