Doping sem barreiras
Novas substâncias usadas para melhorar artificialmente a performance de atletas não serão detectadas pelos testes realizados em Barcelona 92. A fraude pode levar medalha de ouro.
Paulo D’Amaro e Lúcia Helena de Oliveira
Um palavrão pode sujar o brilho de algumas medalhas em Barcelona’92 — hormônio peptídico. O termo, estranho para a maioria dos leigos torcedores, designa uma família de substâncias secretadas pelo organismo. Duas delas, porém, vêm sendo usadas, há no mínimo quatro anos, como doping esportivo, ou seja, como tática química para melhorar artificialmente o desempenho de atletas. Qualquer forma de doping é proibida pelo Comitê Olímpico Internacional (COI). Só tem um problema: o exame de urina, ao qual serão submetidos alguns dos participantes das atuais Olimpíadas, não consegue determinar se os tais hormônios peptídicos foram produzidos naturalmente ou injetados para forçar uma vitória.
Antes da recente proibição desse grupo de substâncias, há três anos, já havia cinco outras formas de doping: os estimulantes, os anabolizantes, os diuréticos, os betabloqueadores e os narcóticos analgésicos. Quanto a estes últimos, não há nada contra a aplicação de remédios analgésicos, para aliviar a dor de uma contusão, por exemplo. No entanto, embora tenham esse efeito, narcóticos como a morfina são drogas famosas por causarem dependência, daí a censura do COI. Os chamados betabloqueadores, por sua vez, são um caso à parte: criados para tratar pessoas com hipertensão, eles não causam nenhum dano à saúde, ao contrário das outras formas de doping. O desenho de suas moléculas é semelhante ao de certas substâncias neurotransmissoras, responsáveis pelo controle do ritmo cardíaco. Assim, os betabloqueadores se encaixam nos receptores nervosos, espalhados no coração. E este, afinal, também se engana: aceita o medicamento como uma ordem do cérebro para diminuir seus batimentos.
Que se tenha notícia, o inocente remédio para pressão alta se transformou em doping nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984. Foi, então, um verdadeiro achado para praticantes de arco e flexa e de tiro, aos quais até mesmo as levíssimas pulsações das artérias do braço são tremores, capazes de fazê-los errar o alvo. Quanto menor o ritmo do bombeamento pelo coração, melhor. “Alguns competidores, sob efeito do doping, conseguiram aumentar suas médias em até 20%”, recorda-se o gaúcho Eduardo Henrique De Rose, que então já estava havia um ano na comissão antidoping do COI, da qual faz parte até hoje. Os betabloqueadores levaram o coração de arqueiros e atiradores a bater 60 vezes por minuto, 20 batimentos a menos do que em repouso. “Portanto, aquela melhora de desempenho era falsa. Só devemos considerar aquilo que um atleta consegue com seu próprio esforço, depois de muito treinamento e preparo físico.”
Mas nem sempre se pensou assim. O doping fez sua estréia impunemente nos primeiríssimos Jogos Olímpicos da idade contemporânea, os de Atenas em 1896. Ciclistas, corredores, saltadores mascavam pastilhas, cuja formulação continha diversos estimulantes, entre eles a cocaína. Essas substâncias demoram poucos minutos para agir diretamente no cérebro. Ali, inibem determinados neurotransmissores, encarregados de bloquear a passagem de sinais elétricos entre um neurônio e outro. Desse modo, é como se os impulsos nervosos se tornassem mais intensos ou pudessem percorrer livremente mais cadeias de neurônios. Resultado: os reflexos ficam mais rápidos, aumenta a capacidade de concentração, as mensagens de cansaço eventualmente enviadas pelos músculos são ignoradas.
Segundo o único brasileiro na comissão antidoping do COI, o uso de estimulantes pelos atletas avançou ao lado do nazismo na Europa. “Até as Olimpíadas de Berlim, em 1936, os jogos eram uma festa, em que o importante era competir”, diz De Rose. Mas o líder do movimento nazista, Adolf Hitler (1889-1945) fazia questão de que os atletas alemães faturassem as medalhas de ouro, para provar a superioridade da suposta raça ariana. “Só importava vencer. E a pressão psicológica era tamanha, que muitos atletas passaram a achar válido qualquer artifício para conduzi-los ao pódio.” Essa maneira de encarar a competição, sem o menor espírito esportivo, se consolidou com a chamada guerra fria, a partir da qual atletas americanos e soviéticos, por exemplo, usavam o esporte para provar, de certa maneira, a superioridade de um ou de outro sistema político — ou seja, capitalismo e socialismo. Além disso, na primeira década depois da Segunda Guerra, muitos atletas eram ex-combatentes, que conheciam bem os milagrosos efeitos dos estimulantes. “Especialmente os pilotos, de ambos os lados, engoliam essas substâncias para ficar superalertas”, conta De Rose. Contudo, os estimulantes só foram desclassificados para as Olimpíadas em 1968, nos Jogos do México, quando foram instituídos os testes antidoping. Aliás, na época, eles eram a única forma de doping perseguida pelos cientistas do esporte.
