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Era uma vez em Olímpia

Embarque numa viagem no tempo e veja como os gregos lutavam, corriam, torciam e morriam nas velhas olimpíadas

Por Da Redação Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 31 out 2016, 18h09 - Publicado em 31 ago 2000, 22h00

Denis Russo Burgierman

Enquanto esperava a hora da luta, Milo amarrou um cordão na testa e começou a fazer força com os punhos cerrados. Seu rosto ficou vermelho e trêmulo e as veias da cabeça apareceram. Até que o cordão arrebentou. A multidão, eufórica, começou a berrar sob o sol infernal de agosto, auge do verão grego. Já com mais de 40 anos, Milo conservava a força descomunal que lhe dera cinco títulos olímpicos – em 532, 528, 524, 520 e 516 a.C. Sem contar os jogos de 540 a.C., que ganhou na categoria infantil.

Os torcedores mais empolgados eram os que tinham vindo de Crotona, cidade incrustada na sola da bota italiana. Milo lutava por Crotona. A Grécia não era um país, mas um amontoado de cidades independentes espalhadas por lugares tão distantes quanto Itália, Espanha, Líbia, Egito, Irã e Ucrânia. Todas se reuniam a cada quatro anos em Olímpia .

Em seguida, o hellanodika – ou juiz grego –, enrolado em sua túnica púrpura, interrompeu a brincadeira e convocou os atletas para a skamma, um ringue de areia que ficava no pátio interno de um prédio chamado palaistra. Milo, que muitos acreditavam ser capaz de comer 20 quilos de carne e de beber 9 litros de vinho numa só refeição, chegou confiante. Como todos os atletas, ele estava nu – conta-se que essa tradição começou quando um corredor perdeu as calças em uma prova e tropeçou. À sua frente, um jovem chamado Timotheos esperava o começo do combate, encarando Milo com receio.

Era a final do torneio olímpico de luta. Terminava ali um exaustivo período de preparação. Timotheos e Milo tinham passado dez meses treinando duro para os jogos – uma exigência dos juízes para todos os atletas. O vencedor sairia da skamma coberto de glória. Ao perdedor restaria esperar a olimpíada seguinte.

Quando o hellanodika gritou apite, que quer dizer “já!”, milhares de torcedores vindos a pé, de barco ou nas costas de um burro dos cantos mais distantes do mundo grego começaram a urrar de um jeito que lembrava os mais apaixonados fãs de futebol dos dias de hoje. Enquanto o mítico Milo partia para cima do seu inexperiente rival, a multidão em pé se acotovelava numa outra luta cujo prêmio pela vitória era enxergar pelo menos um relance do confronto histórico. Não havia arquibancadas. Todos os torcedores eram homens, já que as mulheres não podiam assistir ou tomar parte nas olimpíadas – tinham que se contentar com os bem menos importantes Jogos de Hera.

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A empolgação da torcida foi diminuindo. O carismático Milo não conseguia agarrar o adversário. Horas depois, acabou se cansando – a luta não tinha limite de tempo, só terminava quando alguém caísse três vezes. Foi com surpresa que a multidão assistiu a Timotheos, mais ágil, partindo para cima de Milo e derrubando-o. A essa primeira queda seguiram-se outras duas. Pronto, estava terminado. Apesar da derrota, a torcida ergueu o herói Milo e saudou-o. Timotheos, reverente, participou da homenagem.

“Milo de Crotona foi o maior atleta da Antigüidade”, afirma o historiador americano Donald Kyle, da Universidade do Texas, especialista nos jogos antigos. Um título e tanto. Afinal, as olimpíadas existiram por mais de 1 000 anos. Surgiram por volta de 800 a.C., quando os habitantes da região, que festejavam o final da colheita louvando Zeus e Hera, o rei e a rainha dos deuses, começaram a apostar corridas. Sabe-se que, em 776 a.C., já havia um evento, que tinha uma prova só: a corrida de 200 metros. Depois, incorporou outras corridas, a luta (esporte de Milo), o boxe, o pankration (uma espécie de vale-tudo), o pentatlo, a música e as provas hípicas. Em 393 d.C., o imperador romano Teodósio proibiu todos os festivais pagãos, inclusive o de Olímpia, mas achados arqueológicos recentes mostram que os jogos continuaram na clandestinidade por pelo menos mais duas décadas.

