Futebol , a Copa futurista
Estádios que andam, camisas sem suor, bolas indeformáveis: o Mundial mais caro da história será também o mais inventivo. Mas é preciso tanto?
Alexandre da Costa
Um estádio que anda. Uniformes que exterminam o suor. Uma bola que não deforma. Chuteiras mais leves que sandálias de praia. Telões modernos capazes de passar filmes em alta definição antes de a pelota rolar. Tabelinhas politicamente corretas com a natureza. A primeira Copa do Mundo do século XXI ainda não começou, mas já ganhou, com sobras, a alcunha de mais inovadora de todos os tempos. E não há exageros nisso. Se os anfitriões da festa, que começa em 31 de maio, Japão e Coréia do Sul, não têm futebol suficiente para sonhar com o caneco (a verdade é cruel: talvez milagres até existam, mas não há como lutar contra os fatos), o jeito foi provar que, pelo menos no quesito organização, não serão esquecidos tão cedo.
E não são só os arquitetos asiáticos e suas excentricidades, que consumiram mais de 6 bilhões de dólares, que estão inventando. As principais empresas de material esportivo do planeta apresentam o que de mais engenhoso poderia surgir quando se fala em camisas, calções e chuteiras. E a bola, hein? Está ficando cada vez mais redonda. E isso não é uma piada.
Em 1995, quando Japão e Coréia do Sul foram escolhidos para dividir a organização do Mundial (a primeira vez que a Fifa delegava a tarefa a dois países), a maior vedete do torneio era apenas um desenho escondido numa gaveta do arquiteto Hiroshi Hara, famoso, no Japão, pelas soluções pouco usuais que encontra para suas obras. Em junho de 2001, o Sapporo Dome era apresentado ao mundo e logo apelidado de “O Estádio que Anda”. É isso mesmo. Localizado no norte do Japão, o estádio é castigado pela neve e pelo frio sete meses por ano. Por isso, é coberto. Mas, no intervalo entre uma e outra partida de futebol, a grama, importada dos Estados Unidos, toma um arzinho num pátio do lado de fora da arena, para não estragar.
Como? O gramado desliza inteirinho para fora do estádio. Para a engenhoca funcionar, foi criada uma plataforma de 8 000 toneladas que transporta todo o gramado. Uma porta com 90 metros de largura se abre no meio da arquibancada lateral. A plataforma, movida a ar comprimido, é acionada, dá um passeio de 90 graus para deixar o campo na posição correta – e não entalar na saída – e a mágica se faz em frente aos olhos dos cerca de 1 000 visitantes diários: o palco dos boleiros começa a se movimentar. Em cinco horas, o Sapporo Dome deixa de ser um estádio de futebol. Entram em ação 50 homens, que lançam carpetes no cimento para que a arena vire um típico campo de beisebol, esporte nacional do Japão. Preço da ousadia: 470 milhões de dólares. E isso tudo para receber apenas três jogos do Mundial.
DE OLHO NO ESTÁDIO
A utilidade de tanta despesa é uma preocupação dos japoneses. O futebol não está em alta no Japão. A média de público da J-League, o campeonato japonês, não passou de 12 000 pagantes em 2001. E nenhum estádio receberá mais de quatro partidas na Copa. Por isso, alguns deles vieram acompanhados de outras obras, para justificar o investimento. O estádio de Yokohama, palco da final em 30 de junho, custou 600 milhões de dólares, o maior investimento de toda a Copa. É muito mais que um campo de futebol: no subsolo foi construída uma espécie de shopping center, com direito a lanchonetes, restaurantes e até um clube com piscinas e tobogãs. Isso tudo para evitar que o gigante japonês fique entregue às moscas depois da Copa.
O que fazer quando a bola parar de rolar também aflige os administradores do estádio de Saitama, onde cerca de 350 milhões de dólares foram investidos e a chiadeira de políticos e da população em geral não tardou a começar. A solução? Em volta do estádio será erguida uma nova cidade, com aluguéis mais baratos que os da vizinha Tóquio. “Em 15 anos, a Nova Saitama estará pronta para receber uma população de 15 000 pessoas. Aí, ninguém vai reclamar do dinheiro que investimos no estádio”, garante Seiji Wakabayashi, administrador do lugar.
O “Olhão” de Oita também sonha sair da sombra do Domo de Sapporo. Apelidado assim devido ao teto retrátil e elíptico que lembra duas pálpebras, será, talvez, o responsável pela principal inovação no que se refere às transmissões de televisão. Graças ao design do teto, uma câmera com controle remoto, presa na estrutura do lugar, passeia pelo campo e apresenta um jeito incomum de ver futebol: do alto. Mas o “talvez” acima tem uma explicação. “A Fifa ainda não autorizou a utilização da novidade e nenhuma das redes de TV que gerarão as imagens do evento nos procuraram. Mas estamos de olhos bem abertos”, diz Takashi Wada, administrador do estádio, fazendo trocadilho com o apelido do estádio. E tem mais uma coisinha sobre o teto do Olhão. O vão central é revestido com uma película de teflon. Isso significa que os refletores não precisarão estar ligados durante o dia, mesmo quando a cobertura estiver fechada. Os raios de sol são totalmente aproveitados.