Atualmente, é pouco provável que um atleta olímpico arrisque tomar uma dose de estimulante antes da prova. “É possível detectar bilionésimos de grama da substância na urina”, garante a bioquímica Rosemary Custódio Pedroso, da Universidade de São Paulo. Morena, magra, de cabelos longos, ela é responsável há treze anos pelo laboratório, no prédio da Faculdade de Ciências Farmacêuticas, onde ficam equipamentos especiais para testes antidoping, sempre requisitados por diversas federações paulistas de esportes. Com essas máquinas, a professora Rosemary flagrou há doze anos, por exemplo, resíduos de estimulantes na urina do jogador de futebol Zé Sérgio ponta-esquerda do São Paulo, hoje treinador no Japão, quatro anos depois, o atacante Mário Sérgio, do Palmeiras, atual comentarista de TV, recebeu o mesmo diagnóstico.
Em Barcelona, de acordo com as normas do COI, dois jogadores de cada time são sorteados para o teste antidoping de urina — isso vale para qualquer esporte coletivo. Nas modalidades individuais, além dos quatro primeiros colocados em cada prova, dois outros atletas serão convocados, por sorteio, para o exame. A urina não acusa apenas a presença dos estimulantes no organismo: a amostra que o velocista canadense Ben Johnson verteu em Seul, logo depois de bater o recorde mundial dos 100 metros rasos, obrigou-o a tirar a medalha de ouro da mala. Os cientistas da comissão antidoping apagaram sua marca recordista, ao encontrar rastros de anabolizantes no líquido. Produzidos nos testículos, os anabolizantes são hormônios que aumentam a capacidade de os músculos sintetizarem proteínas. Com isso, injetados em doses extras feito doping, fazem o atleta ganhar em semanas uma tremenda massa muscular, que em condições normais ele suaria meses para conseguir.
Contudo, a fraude de Ben Johnson só pôde ser notada graças a um erro de cálculo tão grosseiro, que chega a ser inexplicável. Isso porque, se tivesse parado de tomar anabolizantes um mês antes da prova — em vez de interromper seu consumo na semana anterior —, o crime teria sido perfeito. “Os resíduos desses hormônios só permanecem na urina durante duas a três semanas. Quem interrompe o doping até esse prazo, jamais é flagrado”, lamenta a professora Rosemary. Os anabolizantes, portanto, continuam sendo o doping predileto de atletas inescrupulosos, especialmente nas modalidades que exigem explosão muscular; ou seja, muita força em um curto período de tempo. Aliás, quando a idéia é roubar no jogo, cada modalidade tem o seu doping ideal.
No boxe e no judô, por exemplo, os competidores são divididos em categorias conforme o peso, dias antes da luta. Por isso, é comum o doping com diuréticos, substâncias que induzem os rins a aumentar a produção de urina, seqüestrando volumes maiores de líquido disponível no corpo. Com menos água no organismo, a balança aponta menos quilos. Assim, sob o falso efeito emagrecedor dos diuréticos, o atleta acaba classificado para lutar com adversários de categorias inferiores, em vez de ir bater em gente do seu tamanho. Sim, porque o líquido perdido é facilmente recuperado, até a hora do confronto. Mas, na prática, apelar para esse truque sujo é impossível em jogos olímpicos: “Como no caso dos estimulantes, o uso de diuréticos é facilmente percebido através do teste de urina”, diz Rosemary. Fora os anabolizantes, a única brecha para o doping nas Olimpíadas são os hormônios peptídicos. Única, mas enorme.