A derrota de Milo para Timotheos, que marcou o fim da sua legendária carreira, aconteceu em 512 a.C., na 67a Olimpíada. No dia seguinte, Timotheos receberia uma coroa de ramos de uma oliveira sagrada. O troféu secaria e se despedaçaria em semanas, mas a glória do campeão perduraria.

Timotheos, como todo campeão, nunca mais pagaria por refeições, teria lugar certo na primeira fila dos anfiteatros, jamais gastaria um centavo com hospedagem e seria reconhecido na rua até morrer. Ganhou também o direito de construir uma estátua sua em Olímpia. Sem falar no prêmio que receberia do governo da sua cidade, que os historiadores estimam que fosse equivalente a meio milhão de reais.

Consta que Milo de Crotona morreu anos depois. Foi devorado por lobos após sofrer um acidente ao quebrar um tronco com as próprias mãos… É difícil saber se a história é verdadeira. Tudo o que se sabe sobre ele vem de textos esparsos que cheiram a lenda. Talvez tenham exagerado a capacidade dos seus bíceps e do seu estômago. Mas não há dúvidas de que foi um herói do mundo grego, adorado como um semideus depois de morrer.

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E não foi o único. “Leônidas de Rodes foi outro atleta fenomenal”, diz Judith Swaddling, pesquisadora da Grécia antiga no Museu Britânico, em Londres. Leônidas venceu as três corridas olímpicas – stade, diaulos e dolikhos – em quatro olimpíadas seguidas, de 164 a 152 a.C. “É um feito simplesmente fantástico”, diz Judith. Um stade correspondia a quase 200 metros, que era a extensão do estádio. No diaulos, o atleta tinha que ir até o final do estádio, contornar um poste e voltar. E o dolikhos consistia em 24 estádios. Ou seja, vencer as três seria como ganhar as provas de 200, 400 e 5 000 metros numa olimpíada moderna – algo que beira o impossível. Ainda mais porque todas as corridas aconteciam no mesmo dia. E Leônidas fez isso quatro vezes. Uau.

Mais impressionante só a proeza de Arrichion, que foi campeão depois de morto. Não, não se trata de uma espécie de El Cid grego. Arrichion lutava pankration, uma luta cuja única regra era não morder o adversário nem enfiar o dedo no olho ou em qualquer orifício do seu corpo (graças a Zeus!). As irregularidades eram punidas pelo juiz com chicotadas. Fora isso, era uma beleza: valiam chutes, golpes baixos, puxões de cabelo. Arrichion tinha vencido o pankration uma vez, mas estava se saindo mal naquela final. Seu adversário apanhou-o em uma tesoura com as pernas e espremeu-o. O ex-campeão ficou sem fôlego, mas conseguiu segurar o pé do adversário e quebrar-lhe o tornozelo. O rival desistiu na hora, entregando a vitória. Para Arrichion, no entanto, era tarde: roxo pela falta de ar, caiu morto naquele mesmo momento. Foi premiado postumamente.

No boxe, a luta mais violenta, a peleja só terminava quando um lutador perdia a consciência ou desistia. Cada qual amarrava uma faixa de couro nas mãos – para proteger os punhos e não o rosto do rival – e ambos começavam a trocar bordoadas. Às vezes, as lutas duravam horas. Quando os atletas se cansavam dos duelos intermináveis, concordavam em fazer um desempate. Funcionava assim: um de cada vez dava um murro na cara do outro, que não podia defender. Até que um não fosse a nocaute. Muitos morriam.