A GUERRA DA CORÉIA
Adversários ao longo dos séculos, japoneses e coreanos não se bicam de jeito nenhum. Até se pensou que a divisão da Copa entre os dois daria fim à pendenga. Ledo engano. O que se vê, de fato, são dois Mundiais distintos sendo organizados. Se o Japão apostou na tecnologia para agradar o planeta, a Coréia do Sul partiu para o politicamente correto. Campo que anda? Câmera que voa? Os sul-coreanos dão de ombros. “Organizamos os Jogos Olímpicos em Seul, em 1988, sem essas pirotecnias e tudo foi perfeito”, diz Young-Keun Kim, diretor administrativo do Estádio da Copa do Mundo de Daejeon. “Na Copa, não será diferente. E tem mais. França e Brasil, os maiores favoritos ao título, jogam a Primeira Fase aqui.”
Não pense, porém, que os torcedores que desembarcarem na Coréia do Sul passarão por maus bocados. Eles também capricharam nos projetos de suas arenas. Quer ver alguns? O estádio de Seogwipo, palco de Brasil x China pela segunda rodada do Grupo C, no dia 8 de junho, é semi-enterrado no solo, e seu gramado fica 20 metros abaixo do nível do mar. Há ainda cobertura em apenas uma parte das arquibancadas. Artifícios utilizados exclusivamente para proteger os torcedores da ventania que sopra na paradisíaca ilha de Cheju. Outro campo que receberá a Seleção Brasileira também usa a natureza a seu favor. O estádio de Suwon, onde o Brasil enfrenta a Costa Rica, no dia 13 de junho, orgulha-se de não desperdiçar nem a água da chuva, que é utilizada para refrescar o gramado.
Os administradores do Estádio Municipal de Seul, onde acontecerá a abertura da Copa com o jogo entre França e Senegal, no dia 31 de maio, e mais uma partida das Semifinais, aproveitaram cada espaço disponível do terreno. O campo é apenas para o futebol, mas a construção guarda algumas surpresas para quem estiver disposto a caminhar. Utilizando o conceito de multiuso, difundido nos maiores estádios da Europa, há cinema, museu, restaurantes, correio, banco, piscinas, quadras de squash e até campo de golfe.
Mas o estádio que mais orgulha os sul-coreanos é mesmo o de Daejeon. Nele foram empregados só “esforços nacionais”, como adora propalar Young-Keun Kim. Nada de grama importada (a coreana só estará verdinha e em perfeita condição de uso pouco antes de a Copa começar – todos os outros estádios utilizam gramíneas americanas ou européias, que se adequam às mudanças de temperatura) ou técnicos de qualquer assunto de outros países.
Brigas e picuinhas à parte, japoneses e sul-coreanos deram uma aula no quesito civismo e adotaram sem pânico outro tema da moda: o “design universal”, ou seja, um espaço que pode ser utilizado por qualquer pessoa, independentemente da sua condição física. São cerca de 4 000 vagas nos 20 estádios da Copa só para portadores de deficiência que utilizam cadeiras de rodas. Fato impensável, por exemplo, nos estádios brasileiros. Sem malabarismos, o torcedor especial pode passear pelas arquibancadas graças a rampas e não precisará depender de ninguém. Se o cara quer ir ao banheiro, vai, sem maiores problemas. O estádio de Miyagi, no Japão, se superou, e, além dos 204 lugares para as cadeiras de rodas, ainda reservou 3 000 poltronas para os portadores de deficiência auditiva.
FRESCOR OU FRESCURA?
Imagine Pelé no auge da forma, disputando a Copa do Mundo de 2002. Calçando chuteiras tão leves que se sente descalço. Controlando uma bola de material sintético, que não se deforma nem fica pesada quando chove. Vestindo uma camisa sequinha, apesar do calor de 35 graus e da umidade relativa do ar de 85% do verão japonês. Muito já se discutiu sobre como se sairiam os craques do passado contra os de hoje em dia. A ala mais radical diz que Pelé seria um jogador comum. Os sonhadores acreditam que, nesses tempos modernos, com todas as comodidades descritas no parágrafo anterior, o Rei seria mais soberano ainda. Dois mil gols para ele seriam poucos. Os craques de agora fogem da polêmica. Mas deixam o seu recado. “Claro que uma camisa mais moderna e uma chuteira de última geração não tornam ninguém mais ou menos jogador, não fazem ninguém aprender a jogar bola, mas ajudam em algumas coisas”, diz Roberto Carlos, lateral-esquerdo da Seleção Brasileira (e garoto-propaganda da Nike, a propósito).