O COI nem se lembrava da existência dessas substâncias naturais, até serem supostamente experimentadas como doping por esquiadores soviéticos nas Olimpíadas de Inverno de 88, em Calgary, no Canadá. Isso, na realidade, nunca foi provado. Mas, na época, médicos canadenses desconfiaram das proezas realizadas pelos russos — uma performance incrivelmente superior à exibida em competições anteriores, naquele mesmo ano. É sempre assim no doping: alguém suspeita da vitória do outro e, daí, começa uma verdadeira trama de detetive. Depois dos Jogos de Inverno, por exemplo, a comissão do COI tanto investigou que acabou descobrindo quatro laboratórios de pesquisa interessados no uso do hormônio eritropoetina para doping — se eles forneceram ou não a substância aos soviéticos, ninguém pode responder.
Secretada pelos rins, a eritropoetina tem o traço característico da família dos hormônios peptídicos, ou seja, suas moléculas são formadas por dois ou mais aminoácidos — que, por sua vez, são a matéria-prima de qualquer proteína. Mas a particularidade dessa substância, no caso, é multiplicar a quantidade de glóbulos vermelhos, as células sangüíneas transportadoras de oxigênio. Assim, mais deste gás chega aos músculos, que passam a trabalhar como um motor com aditivo. Por isso mesmo, há um outro hormônio peptídico sendo usado como doping, embora seja mais raro: a gonadotrofina coriônica, que a mulher produz em grandes volumes durante a gravidez, quando o sangue precisa abastecer de oxigênio dois organismos ao mesmo tempo — o da mãe e o do filho.
No final dos anos 70, alguns esportistas tentavam aumentar a quantidade de glóbulos vermelhos com a prática ilícita de transfusões. “Era uma dor de cabeça. Ficávamos procurando pistas nos braços dos atletas, como manchas roxas” lembra De Rose. “Hoje, eles têm medo de pegar Aids com as transfusões. Mas, infelizmente, surgiu a alternativa desses dois hormônios peptídicos.” Para descobrir se esse doping está sendo usado, o único jeito é examinar os glóbulos vermelhos com microscópio simples. Essas células são maiores do que o normal, quando a produção é induzida, por exemplo, pela eritropoetina de laboratório, extraída de rins de carneiro. Contudo, esse nome complicado de hormônio pode cair na boca do povo, depois de Barcelona ’92, do mesmo modo como a palavra anabolizante se tornou conhecida, especialmente depois do escândalo de Seul, há quatro anos. Isso porque a comissão executiva do COI sem maiores explicações, vetou a coleta de sangue dos participantes. “Estamos insistindo na liberação dos exames sangüíneos, o que deve acontecer nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1994, em Lillehammer, na Noruega”, avalia De Rose.
Por enquanto, o único castigo para os usuários desse doping são os efeitos colaterais: “O aumento dos glóbulos vermelhos deixa o sangue mais viscoso, dificultando sua passagem nos vasinhos estreitos que irrigam órgãos vitais, como o fígado e os pulmões”, informa Victor Matsudo, ortopedista paulista, membro do Conselho Internacional de Ciências do Esporte, órgão ligado ao COI e à Unesco. Praticante de corrida e natação, Matsudo atende diariamente craques de vários times de vôlei, basquete e outros esportes. “AIém disso, os rins tendem a diminuir sua produção normal de eritropoetina, quando se injetam doses extras desse hormônio”, exemplifica o médico. “Ou seja, quando o atleta abandona o doping, passada a competição, seu organismo pode não funcionar como antes.”
Os famosos anabolizantes, por sua vez, também fazem os seus estragos pelo corpo humano — a médio ou longo prazo podem provocar doenças nas glândulas sexuais e até câncer de fígado. Além disso, quando consumidos por garotas adolescentes, levam à masculinização — as curvas femininas desaparecem e a voz tende a engrossar. Isso sem contar as lesões nos tendões e ligamentos, tanto em homens como em mulheres. “Essas estruturas não acompanham o crescimento exagerado da massa muscular”, explica Matsudo. “Ignorando isso, o atleta se engana com as formas avantajadas do corpo, sentindo-se tentado a aumentar a carga dos exercícios.” Os músculos, se agissem sozinhos, até agüentariam o novo ritmo de treinamento, já que se desenvolveram com os anabolizantes; mas o fato é que trabalham inseparavelmente com os tendões e os ligamentos, que mantiveram o tamanho original e terminam em frangalhos.