O boxe era a modalidade de alguns dos maiores mitos da Antigüidade. Um deles foi Theagenes, da Ilha de Thasos. Ele ganhou a prova em 480 a.C. e, quatro anos depois, foi campeão também do pankration. Quando morreu, o povo de Thasos construiu uma estátua em sua homenagem, como era costume fazer com os grandes campeões. Outro boxeador da cidade resolveu se vingar dos inúmeros socos que levou de Theagenes e ia toda noite bater na estátua. Até que, um dia, ela se soltou e caiu sobre ele, matando-o. Os filhos do rival enfurecido – derrotado até pela memória de Theagenes – processaram a estátua por assassinato. Isso soa estranho hoje, mas fazia sentido para a lei helênica. A peça acabou condenada e, como pena, jogada ao mar. Só foi recuperada anos depois, quando uma praga assolou a ilha e um oráculo aconselhou os nativos a receberem o boxeador de bronze de volta.

A prova mais popular em Olímpia era a corrida de charretes, que, como o boxe, fazia muitas vítimas fatais. Os cavaleiros pilotavam dois ou quatro cavalos, venciam a pista do hipódromo, contornavam um poste e voltavam. Apesar do perigo de colisão, eles não concorriam à glória olímpica – quem ganhava a coroa era o dono do haras. Tanto que uma égua de Corinto, chamada Aura, ganhou a prova mesmo depois de seu cavaleiro cair. Uma vez, Alkibiades, um ateniense rico, pegou primeiro, segundo e terceiro lugar. Ele nunca subiu numa charrete.

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Essas provas tinham muito em comum com a Fórmula 1 – combinavam velocidade, risco e emoção. Outra semelhança é que as charretes, assim como os bólidos, eram ótimas para o marketing. Os governos de Atenas e da Sicília investiam pesado no esporte. É que eram regiões de criação de cavalos e uma coroa olímpica faria uma bela propaganda para possíveis compradores.

Muitos dos cavaleiros gregos eram também soldados e colheram tantas glórias no hipódromo quanto nos campos de batalha. O mesmo vale para os corredores e os lutadores – conta-se que Milo de Crotona acabou, certa feita, com uma tropa inimiga inteira. Havia até uma corrida chamada hoplitodromia, na qual os atletas competiam com trajes de soldado (imagine a cena ridícula: um monte de marmanjos pelados, tentando correr com um capacete e segurando um pesado escudo). Mas a mais militar das provas era o pentatlo, que incluía provas de arremesso de disco e de dardo, salto em distância, luta e corrida. Essas habilidades eram essenciais para um soldado antigo, que o tempo todo precisava jogar pedras e lanças, pular por cima de arbustos, lutar e correr.

Havia também torneios para escolher o melhor corneteiro, que ganhava, além da coroa de folhas de oliveira, a honra de anunciar os outros vencedores. Aqui também os soldados se davam bem. Exemplo disso foi o super-campeão Herodoros de Megara, uma cidade próxima de Atenas. Dez vezes campeão em Olímpia, ele participou, com sua corneta, do ataque à cidade de Argos. Tocou tão bem e tão alto, e inspirou os soldados de tal forma, que foi responsabilizado pela vitória.

Para ver de perto heróis desse calibre, multidões rumavam para Olímpia. “A maioria ia aos jogos porque sabia que algo espetacular iria acontecer”, diz Richard Woff, pesquisador do Museu Britânico e autor de um livro sobre as antigas olimpíadas. “Acredito que alguns jogos tenham atraído até 200 000 pessoas”, diz Kyle. Para ter uma idéia do que isso significava, a população de Atenas, principal cidade da época, não passava de 250 000.