“Pode parecer pouco, mas só de a camisa e o calção não ficarem mais grudando no corpo, de terem um tecido mais macio, de liberarem os movimentos do corpo, já é um avanço e tanto.”
A menina dos olhos da Nike, desta vez, é o sistema intitulado Cool Motion (movimento fresco), que será usado por oito seleções, inclusive a do Brasil. Camisas que eliminam o suor já existem há algumas Copas. A novidade da Nike é a utilização de duas camadas de poliéster, como se fossem duas camisas uma sobre a outra: a de baixo para expulsar o suor; a de cima para não absorver calor. O fabricante recheia o pacote com nomes pomposos (“tecnologia Dri-Fit”, “microfibra bi-stretch”…) para cobrar um preço jamais visto por uma camisa de futebol: mais de 100 reais. Só a Copa dirá se vale isso tudo.
CHEIA DE GÁS
A aposta da Adidas é na bola da Copa. A empresa alemã é a fornecedora dos Mundiais desde 1970, ano da célebre Telstar, aquela com pentágonos pretos e hexágonos brancos que virou o arquétipo da bola de futebol. A cada quatro anos, a Adidas apresenta um novo modelo, supostamente sempre com algum aperfeiçoamento. O objetivo é chegar, um dia, à bola perfeita – que não deforma com o uso e que tenha o formato mais esférico possível (qualquer um que joga futebol sabe que a bola não é exatamente redonda).
A bola de 2002 chama-se Fevernova. Como há quatro anos, é feita de camadas de espuma, que formam entre si microbalões selados individualmente e preenchidos com gás altamente comprimido. Quando um jogador dá um chute nessa bola, os microbalões se comprimem, fazendo com que ela volte rapidamente ao seu formato original. “É uma bola bem diferente e acho que o pessoal vai se assustar um pouco”, diz Roberto Carlos, dono de um dos chutes mais poderosos do mundo, superando a casa dos 120 km/h. “Tem jogador que vai ter que treinar muito até acertar um passe, porque ela é um pouco menor. Dependendo do estado do gramado, ela será perfeita para quem chuta forte como eu. Ganhei muito em precisão treinando com essa bola.”
A maior briga entre as multinacionais do material esportivo é mesmo pelos pés dos jogadores. Cada vez mais leves (não chegam a pesar 200 gramas), as chuteiras de hoje se moldam ao pé do atleta como se fossem sapatilhas de balé. Tanto a Adidas quanto a Nike pregam que seus novos modelos (Predator Mania e Mercurial Vapor SG, respectivamente), por serem menos pesados, dão maior velocidade ao jogador e, teoricamente, maior agilidade no controle e no toque da bola.
Isso tudo pode ser verdade. E é claro que quanto menos coisa para atrapalhar o desempenho do jogador, melhor. Mas nunca é demais lembrar que, por mais que as inovações tecnológicas impressionem, não devem roubar a cena do que realmente interessa: o espetáculo dentro de campo. Afinal, o futebol nunca precisou disso para ser popular, desde o tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça. Na Copa do Mundo de 1938, na França, Leônidas da Silva entrou para a história fazendo um gol contra a Polônia com o pé descalço, chutando uma bola de couro encharcada pela chuva, vestindo uma camisa de algodão pesada de água, lama e suor. Um craque sempre foi o bastante para fazer sonhar.
O estádio que anda
A mais impressionante novidade tecnológica dos estádios da Copa é o gramado móvel do Sapporo Dome. Para trocar o campo de futebol pelo de beisebol foi criado um engenhoso – e caro – sistema
O estádio tem uma abertura por onde o gramado pode sair. Como ela é menor que o comprimento do campo, o gramado todo gira
Graças a uma plataforma móvel, o campo de futebol desliza para fora, onde também pode tomar sol
Um batalhão de 50 homens entra em ação para instalar os carpetes do campo de beisebol. Preço dessa brincadeira toda: 470 milhões de dólares
Frases
Os japoneses apostaram em tecnologia; os sul-coreanos, no politicamente correto
Eles jogam uma bola cada vez mais redonda
A Telstar, de 1970, foi a primeira bola oficial de Copa. Seu desenho se tornou clássico
A Adidas é fornecedora da Fifa desde então. Em 1978, a Tango misturava couro e poliuretano
Em 1986, a primeira bola inteiramente sintética usada numa Copa do Mundo, a Azteca
O marketing obriga a Adidas a criar algo a cada Copa, pelo menos no desenho, como na Etrusco (1990)
Novidades na Tricolore (1998): camada interna de espuma e o abandono do preto e branco
A Fevernova (2002) tem gás em microcélulas. Supostamente, isso aumenta a precisão do chute
Frase
Nunca uma camisa de futebol foi tão cara: mais de 100 reais. Será que vale tudo isso?