Sobretudo, é possível morrer por abuso de anabolizantes e estimulantes. O primeiro caso que chamou a atenção foi o do ciclista dinamarquês Knut Jensen, vítima de uma dose fatal de anfetamina em plena corrida, nas Olimpíadas de Roma, em 1960. Na opinião do professor Eduardo De Rose, a melhor maneira de evitar o doping — especialmente nas circunstâncias de Barcelona 92, em que nem sempre os testes deverão detectá-lo — é conscientizar os competidores sobre os danos à saúde, que contrariam a imagem do esportista. “O atleta deve ser um exemplo para a sociedade. Quando prejudica o organismo ou usa meios ilegais para vencer, ele está ferindo gravemente os ideais olímpicos.”
Para saber mais:
(SUPER número 7, ano 10)
Músculos envenenados
O doping está para os filamentos protéicos como os aditivos para os motores.
No músculo, os chamados filamentos protéicos de miosina, solicitados nos esportes de resistência, extraem energia principalmente do oxigênio. Os de actina preferem a glicose como fonte energética e são ideais nas modalidades em que é preciso fazer muita força, por pouco tempo. A quantidade de filamentos é determinada antes do nascimento, depois eles só conseguem aumentar de tamanho — graças a um treinamento ou injeções de anabolizantes, por exemplo. Certos hormônios, aliás, fazem um filamento de actina se comportar como a miosina, alterando as limitações naturais do atleta. Já os estimulantes levam os nervos a recrutar mais filamentos do que o normal, para realizarem determinado movimento.
Calma, coração!
Atiradores, arqueiros e esgrimistas são os grandes fãs dos betabloqueadores. Ao reduzirem os batimentos cardíacos, essas substâncias podem tornar as mãos e os braços mais firmes. Resultado: precisão nos movimentos.
Dar no pedal
Os ciclistas também buscam a velocidade; mas, como em qualquer modalidade de longa duração, o que importa é ter resistência — daí, quanto mais glóbulos vermelhos para levar oxigênio aos músculos, melhor. Alguns atletas já apelaram para transfusões de sangue. Outro doping comum no ciclismo é o de estimulantes.
Feito um foguete
Os anabolizantes também seriam o doping ideal de velocistas e saltadores. Só que, no caso, a força muscular impulsiona o corpo para correr, em um curto período.
Máquinas dão o apito final
Os pesquisadores do Instituto Coreano de Ciência e Tecnologia vararam a noite de 25 de setembro de 1988 examinando a urina de dezenas de atletas que haviam competido nas provas olímpicas daquele domingo. A amostra 1237 não continha resquícios de estimulantes, narcóticos, diuréticos ou betabloqueadores, segundo a análise do cromatógrafo a gás. Nele, um extrato de urina atravessa uma estreita coluna de sílica, repleta de uma substância, capaz de barrar com maior ou menor facilidade os componentes do líquido; desse modo, cada um deles demora um tempo diferente para cumprir a trajetória. “Um estimulante chegaria em um intervalo de tempo em que nada deveria estar saindo”, diz a professora Rosemary Pedroso, da USP.
Como isso não aconteceu com a amostra 1 237, os técnicos coreanos passaram para a segunda etapa, a do espectrofotômetro ultravioleta sensível, usado para acusar anabolizantes. Acionado, o equipamento emitiu radiações luminosas sobre gotículas da urina e registrou em gráficos a intensidade da luz reemitida. Esta variou conforme a massa molecular de cada substância, identificando uma por uma. Entre elas, o estanozolol, um anabolizante. O resultado foi enviado imediatamente ao príncipe belga Alexandre de Merode, presidente da comissão antidoping desde sua criação. Na relação dos atletas testados, ao lado do número 1237, ele leu perplexo o nome Ben Johnson. O grande acontecimento dos Jogos de Seul até então — a quebra do recorde mundial dos 100 metros rasos — se transformava em um dos maiores escândalos da história olímpica.
Apanhar feio
Emagrecedores temporários, os diuréticos já classificaram alguns boxeadores e judocas em categorias de peso inferior. Além disso, há casos de narcóticos, aplicados para o lutador não sentir os golpes adversários.
Fôlego na água
Na natação, existem suspeitas de que algumas atletas ficaram grávidas, por inseminação artificial, um mês antes da competição; depois, fizeram aborto. A idéia era induzir o organismo a produzir a gonadotrofina coriônica hormônio que multiplica os glóbulos vermelhos do sangue, durante a gestação. Hoje a substância já é sintetizada em laboratório, assim como a eritropoetina, outro hormônio com o mesmo efeito. As duas formas de doping são ideais para qualquer modalidade esportiva de longa duração.