Toda essa gente enfrentava a falta de água potável – muitos morriam desidratados – e viam as provas de pé, em meio a um empurra-empurra e a uma multidão de vendedores de comida, de vinho e de souvenirs. Certamente não eram poucos os que sucumbiam pela ponta de um dardo perdido ou sob as rodas de uma charrete descontrolada – como você deve imaginar, não havia alambrados. Os cronistas antigos falam em insolação, queimaduras de sol e reclamam do barulho insuportável. Nada a ver com a imagem que muitos têm de um mundo clássico limpo e organizado. Meses antes das provas, as estradas que davam acesso a Olímpia ficavam congestionadas de cavalos e charretes e os barcos enchiam os portos do Mar Negro e do Mediterrâneo. Durante os cinco dias das olimpíadas, todos dormiam apertados no chão, pé de um sobre a cabeça do outro, porque não havia acomodações. Alguns improvisavam tendas de pele ou pano. Olímpia não tinha casas, apenas templos e instalações esportivas (veja infográfico abaixo). Fora da época dos jogos, a cidade sagrada ficava deserta.

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É fato que os jogos antigos se parecem em muitos aspectos com os atuais. Mas havia uma diferença fundamental. “As olimpíadas tinham uma enorme importância religiosa”, diz a arqueóloga brasileira Haiganuch Sarian, da Universidade de São Paulo, que está fazendo pesquisas na Grécia. “Não havia o ambiente profano de hoje.” Entre uma prova e outra, o público visitava o sagrado Templo de Zeus, onde havia uma fabulosa estátua do rei dos deuses, que, com 13 metros de altura, era uma das sete maravilhas do mundo antigo. Havia também o sacrifício de 100 vacas, cujas patas eram queimadas em oferenda aos deuses (e também para espantar as moscas, que infestavam o local no verão).

Quando o Império Romano instituiu à força o cristianismo, os jogos começaram a morrer, junto com a religião grega. Depois, um alagamento e dois terremotos derrubaram os templos e cobriram de pedras as glórias de Olímpia. Só em 1875, mais de um milênio depois, arqueólogos alemães começaram a desenterrar a pista onde Leônidas de Rodes brilhou, a arena onde Arrichion morreu, as colunas que ecoaram a música de Herodoros de Megara e as estátuas de Milo de Crotona.

Vinte e um anos depois, sob a inspiração trazida pelas escavações, realizou-se, em Atenas, a primeira olimpíada moderna. Os heróis estavam de volta. Mas isso já é outra história.

Para saber mais

Na livraria: The Ancient Olympic Games de Judith Swaddling, University of Texas Press, Estados Unidos, 1999

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The Ancient Greek Olympics, de Richard Woff, Oxford University Press, Inglaterra, 1999

Na Internet: Ancient Sports, https://www.perseus.tufts.edu/Olympics

The Ancient Olympic Games Virtual Museum, devlab.cs.dartmouth.edu/olympic

drusso@abril.com.br

A sagrada Olímpia

A cidade sede das olimpíadas não tinha casas, só templos e instalações esportivas

Ginásio

Aqui os atletas treinavam. Havia uma pista coberta, para praticar corrida nos dias de chuva. O pátio era dos lutadores.

Piscina

Esta é a única piscina conhecida da Grécia antiga. Não há registro de que se realizasse alguma prova aqui.

Palaistra

As lutas aconteciam no pátio. Havia também uma área de treinos, onde foi encontrado um saco de areia parecido com o dos boxeadores atuais. Na parte coberta, tinha uma pista de boliche com pinos de pedra.

Oliveira sagrada

Desta única árvore tiravam-se os ramos para fazer as coroas. É provável que essa história tenha um pouco de mito – afinal, nenhuma oliveira duraria 1 000 anos.

Templo de Zeus

O prédio mais sagrado de Olímpia abrigava uma incrível estátua de Zeus com 13 metros de altura, uma das sete maravilhas do mundo.

Colunata do Eco

Este era o local das competições de corneta, que eram favorecidas pela acústica perfeita.

Estádio

Aqui se realizavam as provas de corrida. Os espectadores subiam no morro ao lado para assistir.

Hipódromo

Quarenta charretes competiam ao mesmo tempo, cada uma puxada por até quatro cavalos. Imagine a quantidade de acidentes…

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